Li ontem, no Público, um artigo de opinião Alexandra Lucas Coelho sobre a convenção dos democratas norte-americanos, pejorativamente intitulado «Kamalas, Obamas, Tonys & Tims: o espetáculo da América que arma a guerra», que é claro sinal de um posicionamento desastroso e irrealista face à política norte-americana e aos seus reflexos no mundo. Lamento dizê-lo, pois, apesar de com frequência pautado pelo viés do sempre restritivo «wokismo», gosto geralmente daquilo que, em diferentes géneros, a autora escreve.
O que ela afirma no artigo é típico de um lado da esquerda incapaz de entender de forma dinâmica e realista a enorme complexidade da América, a especificidade do seu sistema político e o papel incontornável dos EUA no equilíbrio político global. Procurando o impossível, este padrão de discurso defende, perante eles, objetivos e programas de todo extremos e irrealistas, mostrando-se incapaz de incorporar a noção de prioridade e de compromisso. E esperando ainda por escolhas que até na Europa seriam consideradas de uma radicalidade avessa a quaisquer consensos.
A dada altura, escreve a ALC sobre o discurso de Kamala Harris: «Eu vi e ouvi uma mulher filha de uma indiana e de um jamaicano dizer, mais uma vez, que as vidas palestinianas não contam o bastante. Não tanto como as dos 109 reféns de que falaram o pai e a mãe israelitas convidados para o palco.» Para quem efetivamente o viu e ouviu na íntegra, estas palavras são no mínimo parciais. Porque o que Harris fez foi referir os métodos do Hamas e os crimes do atual governo de Israel, tendo, além disso, falado da autodeterminação da Palestina. Ao que, aliás, se seguiu enorme ovação dos delegados presentes.
Defender uma tomada de posição apenas e totalmente anti-Israel, e ignorar os imprescindíveis esforços para um acordo de cessar-fogo em Gaza, deixando, na região, o terreno livre para os regimes e grupos radicais islamitas, seria, para além de politicamente injusto para todos os povos da região, uma forma de oferecer, de mão beijada, as presidenciais norte-americanas ao candidato republicano. A cegueira política tem destas opções, ou não se chamasse ela cegueira.
Rui Bebiano