Apesar de ter sido utilizado em textos da cultura política desde os meados do século XIX, o termo «Woke», que deriva da expressão «stay woke» – em tradução livre, «fica alerta» –, expandiu-se muito mais tarde. É atualmente associado a alguns movimentos e práticas reivindicativas que enfrentam o racismo, a discriminação de género e outros fatores de injustiça social, defendendo uma tomada de consciência ativa e uma intervenção imediata. Apesar de lhe reconhecer a utilidade inicial, o filósofo Jean-François Braunstein considera-o hoje «uma «religião sem perdão», instalada sobretudo em ambientes académicos, que terá evoluído como uma «epidemia que varre o mundo ocidental».
Este juízo negativo é em boa parte imerecido, pois o movimento emergiu no contexto de um despertar coletivo justíssimo, o «Black Lives Matter», projetado em 2013 contra a forma como a polícia dos EUA agredia ou assassinava cidadãos afro-americanos, levianamente tomados por delinquentes apenas por o serem, tornando-se importante na tomada de consciência de muitos norte-americanos para esta segregação. Já como corrente e ideologia crítica, o wokismo passou depois a ser associado, para além da luta antirracista, a outros combates contra formas de marginalização ou de silenciamento impostas a pessoas e grupos devido ao género, à sexualidade ou à categoria identitária. Neste sentido, alimentou o combate global emancipatório e pelos direitos humanos.
Infelizmente, o problema que Braunstein refere é verdadeiro. Emergiu quando esse apelo ao grito foi capturado por setores radicalizados, provindos sobretudo de meios académicos norte-americanos, depois alargados a outros lugares da Europa e da América Latina. Estes apropriaram-se da premência e da justeza das causas envolvidas para ativarem lutas, tomadas em mãos por minorias sectárias e sem enraizamento social, embora com bom acolhimento nos jornais e televisões sedentos de sensacionalismo, que a propósito geram um vórtice de ruído bem acima da sua dimensão. Convertendo o movimento, como diz a ativista Chloé Valdary, «numa faca de dois gumes».
São sobretudo quatro as áreas do combate social nas quais o wokismo se tem instalado: o feminismo, o antirracismo, as causas LGBTQIA+ e a emergência climática, onde os seus praticantes têm mantido uma presença tribalista, irredutível em relação a divergências formais e de conteúdo, que afasta setores potencialmente mobilizáveis. Hostilizando ou amedrontando, por vezes através do ataque «ad hominem» e da calúnia, a quem, ainda que no mesmo campo emancipatório, discorde uma vírgula que seja dos seus processos e metas. Por exemplo, em Racismo Woke, John McWorther fala de como a corrente tem transformado o antirracismo «numa espécie de religião irracional, inalcançável e fraturante», convertendo aliados em inimigos e enfraquecendo-o.
Tão chocante e perigoso quanto este «modus operandi», é o falso fundamento científico que o wokismo invoca em textos teóricos voltados para o próprio umbigo. Ali, misturando crença, propaganda, expetativas e algumas ideias justas, enjeita-se sistematicamente a criação de pontes, procurando por vezes coagir-se quem se afaste de preceitos e interpretações exibidos como dogmas. Mostra uma profunda ignorância da história, fazendo tábua rasa de conceitos como humanidade, universalismo, progresso, luta de classes e liberdade, construídos com o pesado sacrifício de sucessivas gerações, tomados como criação de um iluminismo «eurocêntrico», quando este na verdade sugeriu, pela primeira vez na história humana, o diálogo entre culturas. Mas inclui também uma reflexão fundada na observação empírica, que exclui aspetos contraditórios e complexos da realidade.
O dedo na ferida foi colocado por Susan Neiman no recente A Esquerda não é Woke. Nele se mostra como as forças progressistas, ao ignorarem por desleixo ou temor este delírio obscurantista, têm deixado correr a sua versão caricatural do combate emancipatório, apropriada pela extrema-direita para assustar os cidadãos e se promover. Na verdade, ao afirmar o seu combate fundado num incessante «nós contra eles», transformando potenciais aliados em adversários ou indiferentes, o wokismo perverte a justiça pela qual clama e golpeia a emancipação que diz querer. Deve, por este motivo, ser denunciado e combatido por quem deseja sociedades melhores, mais igualitárias e mais livres.
Rui Bebiano
Fotografia de Ghis BakourPublicado no Diário As Beiras de 13/7/2024