O Houaiss considera intelectual aquele «que vive predominantemente do intelecto», dedicado a actividades «que requerem um emprego intelectual considerável». Ou então o sujeito que mostra «gosto e interesse pronunciados pelas coisas da cultura, da literatura, das artes», por isso considerado «erudito, pensador, sábio». Este é também o significado atribuído à palavra pelo cidadão comum, aplicado em regra ao ser raro, de socialização difícil e elevado número de dioptrias. Que habita esse limbo separador das pessoas vulgares, a quem a leitura e o conhecimento que dela se desprende de pouco ou nada servem, dos deuses e semideuses que não precisam conhecer pois são já omniscientes.
Como meio mundo sabe, o termo surgiu no final do século XIX e foi divulgado a partir da intervenção de Émile Zola e de Anatole France na polémica em torno do caso Dreyfus. Associado a uma participação cívica que distinguia aquele a quem se aplicava, afastando-o do perfil do sábio confinado à sua torre de marfim. Para Maurice Blanchot, a condição intelectual aplicava-se «a uma parte de nós mesmos que não apenas nos desvia momentaneamente de nossa tarefa mas que nos conduz ao que se faz no mundo, para julgar e apreciar o que se faz». Não existiria, portanto, a figura do intelectual que era apenas um «sábio» em tempo integral: para se transformar num intelectual, o «indivíduo culto» precisava desdobrar-se, acumular funções diversas, deixar de lado os saberes particulares, para se dedicar em full-time ao trabalho da crítica e à luta por aspirações universalizantes. Interpretando o passado e o presente visando a construção ideal do futuro. Foi neste sentido que Antonio Gramsci, entendendo que «todos os homens são intelectuais» uma vez que pensam e reflectem sobre o mundo utilizando o seu próprio conhecimento, considerou que «nem todos desempenham, na sociedade, a função de intelectuais». Estes têm então uma missão a cumprir, dando corpo, como elementos orgânicos, não só ao movimento social mas a todo um trabalho cultural que a este deve encontrar-se associado.
Só que este papel apenas ganha destaque quando, através da sua intervenção reflexiva e do seu saber, o intelectual se mostre portador de uma certa «autoridade científica», sendo através da sua imagem social – alcançada através da projecção pública que obtém como político, professor, cronista, jornalista, escritor ou artista – que estabelece relações com a sociedade e assegura um estatuto ao mesmo tempo privilegiado e dinâmico. Edward Said fala, nesta direcção, do intelectual como «figura representativa». Alguém que representa um ponto de vista e que o faz de modo necessariamente público – falando, escrevendo, ensinado ou aparecendo na televisão – o que envolve inevitavelmente, e em simultâneo, «empenhamento e risco, arrojo e vulnerabilidade». Sempre em cena, portanto. E sempre na corda-bamba também. Desenvolvendo, como sugeriu Foucault, uma forma de «sacerdócio» que deriva tanto das suas posições sociais e políticas quanto da competência científica que mostra.
Um conjunto de factores explica, entretanto, o recuo, hoje visível, deste modelo de intelectual que busca, através dos seus actos públicos, uma aliança entre ética e política. Em primeiro lugar, o enfraquecimento das ideologias do progresso e a ascensão dos valores individualistas, desviando o intelectual de uma missão com um sentido claro que deveria dar voz aos interesses da comunidade. Em segundo lugar, a especialização dos saberes, condenando a uma gradual irrelevância social esse tipo de pessoas que sabia de tudo um pouco, que falava de tudo um pouco, sem jamais se vincular, como diz hoje o jargão, a «competências específicas». Em terceiro lugar, a intervenção dos média, que retirou público e diminuiu o palco no qual elas tinham lugar cativo, assim as afastando do indispensável protagonismo. Em quarto lugar, a disseminação da capacidade de intervenção dos cidadãos, reduzindo a necessidade de figuras-tulares capazes de funcionarem como porta-vozes ou catalisadores dos interesses (o aparecimento dos blogues reforçou, aliás, esta situação). E em quinto e último lugar, a perda de capital simbólico da figura do pensador independente, reconhecido pela sua dimensão moral e de rectidão, pela coragem da opinião única, por troca com o político de aparelho, frequentemente um pragmático de recorte dúctil, traduzido fisionomicamente no aparátchik que não diz o que pensa mas aquilo que o aparelho espera que ele diga. A desastrada carreira partidária de dois dos nossos últimos intelectuais e o achincalhamento a que têm sido submetidos por parte de alguns dos seus ainda ou ex-correligionários – refiro-me a José Pacheco Pereira e a Vasco Pulido Valente, não estando aqui em causa as suas opiniões, mas sim a sua atitude – ilustram bem esta incompatibilidade.
Por tudo isto me parece inapropriado, para não dizer bastante caricato, a crescente invocação da figura do ministro Augusto Santos Silva, que tenho visto mencionada em publicações periódicas e em blogues, como a de um (ou a «do») «intelectual do PS». É que não basta ser-se professor catedrático, terem-se dado aulas numa universidade, editado alguns livros e artigos, escrito artigos de opinião nos jornais e citado Pierre Bourdieu para se ser considerado um intelectual. À maneira zoliana, bem entendido. É preciso, isso sim, assumir-se um perfil moral e de independência, de militância e de ousadia, de coragem e de capacidade de análise, que não combina com um discurso público previsível, sem capacidade de mobilização, subserviente em relação às estratégias mais imediatas e comezinhas do poder. Se a pessoa em causa fosse de facto um «intelectual do PS», utilizaria o seu lugar privilegiado para ajudar a superar o tacticismo cego, para mobilizar o seu próprio partido e a sociedade em favor de uma percepção crítica e de uma dinâmica mais acentuadamente política da actividade de governação. Não se mostrando apenas como uma espécie de cônsul provisório dos aparátchiki.