Um dos períodos mais intensos da minha vida englobou a comissão de serviço militar em Luanda entre finais de janeiro e o início de novembro de 1975. Tinha sido desertor da guerra colonial, e por isso vivido alguns meses clandestino, mas o III Governo Provisório, de Vasco Gonçalves, após o Acordo do Alvor amnistiou os militares na minha situação e pude apresentar-me de novo. Fui então enviado para Angola, onde vivi o meu PREC. Desse período bastante atribulado tenho a memória de dezenas de episódios absolutamente únicos e diversas pessoas a quem os relatei têm sugerido que deveria passá-los a escrito. Como jamais escreverei uma autobiografia, para evitar esquecê-los vou deixar aqui alguns deles.
Começo por dois relacionados com a frequência de restaurantes. Tinha então muito mais dinheiro do que aquele que podia converter em escudos e transferir para Portugal, e por isso gastava uma boa parte do ordenado a comer e a beber o melhor possível. O que, naturalmente, não podia fazer enquanto estava no interior do quartel e principalmente quando passava, em regra dois dias completos por semana, a alimentar-me a rações de combate durante o meu trabalho de patrulhamento das ruas da capital. De onde, vale a pena lembrar, a polícia tinha desaparecido completamente, fazendo com que o exército português, em conjunto com guerrilheiros dos três movimentos, independentemente da formação nesse domínio – a minha era rigorosamente zero – servisse, naqueles meses de mudança, instabilidade e grande violência, como instrumento de soberania e de paz.
A primeira história aconteceu num restaurante self-service onde ia muitas vezes – não recordo já o nome do espaço – e num certo dia deparei à porta com uma multidão de angolanos em fúria que apedrejava o estabelecimento, enquanto gritava repetidamente e em coro «Abaixo o colonialismo!». Procurei saber o porquê daquela «maka» [confusão, zaragata] e explicaram-me que se devia ao facto «do povo» exigir a mudança do nome de um dos pratos da ementa e o proprietário se ter recusado a fazê-lo. Quando perguntei qual era então esse prato tão contestado, foi-me respondido com a maior naturalidade: «Cozido à Portuguesa! Veja lá, camarada, então agora não deve ser Cozido à Angolana?» O restaurante acabou por ser completamente destruído e fechou para sempre, lá se perdendo o cozido que me fizera seu cliente.
O segundo episódio ocorreu no final de outubro, próximo já da retirada definitiva dos militares portugueses e da data da independência. Fui almoçar a um outro restaurante, creio que se chamava «Trópico», que ainda havia pouco tinha sido «da moda» em Luanda, e por sinal era bem caro. Logo que cheguei, avisaram-me que devido à situação de guerra – a FNLA ainda estava perto da capital e ameaçava o MPLA – e à saída de muitas pessoas do país, já só tinham um prato disponível. Este era… esparguete com carne guisada. Sem alternativa, acabei por aceitar e enquanto esperava a porta da cozinha entreabriu-se, deixando-me reconhecer, com um barrete de cozinheiro, embora roupa militar, o mesmo rapaz que cozinhava no meu quartel. Quando veio o prato, que paguei ao custo elevado habitual, o sabor e a textura eram rigorosamente iguais ao daquele, miserável, que engolia grátis no quartel. O cozinheiro original tinha regressado ao «puto» [Portugal] e aquela era a solução para a gerência ainda manter a porta aberta.
Rui Bebiano