Publicado numa outra versão na LER no. 76
O título, Foice e Martelo, evoca uma publicação militante ou uma daquelas obras mais grosseiramente anticomunistas dos tempos da Guerra Fria. Mas trata-se antes de uma divertida viagem, centrada na proliferação do humor vivida entre 1917 e 1989 nos países da Europa de Leste, que o apresentador de televisão e escritor britânico Ben Lewis desenvolveu a partir de uma extensa pesquisa sustentada na leitura de livros e de artigos de jornal, na consulta de arquivos da polícia e dos tribunais, e na gravação de alguns depoimentos orais.
Sob os regimes do «socialismo real», coexistiram quase sempre dois tipos de humor. Um, mais variado e dependente das circunstâncias, era o das anedotas clandestinas, populares, anónimas, vocacionadas para a paródia das falhas ou das iniquidades do sistema. O outro, oficial, abrangia algumas revistas, o cinema, a rádio e o espectáculo musical, procurando servir-se da sátira, ainda que de forma contida e centrada numa lógica de «humor positivo», para obter o apoio das populações ou para as educar de acordo com objectivos políticos categóricos. O primeiro tipo é, naturalmente, muito mais rico e interessante, surgindo com frequência como veículo de resistência, ou pelo menos de crítica, embora comportasse riscos muitíssimo elevados para quem dele se servia. Milhares de cidadãos foram detidos, enviados para campos, expulsos dos empregos, ou ficaram sem os seus bens, por haverem contado pequenas anedotas, ou dito piadas que envolviam dirigentes do Partido e do Estado, muitas das quais pouco mais eram, como se pode hoje provar, que meros jogos de palavras, inofensivos até aos olhos de alguns dos condenados. Mas era tão forte e constante a sua presença que até membros do aparelho partidário ou da polícia por vezes as contavam aos seus próximos.
Um dos indícios da força dessa presença pode associar-se ao facto de muitas das historietas terem cruzado as fronteiras dos diversos Estados e atravessado gerações. Lewis constrói uma cronologia desse processo, mostrando o modo como a multiplicação do humor não-oficial, ou a alteração dos temas utilizados e das figuras caricaturadas, correspondeu a tempos muito precisos, sendo claro que as décadas de 1930-1940, a da mais dura e repressiva fase do governo de Estaline, foram aquelas nas quais as anedotas se tornaram mais dúbias, enquanto o período do «degelo» krutcheviano, e depois a década que antecedeu o termo das democracias populares, viu este padrão de humor instalar-se como uma «segunda linguagem» em todo o bloco socialista e participar, de uma forma em alguns casos manifesta, no seu desmantelamento.
Um livro desta natureza, comportando um esforço de contextualização e de interpretação do anedotário anticomunista nativo, vale também, e provavelmente em primeiro lugar, pelas inúmeras piadas que oferece. Algumas delas com um forte sentido da ironia. Como aquela na qual à pergunta «qual o sexto sentido que toda a população soviética desenvolveu?» se responde com a frase sacramental «um profundo sentido de gratidão para com o Partido.»
Ben Lewis, Foice e Martelo. Tradução de Susana Serrão. Guerra e Paz, 368 págs.