As eleições legislativas deste domingo deixaram o país político numa situação inteiramente nova, diante da qual as armas da análise crítica precisam de afinação. Por este motivo, e também porque importa deixar assentar alguma poeira, limito-me, para já, a curtas notas sobre aspetos que me parecem particularmente significativos e evidentes. Adiante conto escrever de forma mais completa e prospetiva.
– Apesar das sondagens, era previsível uma vitória clara do Partido Socialista, sobretudo a partir do momento em que se percebeu que, apesar da situação pandémica, muitas pessoas iriam votar. O seu crescimento deveu-se a três fatores: ao grande número de potenciais abstencionistas que decidiu sair de casa e votar PS por temer um governo de direita (perspetiva em parte imposta, como um tiro nos pés, por uma comunicação social favorável ao PSD); à transferência do voto útil de eleitores que antes votavam no BE ou no PCP; ao reconhecimento dos bons resultados do governo no campo do crescimento económico e do emprego, da estabilidade social e de complexa gestão da pandemia e da crise que esta suscitou.
– A vitória esmagadora do PS trará, por certo, uma disposição parlamentar que assegurará um governo de quatro anos. Todavia, existem pelo menos três fatores que fazem desde já prever problemas: o primeiro tem a ver com uma maioria absoluta que, apesar das declarações em contrário de António Costa, pode imunizar o governo em relação à crítica e dar rédea solta a um aparelho partidário onde existem representantes de interesses nem sempre transparentes; o segundo prende-se com o brutal enfraquecimento do peso parlamentar da oposição à sua esquerda, tendendo esta a centrar-se mais na política de rua e no protesto; o terceiro liga-se à subida do Chega, que tudo fará, recorrendo ao boato, à mentira e à provocação, para gerar a insatisfação e a revolta em muitos cidadãos.
– A derrota do Bloco de Esquerda e do PCP (arrastando o PEV, seu partido-satélite, que desaparece) era também previsível, embora não com esta dimensão. Em parte, ela deveu-se a fatores circunstanciais, associados à grande transferência de voto para o PS e à incompreensão de inúmeros eleitores por ambos os partidos terem votado ao lado da direita para chumbar o Orçamento, quando, preservando as suas posições, poderiam ter-se abstido, impedindo a convocação de eleições. Apesar de, numa argumentação incompreensível, diria que até algo ofensiva para a inteligência dos eleitores e própria de teorias da conspiração, terem repetidamente culpado o PS de as ter propositadamente forjado, elegendo-o ao mesmo tempo, salvo nos últimos dias da campanha, como o seu inimigo principal.
– Mas deveu-se também a outros fatores. Destaco apenas o facto de ambos os partidos se fundarem quase exclusivamente em políticas de protesto e reivindicação, sem dúvida necessárias e em muitos casos justas, mas que já não convencem eleitores que procuram também propostas concretas para uma governação plural e moderna à esquerda. Esta foi, aliás, a arma do Livre, que fez uma campanha de esquerda pela positiva («bota acima, não abaixo») e só não cresceu mais porque o voto útil no PS também fez diminuir o reconhecimento que essa boa campanha lhe proporcionou.
– Preocupante, e muito, é a subida dos partidos à direita do PSD que alcançaram uma significativa representação parlamentar. Em primeiro lugar o do Chega, que tudo fará para se manter nos destaques dos noticiários, ajudando a disseminar o ódio social, o racismo e a desinformação, e potenciando algum crescimento apoiado nos valores e nas estratégias do populismo. Mas também o da Iniciativa Liberal, que com a sua aversão ao Estado-Providência e a sua ignorância da história, procura ressuscitar políticas liberais, algumas vindas do século XIX, que se ajudaram o capitalismo a triunfar, cedo introduziram gravíssimos fatores de desigualdade social.
– O já esperado desaparecimento do CDS pouco significado terá, até porque o partido se encontrava já em estado catatónico. Representa, todavia, um virar de página na história da nossa democracia. Apesar do seu presidente, agora demissionário, no discurso da noite eleitoral ter depositado a salvação do partido na Juventude Centrista ao invocar – usando uma frase da tradição comunista que revela a sua descomunal falta de cultura política – «os amanhãs que cantam».
– Quanto ao PSD, prejudicado pela ausência de propostas claras e pela pressão dos partidos à sua direita, o mais provável será, após esta grande derrota, um período de indefinição e perturbação interna. Veremos o que dele sairá.
Conto voltar a tudo isto. Olhando para a frente, é claro.
Rui Bebiano