Na página da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique deparo com um artigo que me parece pouco sério, assinado por Alain Gresh, editor do jornal, com o título «Gaza: ‘choque e pavor’». Trata-se, a meu ver, de um exemplo de impudor cheio de boa intenções alardeado por certos analistas – mapeados entre a esquerda mais ortodoxa e aquela que se autoproclama crítica mas é incapaz de reapreciar dinamicamente o seu sistema de crenças – sempre que falam da eternizada crise do Oriente Médio. O autor parte de uma situação assustadora, sobretudo para os civis que não podem escapar-lhe, que se prende com os actuais bombardeamentos israelitas lançados sobre a faixa de Gaza. Pretende aqui, como tantos outros textos o procuram fazer, denunciar a sua brutalidade e protestar contra o seu prolongamento, o que me parece ser uma causa boa e necessária. Os militaristas israelitas não podem sentir-se livres para promoverem uma escalada sem fim e com danos intoleráveis. Mas Gresh fá-lo recorrendo a um conjunto de omissões e de insinuações que não podem servir quem pretenda proceder a uma abordagem equitativa e justa do problema, a qual passa por tudo menos pela consideração das «duas partes» – como se neste conflito seja possível separá-las com toda a clareza sem opções intermédias – enquanto antagonistas de uma luta unívoca entre o bem e o mal.
Começa por ignorar completamente a provocação do Hamas que antecedeu o ataque de Israel, traduzida no lançamento, a 20 de Dezembro, de dezenas de rockets sobre as cidades judaicas de Ashdad e Ashkelon (fala apenas da sua ténue reposta após o início dos bombardeamentos israelitas). Continua tentando provar a «legitimidade democrática» do governo islamita do Hamas quando este tomou o poder de uma forma descricionária após uma guerra de extermínio contra os militantes da Fatah que conduziu à fuga de Gaza de dezenas de milhar de refugiados palestinianos. Esquece que, como até o próprio Hamas reconhece, cerca de 250 dos mais de 300 mortos nos ataques da aviação israelita pertencem às milícias do movimento (o que não isenta de crítica esses ataques, mas indica o seu sentido primordial). Ignora a repelente estratégia dos islamitas no sentido de disseminarem quartéis e rampas para o lançamento de rockets no centro de áreas habitacionais que lhes servem de escudo humano. E, por fim, faz praticamente tábua rasa dos direitos históricos dos israelitas à presença na região, que não podem, nem devem, sobrepor-se aos dos palestinianos, mas precisam ser conformados com eles. Não seria preciso tanto para julgar um artigo como parcial e, realmente, pouco honesto.
Amos Oz tem falado repetidamente de uma inevitabilidade que ele próprio já não verá, e muitos de nós não terão também tempo de ver, que é esta, bem simples: irmãos de sangue e vizinhos, palestinianos e judeus, custe o que custar, estão condenados a entenderem-se, a colaborarem, a miscisgenarem-se até. Ainda que contra a vontade de quem, lá como aqui deste lado da Europa, sofre de miopia e se empenha teimosamente em atear rastilhos para alimentar a sua leitura maniqueia do mundo. Ao contrário deles, prefiro valorizar o sinal de aproximação entre dois universos expresso nesse instinto de proximidade, desenhado por Le Clézio em Estrela Errante, que foi possível desenvolver entre Esther, a judia que fugira aos nazis e chegava a Israel à procura de reconstruir a sua vida, e Nejma, a palestiniana que ao mesmo tempo deixava o país em colunas de refugiados, rumo ao exílio. Leio: «A água, a terra e o céu mistura-se. Há uma brisa que se espalha e oculta imperceptivelmente o horizonte. (…) Tudo está calmo no molhe.» Um dia, contra os cães raivosos, também as pessoas partilharão o destino comum dos elementos. Até que esse dia chegue, porém, convirá que não façamos por adiá-lo alinhando cegamente num dos lados do partido do ódio.