Esta crónica não tem um fundo moralista, embora possua um fundamento ético, no sentido proposto n’O Mito de Sísifo por Camus: «Todas as formas de moral se baseiam na ideia de que qualquer gesto tem consequências que o legitimam ou que o negam». Isto implica uma pluralidade de práticas e de valores, julgados nas diferentes construções culturais e políticas como legítimos ou como inaceitáveis. Neste contexto, o iluminismo produziu uma perceção peculiar da moral, capaz de combinar liberdade individual e dever para com o coletivo, e depois o romantismo fez dela estandarte. No século XX, que Michel Winock chamou «dos intelectuais», estes assumiram-na como fator-chave da conduta pública e do reconhecimento social.
Na atividade crítica de quem se dedicava à criação artística ou à reflexão filosófica e política, estes modelos tenderam a valorizar o que, num livro de 1998, Tony Judt chamou «o peso da responsabilidade». Este traduzia-se numa atitude de compromisso que na vida pública associava a atividade individual a combates por causas difíceis e necessárias. Deste modo, quem os travava adquiria destaque e autoridade, em particular quando enfrentava os grandes poderes e as formas de pensamento dominante, funcionando, contra estes, como instrumentos de crítica, inovação ou rutura. O que implicou sempre escolhas pessoais, associadas a fatores de risco, sem dúvida, mas capazes de transformar numa luz-guia e num fator de dinamismo quem nesse processo dava a voz.
Pelos anos oitenta, o recuo das ideologias e das utopias coletivas, associado à afirmação triunfante do neoliberalismo, começaram a alterar este estado de coisas. Como lembrou Lipovetsky em A Era do Vazio, a crise da modernidade levou então à emergência, em especial no chamado mundo ocidental, de um novo modelo de sociedade, onde um pragmático individualismo foi colocado no centro de práticas, interpretações e expetativas, enquanto o ideal de participação coletiva e a sua dimensão prospetiva ou progressista perderam prestígio e passaram até a ser desconsiderados tanto pelos média como pelo poder político. Isto fez recuar os ideais de abnegação e de solidariedade que por cerca de dois séculos tinham sido muito valorizados.
A intervenção do sujeito pensante ou criador, reconhecido pela obra e pelas escolhas, passou a ser desconsiderada, por troca com a de personalidades inócuas e verborreicas mediatizadas. O homem e a mulher «de sucesso» passaram para primeiro plano, enquanto o intelectual recuava e, desprovido agora da sua voz e do seu exemplo, o cidadão comum ganhou medo e perdeu referências. A emergência da Internet e das redes sociais, associada a novas práticas da comunicação social, ampliou imenso este processo, dando a cada pessoa a possibilidade de falar ou escrever sem por isso ser responsabilizada. Este processo contaminou mesmo certos movimentos sociais, onde têm ocorrido formas de desresponsabilização, com propostas e acusações emitidas sem nome ou rosto.
Desta maneira, «dar a voz» de forma responsável como sinal de coragem e imperativo social transformou-se em algo cada vez menos usual dentro das atuais democracias. Chega-se a elogiar a denúncia anónima, como no tempo da Inquisição ou sob os regimes totalitários, ou a máscara, como nas movimentações embuçadas dos «black blocs» ou nas do grupo Anonymous que recorrem à figura de Guy Fawkes, julgados instrumentos naturais e legítimos mesmo no interior do «Estado de direito». Dada a dimensão de irresponsabilidade que comportam, desequilibram a equidade dos julgamentos, sendo na verdade expressões de cobardia, de intransigência e de incapacidade crítica, e perdendo a dimensão de exemplo.
Rui Bebiano
Fotografia de kleinerteddyPublicado no Diário As Beiras de 10/6/2023