Aquilo que posso responder ao texto de João Tunes, a propósito das conjecturas sobre os acontecimentos de Talin que deixei um pouco mais abaixo, é que concordo inteiramente com ele sem negar aquilo que afirmei. Mas admito que possa não ter sido suficientemente claro. Ou que tenha parecido demasiado ligeiro.
Concordo com o facto de, se isolarmos o que se passou em Talin e aquilo que aconteceu em Santa Comba, depararemos com dois casos historicamente bastante distintos. Seria absurdo negá-lo. Por outro lado, também me parece irrecusável, no que se refere à essência dos dois momentos referidos, o facto de não existir, nem poder existir, «um corte entre a reprodução desejada e a recriação celebrada». Em um e outro dos casos, o passado não foi meramente inventado ou manipulado por quem desceu à rua. Ele existiu, deixou um rastro na memória, e, ademais, vive ainda na condição actual de parte significativa das gerações que dele receberam determinados legados.
Aquilo que pretendi dizer foi que, para grande parte dos que não viveram aquele tempo, ele é em larga medida idealizado e, de alguma forma, reproduzido de acordo com fórmulas simplistas, as quais não integram toda a informação e reagem a estímulos dos media, sobrevalorizando aquilo que parece momentaneamente «útil» em termos políticos. No caso estoniano, os descendentes dos russos são convidados a subvalorizar o horror estalinista, ao qual muitos dos seus antepassados de modo algum permaneceram imunes, em detrimento de um revanchismo nacionalista que a imagem da resistência antinazi ajuda a definir e a legitimar no plano simbólico. No caso português, aqueles que nem os filmes a preto e branco sobre o Estado Novo viram, descem à rua, na sua rejeição da democracia, utilizando o rosto do ditador basicamente para concitar vontades e expectativas que são de agora.
Sobram os mais velhos, que possuem leituras mais complexas e transportam vivências de um passado que não podem esquecer. Mas não são estes quem, ressalvando certos casos que roçam a patologia e o mais profundo ressabiamento, vem para a praça gritar «vivas ao António». Em Talin, pelas imagens que me chegaram, também não são os octogenários que combateram Hitler a vir para a rua atirar pedras às novas autoridades democráticas, embora muitos dos antigos combatentes se possam também sentir indignados pela remoção simbólica de uma parte das suas vidas.
Não me parece que aquilo que defendo tenda a desvalorizar o impacto presente da memória do estalinismo ou do fascismo. Apenas tem em consideração a forma como as imagens do passado são decifradas na actualidade. As lunetas através das quais uma grande parte das pessoas que têm hoje menos de 30 ou 35 anos o observam. E, nestas «coisas da rua», agora são elas que contam.