O corretor ortográfico do programa onde escrevo ainda identifica a palavra «tudólogo» como erro, mas o dicionário Priberam define-a já como aplicável a quem «comenta ou dá opiniões sobre qualquer assunto como se fosse um perito ou especialista de cada um desses assuntos». O termo é hoje usado para identificar negativamente quem tem voz pública nas televisões, jornais ou redes sociais, falando sobre qualquer tema, seja este a política nacional ou a internacional, a situação económica, a obra de um escritor, um acontecimento histórico ou a crise climática, como se sobre todos os assuntos fosse especialista. Incorrendo inevitavelmente em constantes vacuidades e equívocos.
O problema não consiste em falar sobre qualquer assunto, pois em democracia o direito à palavra é essencial, além de representar uma prova de interesse pela vida coletiva. Além disso, a conhecida frase do romano Terêncio, ao reconhecer que nada de humano lhe era estranho, que tudo lhe interessava, traduz uma atitude que só pode ser elogiada. O que realmente merece crítica e rejeição é outra coisa: é falar sobre assuntos da maior complexidade, apoiando o que diz na presunção de um conhecimento que não existe, e assim ajudando a disseminar a ignorância, o boato e a falsidade.
Possuir uma sabedoria de longo alcance e falar sobre qualquer assunto tem sido motivo de admiração, mas também de descrédito. Na antiguidade, a figura do polímata – do grego polymathēs, aquele que aprendeu muito – emergiu como excecional: um dos primeiros dos que podemos hoje seguir foi o grego Arquimedes de Siracusa, conhecido como matemático, filósofo, físico, engenheiro, astrónomo, inventor e até estratega militar. Uma das personalidades determinantes do Renascimento, Leonardo da Vinci, foi outro das mais notáveis polímatas. O enciclopedismo, emergente na «época das Luzes», terá representado uma das últimas formas, hoje ainda com adeptos, de elevar como modelar e supostamente possível um saber totalmente englobante.
Esta escolha teve os seus refutadores. Criticando o historiador Heródoto, Heráclito de Éfeso, mais conhecido pela sua teoria sobre a fluidez do tempo, contestou a argumentação generalista utilizada por quem não conhecia os factos, opondo-se mesmo a quem procurava o máximo de conhecimento sem dominar o «logos», isto é, o fundamento e a proporção do discurso. Este foi o ponto de partida para o trabalho dos adeptos da ciência pura, crescentemente dominante entre os séculos XVI e XIX, tendente a desconsiderar um saber demasiado preocupado com o todo. No essencial, a mesma orientação a que a lógica neoliberal e os governos dão hoje curso, considerando mais apropriado, para as novas gerações, um quadro de formação técnico e ultra-especializado, tendente a diminuir os saberes estruturantes vindos das humanidades e das ciências sociais.
Tem sido o triunfo desta perspetiva a deixar campo livre para a afirmação do tudólogo, transformado em «estrela» da comunicação social que tudo «explica». Ao contrário do intelectual público, para quem o conhecimento se articula com uma interpretação global e razoável do sentido da história, este fala de tudo sem necessidade de coerência, vivendo, como um parasita, de dados empíricos e de imprecisões. A propagação da ignorância e da excessiva especialização abre-lhe caminho, confirmando o ditado que proclama poder ser «rei em terra de cegos» quem apenas possua um olho. Só uma revalorização do conhecimento, integrando em simultâneo sabedoria e «logos», lhe poderá fazer frente.
Rui Bebiano
Fotografia via UnsplashPublicado no Diário As Beiras de 9/9/2023