O atual alargamento dos processos de comunicação e a crescente facilidade de produzir opinião fazem com que, quando se abordam de uma forma analítica e não linear temas que suscitam grande controvérsia, facilmente quem sobre eles escreve possa ser mal interpretado. Esta realidade relaciona-se também com formas ligeiras de leitura, vendo-se apenas aquilo que se deseja ver, a branco ou preto, muitas vezes sem ponderar a totalidade do argumento. Por isso este texto começa com uma necessária cautela: o seu autor é inteiramente favorável à luta dos professores de todos os graus de ensino por condições de vida e de trabalho que de há muito se têm vindo a desvalorizar. Mais: não lhe parece que ela consiga algo de positivo se não for levada a cabo de uma forma unitária e vigorosa, impedindo os seus interlocutores de a desvalorizarem.
Dito isto, entro no tema difícil que quero abordar. Ele procura argumentar que a luta dos professores, recentemente elevada a patamares de mobilização e de impacto público sem dúvida inéditos, deve necessariamente, incorporando a justiça essencial dos seus objetivos nucleares – sobretudo a melhoria das condições materiais, de trabalho e de carreira de todos os professores, em particular os do ensino básico e secundário –, passar pelo crivo de uma atenção crítica. Isto porque, em sociedades complexas como a nossa, combate algum pode ser julgado sem um trabalho de interpretação que pondere os fatores em jogo e as suas prováveis consequências. Ora, na presente situação, de modo algum todos eles se mostram transparentes.
Não me refiro à diversidade política das forças em campo, nenhuma delas isenta de controvérsia, ainda que praticamente todas se mostrem meritórias nos objetivos. Dos diferentes sindicatos, nem sempre transparentes e justos, às diferentes associações de pais e às estruturas dos professores ao nível de cada escola. Dos organismos de governo no campo da política de educação aos mecanismos intermédios que no plano regional tutelam as escolas. E, acima de tudo, tomando em linha de conta os profissionais que desenvolvem na sala de aula um trabalho digno e imprescindível, tantas vezes tratado com indignidade e descaso, e que têm engrossado esta vaga de protesto. Daí, aliás, em boa parte, as razões desta rápida e forte mobilização, bem como o êxito de algumas das formas que tem tomado.
Por outro lado, não existe movimento social ou corrente política que possam ser avaliados apenas pelos objetivos que reclamam e pelas necessidades a que dizem corresponder. No mundo de hoje, as diferentes formas do perigoso populismo recorrem invariavelmente a objetivos justos e «populares», ainda que estes sejam por ele muitas vezes instrumentalizados. Basta, para se compreender este mecanismo, observar aquilo que, a partir de 2018, ocorreu em França como o impetuoso e bem sonoro movimento dos Coletes Amarelos, mobilizado de uma forma espontânea por um justíssimo descontentamento antissistema, mas aproveitado como uma forma de descrédito da democracia que tem sido capitalizada pela extrema-direita no seu crescimento e no assalto ao Eliseu.
Não é adequado fazer equivaler o caso francês ao dos professores portugueses, mas é inegável a existência, em algumas das vozes ativas na sua luta, de um discurso antissistema dotado de uma retórica demasiado inflamada e desprovido de uma estratégia negocial. Este discurso tenta impor uma lógica do «tudo ou nada», associada a atitudes tipicamente populistas, como a exigência de que as discussões com o governo sejam «transmitidas online», ou reivindicações que ultrapassam os interesses da classe em luta e criticam todos os poderes e todos os «políticos», servindo-se da insatisfação para, por vezes numa linguagem desabrida e ambígua, questionar a sua legitimidade. Nestas condições, os professores ganhariam em manter na sua mais que justa luta alguma vigilância crítica, evitando deixar-se aprisionar por interesses de quem pretende algo que a democracia não contempla.
Rui Bebiano
Fotografia Público/LusaPublicado no Diário As Beiras de 4/2/2023