Vivemos cercados por uma forma conformista de encarar o presente. Segundo ela, as sociedades que não se autodestroem apenas podem ser geridas pelos valores e limites impostos pelo neoliberalismo, apresentado como o mais perfeito e o último dos sistemas que atravessaram a história. Para este, como afirmava Margareth Tatcher e continuam a repetir os defensores do desmantelamento do Estado social, «não há alternativa». Esquece-se a ideia de progresso proposta pelos filósofos iluministas, que orientou os grandes ideais de transformação depois seguidos por mais de duzentos anos. Ao mesmo tempo, fixa-se o futuro num horizonte expectável, de cor cinza, como se a vida das sociedades fosse agora uma eterna repetição, abandonando-se a perspetiva linear do trajeto histórico, potencialmente moderna e libertadora, e retomando-se à tirania da noção circular do tempo, perante a qual nada de substancialmente novo há a esperar.
Deste modo, habitamos um tempo difícil para a iniciativa das vanguardas políticas, estéticas, filosóficas e vivenciais, por definição empenhadas na abertura de caminhos e na imaginação do novo. Elas requerem sempre o impulso, a ousadia, a experimentação, por vezes a árdua capacidade de provocar situações, de remar contra a corrente ou de saltar sobre ela, sendo isto que lhes concede o dinamismo e a capacidade para gerar mudança. No campo das artes, o cubismo, o futurismo, o expressionismo, o construtivismo, o movimento Dada e o surrealismo projetaram possibilidades, ignoradas até à altura em que emergiram, de representar artisticamente o mundo. Do mesmo modo, no território da política e das ideias, perfilaram-se vanguardas – como o anarquismo, o comunismo, o situacionismo, o existencialismo, o pensamento crítico ou mesmo alguns dos fascismos no seu início – que se afirmaram como destacamentos avançados da transfiguração do mundo e de ensaio do possível.
É verdade que elas podem traduzir, como escreveu François Noudelmann, «movimentos de moda que muito rapidamente saem de moda». Após abrirem caminhos através do seu caráter inovador e radical, acabam por ser recuperadas pelo sistema de mercado e pelo pensamento dominante, ou então passam a repetir-se a si próprias, perdendo a vitalidade e tornando-se caricaturas. No mundo atual, em particular na Europa e nas Américas, esta apropriação das vanguardas pelo sistema – transformando em gasto déjà vu aquilo que nasceu para ser novo – tem-se afirmado com particular ênfase, apoiada nas novas tecnologias da informação e na comunicação global. Aliás, logo pelos anos 40 e 50 os filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer consideravam já a «indústria cultural» como espaço para a padronização de tudo – mesmo gestos, palavras, pensamentos e obras de início inovadores ou a contracorrente –, fazendo-o através da manipulação da sociedade de massas. Em 1974, o crítico literário Peter Bürger abordará, na sua Teoria da Vanguarda, a forma como o capitalismo se apoderou deste universo.
Esta apropriação ocorre também porque o recuo das ideologias e a imposição de um pragmatismo projetado no curto prazo fazem com que não se leve a sério, mesmo nos programas partidários, a capacidade para imaginar além do imediato e do «senso comum». Rejeita-se tudo o que não seja instantaneamente assimilado pelo cidadão, desvalorizando-se o trabalho de quem, individual ou coletivamente, pensa e propõe além desse horizonte limitado. Todavia, sem a capacidade de abrir caminhos e perspetivas que o pensamento e a atitude de vanguarda oferecem, jamais será possível sair do círculo vicioso imposto pela ausência de reais alternativas. As vanguardas, é certo, são sempre destacamentos avançados e minorias, como os batedores que nas batalhas do passado iam à frente para reconhecerem o território inimigo, mas sem elas as sociedades permanecerão bloqueadas. Se ciclicamente renovadas, podem ser faróis que orientam a esperança.
Rui Bebiano
Imagem: fragmento de cartaz do construtivismo russo, c. 1920Publicado no Diário As Beiras de 24/6/2023