Ao contrário do que se ouve e lê com bastante frequência, os conceitos de esquerda e direita, nascidos, como é sabido, do conflito de fações que teve lugar durante a Revolução Francesa, e depois determinados pela evolução simultânea do capitalismo, do nacionalismo e dos projetos republicano e socialista, não se encontram «mortos» ou «ultrapassados». Ainda que instáveis, complexos e pautados por contradições, ambos continuam a expor a eterna luta entre, de um lado, um ideal de justiça, igualdade e felicidade coletiva fundado no progresso e nos direitos sociais, e, do outro, uma perspetiva do mundo alicerçada no individualismo, no fétiche do lucro, no conservadorismo e numa ordem social baseada sobretudo em deveres. Anunciar o seu fim faz parte, aliás, do arsenal argumentativo da direita.
Todavia, este conflito entre os dois campos tem, ao longo das últimas três décadas, vindo a coabitar de forma crescente com uma outra contradição. Esta traduz-se num combate entre modelos de sociedade que, no mundo contemporâneo, desenvolvem sensibilidades, valores, expetativas e projetos políticos globais dotados de uma natureza também ela oposta e determinante na vida comum e na experiência da cidadania. Este outro conflito – basicamente, o travado entre sociedades assentes na democracia representativa ou em diferentes formas de autoritarismo – não apaga ou diminui aquele que separa esquerda e direita, mas invoca combates políticos de uma outra natureza que hoje se mostram em primeiro plano. Dois títulos recentemente editados em Portugal esclarecem-nos sobre o preocupante sentido que ele está a tomar.
O primeiro é O Crepúsculo da Democracia, de Anne Applebaum (Bertrand). Tomando como exemplo casos históricos, que vão do estalinismo ao nazismo, no mundo atual, do governo de Boris Johnson ao desmantelar do Estado de direito na Polónia, passando pela Hungria e pelo Brasil, a autora mostra como o anseio da democracia enquanto processo cumulativo e irreversível se tem vindo a confrontar com a asfixia do debate público e a expansão dos populismos, beneficiando aqueles que defendem propostas de natureza divisionista, repressiva e autoritária, e colocando até amigos e antigos companheiros de algumas causas em trincheiras opostas e inconciliáveis. A historiadora chama, aliás, a atenção para o facto deste processo ter hoje bastantes semelhanças com aquele que levou, nas primeiras décadas do século XX, à emergência dos grandes sistemas totalitários.
O segundo livro é De Trump a Putin. A Guerra Contra a Democracia, de Álvaro Vasconcelos (Afrontamento). Nele se expõe o modo como o planeta tende a dividir-se em dois grandes blocos antagónicos. O primeiro é o da «democracia liberal», identificado, não com o neoliberalismo, mas como espaço da liberdade herdeira do iluminismo, da justiça social nascida do movimento operário, da igualdade dos humanos na diversidade de culturas e crenças, da recusa do racismo e de todas as formas de discriminação, da igualdade de género, do dever da solidariedade e da atenção ao sofrimento do outro. O segundo é o do «nacionalismo identitário», apoiado na prepotência e no populismo, na limitação da liberdade, na manipulação da informação e da cultura, na guerra como solução, na desigualdade em função da classe, da etnia, da ideologia ou da religião, e, determinando tudo isto, numa desumanidade resultante do «desamor dos cidadãos».
No seu relatório de 2022 sobre a liberdade de imprensa no mundo – onde Portugal surge em sétimo lugar, num total de 180 Estados, como um daqueles onde esta é mais respeitada –, a organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras mostra com clareza de que forma esses dois universos se distribuem, vendo-se ali como os regimes autoritários, apoiados sobretudo na Rússia e na China, e agora também na Índia, se encontram em expansão por todo o lado. Ao mesmo tempo, do lado dos Estados democráticos os perigos subsistem, traduzidos principalmente na reemergência da extrema-direita, da xenofobia e do racismo, bem visíveis nos Estados Unidos, no Brasil e em diversos estados europeus, mesmo na França dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. O combate da democracia contra o autoritarismo está na ordem do dia e deve mobilizar quem nele escolha o lado justo.
Rui Bebiano
Fotografia de Timon StudlerPublicado no Diário As Beiras de 23/7/2022