1 – O que aconteceu ontem, dia 5 de novembro de 2024 – fixemos a data, pois ela será marcante e traumática – nas eleições presidenciais dos Estados Unidos da América, foi bem além daquilo que a generalidade dos observadores e comentadores tinham previsto. A vitória de Donald Trump não foi sequer tangencial, contrariando a generalidade das sondagens e das expetativas de quem, dentro e fora da nação fundadora da democracia moderna, jamais previu pelo menos uma folga destas. Ela coloca aos norte-americanos, e também a todo o planeta, problemas associados ao que se antevê ser uma viragem abrupta no entendimento da democracia liberal, no equilíbrio entre os Estados, nas dinâmicas da cidadania e na vida das pessoas comuns.
2 – As análises serão, por certo, necessariamente ponderadas e plurais, tomando em linha de conta fatores vários e distintas hipóteses, inevitavelmente divergentes na justificação do acontecido e na abordagem daquilo que agora se espera acontecer. Dois fatores parecem desde já evidentes: por um lado, a consideração de que as dinâmicas e as armas do populismo atingiram patamares que levam à fácil instrumentalização de pessoas minimamente sãs e de sociedades julgadas imunes ao vírus do ódio e da autocracia; por outro, como já tem sido dito, a perceção de que o binómio economia-democracia tende a passar, nas preocupações de muitos eleitores, e não apenas na América, de um complexo coerente a equilibrar para um antagonismo potencialmente explosivo.
3 – Em termos práticos, as consequências imediatas ou próximas são já em larga medida previsíveis, até porque boa parte delas consta de declarações e de intenções programáticas expostas abertamente por Trump e seus partidários. Não se tratará apenas de problemas relacionados com os direitos reprodutivos das mulheres, com a situação dos imigrantes e das minorias, com o funcionamento da educação e do sistema de saúde (prevendo-se um regresso à política antivacinas), com a afirmação de um Estado policial, com o recuo dos mecanismos de justiça, com o assalto à liberdade de informação, com a paulatina destruição do estado de direito e de muitas das garantias da Constituição Americana de 1788.
4 – A vitória de Trump terá também pesadas e rápidas consequências para o equilíbrio geopolítico mundial, com uma grande condescendência em relação aos interesses militares e económicos da Rússia e da China, com o abandono a curto prazo da Ucrânia ao seu próprio destino, com um maior apoio aos setores extremistas do governo de Israel, com um recuo nas políticas globais sobre as alterações climáticas, e também, quase naturalmente, com um desinteresse por um diálogo construtivo com as democracias da Europa. A brutalidade, associada aos interesses do capitalismo e dos nacionalismos, vai caraterizar a linha de conduta dominante na relação entre os Estados.
5 – «E agora, o que fazer?» por parte de quem se oponha a esta deriva assustadora é a pergunta inevitável. A primeira ideia que ocorrerá a muitos norte-americanos anti-Trump será, por certo, a de que vão passar por tempo muito difíceis, nos quais será necessário desenvolver formas de resistência. Na Europa, será o caráter imperativo de ampliar políticas conjuntas democráticas e justas, e estratégias capazes de enfrentar a lógica de tenaz imposta, de um lado, pelos EUA, pelo outro, pelas duas grandes tiranias da Europa de Leste e da Ásia. Será também impreterível, numa dinâmica de aproximação do complexo e contraditório campo progressista, o repensar do funcionamento e dos fundamentos da própria democracia, de modo a entender de que forma tem esta sido deixada nas mãos dos seus piores inimigos, e de que maneira é possível defrontá-los e vencê-los. Uma «estrada longa e larga», como a evocada na conhecida canção de Lennon-McCartney.
Rui Bebiano