É razoavelmente consensual que a clivagem política entre os conceitos de esquerda e de direita nasceu com o sucedido naquele salão de Versalhes onde, a 28 de agosto de 1789, em plena Revolução Francesa, se reuniu a Assembleia Nacional Constituinte. Ali se confrontaram os partidários de uma solução política que ainda oferecia ao rei da França um razoável poder de decisão, e os que defendiam que este mantivesse um papel apenas simbólico. Na altura de decidir, os primeiros juntaram-se do lado direito da tribuna, enquanto os segundos ficaram do lado esquerdo, assim se separando os que queriam uma monarquia constitucional e aqueles que já anteviam a república. Nesse dia, a «esquerda» venceu por 673 votos, contra os 325 da «direita». Sabe-se como evoluíram os acontecimentos e de que modo o final da disputa se revelou pouco amável para Luís XVI.
Existe vasta produção teórica sobre o que separa formalmente esquerda e direita, mas continua a ser de grande utilidade recorrer a duas interpretações elementares. A primeira considera, na leitura do politólogo Jean Laponce, que a direita tem como referentes o peso das instituições, o valor do conservadorismo, a importância do passado e a livre iniciativa económica, enquanto para a esquerda são essenciais o valor da ideologia, a valorização do futuro, o impacto da transformação histórica e a intervenção moderadora e protetora do Estado. Já para Norberto Bobbio o critério fundamental para estabelecer a distinção é a profunda diferença de atitude perante o ideal de igualdade. É possível ainda integrar nesta separação outros fatores, sendo dos mais importantes o valor conferido ao nacionalismo e ao internacionalismo, bem como a atitudes perante os conceitos de democracia e de república.
Esta dicotomia pressupõe, como se sabe, um grande número de cambiantes, algumas de natureza contraditória e de grande mutabilidade, mas os princípios essenciais que a estabelecem continuam ativos. Com ela em mente, o que pode então dizer-se perante uma nova vaga de declarações que, à boleia dos posicionamentos extremados relacionados com a guerra de invasão da Ucrânia pela Rússia, retomam a ideia segundo a qual «a oposição esquerda-direita está hoje ultrapassada»? Apenas que tal convicção traduz uma enorme ilusão. Aliás, a própria hipótese desse desaparecimento poder ocorrer é estruturalmente uma posição conservadora, de direita, uma vez que procura eliminar a hipótese de um progresso infinito no sentido da igualdade e do bem-estar vivido pelas diferentes sociedades.
O problema que se coloca, ele sim, é a consideração de que essa dicotomia fundadora de modo algum pode estar, em termos de impacto na realidade social e nas escolhas pessoais e coletivas, acima de outras igualmente estruturantes, associadas a comportamentos vitais para o funcionamento das sociedades. Como aquelas que opõem humanidade e desumanidade, guerra e paz, racionalidade e desrazão, liberdade e opressão, democracia e tirania, justiça e injustiça ou mesmo verdade e mentira, esta aplicada também à denúncia de genocídios. Todavia, é frequente que setores de esquerda e de direita, em nome da autodefinida bondade política das suas escolhas e da suposta «superioridade moral» das suas convicções, considerem que estas dicotomias dependem daquela outra, a que separa os dois lados do universo político e, na sua leitura, molda inevitavelmente as restantes.
Entramos aqui no campo minado do relativismo extremo, essa tendência para considerar que todos os pontos de vista têm um peso condicionado pelas diferenças culturais e de perceção, assumindo que jamais existem valores universais, vindos de diferentes origens e tempos, mas que iluminam a humanidade no seu todo. Em consequência, aceitam-se como justificadas atitudes de rejeição sobre as quais deveria existir consenso ético. Existe assim quem identifique guerras boas ou más, ditaduras necessárias ou condenáveis, massacres horrendos ou aceitáveis, racismo compreensível ou incompreensível, sexismo inevitável ou intolerável, e assim por diante. No caso da Ucrânia, agora sobre a mesa, alguns aceitam mesmo uma ideia de paz apresentada como benévola, apesar de construída sobre os escombros de uma nação inteira. Perante escolhas desta natureza, os conceitos de esquerda e de direita, se tomados isoladamente, estalam como ovos arremessados contra uma parede.
Rui Bebiano
Fotografia de Guillaume Noury