Vale a pena ler com alguma atenção o dossiê «A Esquerda e o Poder» que vem no número deste Janeiro do Le Monde Diplomatique português. O tema será provavelmente eterno, e os quatro testemunhos escolhidos demonstram de que maneira, felizmente, a declaração do binómio mais facilmente promove a divergência do que instiga o unanimismo.
Ao contrário do habitual neste tipo de nota, refiro primeiro os dois textos que me parecem francamente menos estimulantes. O artigo de António Abreu, ex-vereador lisboeta pelo PCP, intitulado «Diz-me como o exerces…», é crispado e previsível. O primeiro parágrafo dá o mote, pois nele se anuncia logo que o autor não vai «dar para o peditório que se vai arrastando penosamente das agregações, reorganizações e reconfigurações das várias componentes da esquerda», deixando claro que é «a experiência política» que o afasta de «tais conversas». Pouco há, pois, para discutir, tratando-se sobretudo de reafirmar convicções sobre a disjunção esquerda-direita que Abreu resolve sem quaisquer sobressaltos para quem conheça as posições oficiais do seu partido. Desenvolve depois algumas considerações que se fixam no papel da (sua) esquerda no domínio do poder autárquico. Já o texto de André Freire, «Esquerda plural e clareza das alternativas», nada tem de preconceituoso, mas integra a marca de uma boa parte das suas intervenções públicas: revela um exercício de ciência política de orientação normativa, criterioso e documentado como seria de esperar, mas infelizmente com um interesse um tanto relativo para o padrão de debate, mais de uma natureza prospectiva, mais quente, que aqui o tema proposto parecia reclamar e provavelmente a maioria dos leitores agradeceria.
Os outros dois testemunhos são claramente mais interessantes e, acima de tudo, abrem-se a um debate que possa ter em conta o necessário aggiornamento da esquerda, os rostos diversos que a sua definição como território de resistência vai tomando, e a sua ligação às experiências de conquista e de partilha do poder. Em «Poder fazer, fazer o poder», Daniel Oliveira recupera algumas das posições públicas que tem manifestado sobre as possibilidades da esquerda conservar a suas capacidades no terreno da contestação e da prática contracultural, sem que tal implique obrigatoriamente uma recusa de participação, ou até de partilha, no campo do poder. Recusando que a lógica dos movimentos sociais os reduza às relações de enfrentamento com a política institucional, sublinha que a participação da esquerda da qual fala nos organismos de decisão pode impulsionar mudanças pelas quais ela se tem batido. Mas avisa que «a luta pelo poder nas instituições de Estado» não só não dispensa esses movimentos «como precisa deles se quiser mudar alguma coisa.» Deixa claro constituir um erro o voltar das costas a esse espaço de intervenção, por troca com uma cultura de contrapoder ruidosa mas sem efectiva capacidade para mudar as coisas.
Por sua vez, José Neves, em «Alguns lugares-comuns sobre o poder», caminha de certa forma em direcção contrária, deixando em alguns momentos no ar a possibilidade negativa de o poder, o poder sem si, «sujar» a capacidade positiva de insubordinação diante da ordem injusta que a matriz da esquerda deve necessariamente incorporar. Provavelmente, este artigo é dos quatro o mais ambicioso, sendo o único que aborda criticamente algumas das fundações contemporâneas do conceito e da actividade de esquerda, colocados ambos sob uma perspectiva temporalmente situada que parece fecunda. Mas é também o único que não sugere respostas imediatas, pondo o acento tónico na diversidade das situações e na obrigatória capacidade de reformulação e de redescoberta que a esquerda e as suas organizações precisam manter para se adaptarem, reorganizarem e agirem num mundo crescentemente complexo: a ‘forma’ como elas fazem política deve então, nesta direcção, «ser algo tão ou mais importante do que o conteúdo das ‘políticas’ que defendem.»
O dossiê do LMD aproxima sintomas, vírus e fármacos. Não se ocupa, felizmente, da perfeição futura do doente quando por um passe de magia revolucionária este retornar ao estado saudável. Em parte, foi esta presunção de mudança que produziu o modelo unívoco e autofágico de esquerda que o tempo se tem encarregado de varrer. Para que outro, menos peremptório, mais plural, possa seguir o seu caminho.