Publicado numa outra versão na LER no. 76
John Gray sustenta que a experiência política contemporânea não é senão um capítulo da história da religião, procedendo do cristianismo e da sua concepção linear do tempo. Ela integra a crença num momento e num locus utópico que saiu reforçada com a afirmação, após o triunfo da Revolução Francesa, de narrativas apostadas em conceber a História como trajecto lançado num único sentido, em condições de abrir as portas a um amanhã irrevogavelmente afortunado. Expressão de uma vertigem que sublima o antigo impulso religioso, a retórica pós-revolucionária – nas vertentes jacobina, bolchevique ou nazi – afirmou assim a crença num futuro colectivo, feliz e decisivo, embora se tenha mostrado inapta para promover a sua efectiva construção. Gray considera que ela não fez senão retomar as convicções messiânicas, fundadas na ideia de que a História possui uma intriga subjacente, que cruzaram a Baixa Idade Média e atravessaram os tempos modernos, dando corpo a movimentos milenaristas de natureza religiosa ou secular.
Em grande parte de A Morte da Utopia e o Regresso das Religiões Apocalípticas, ocorre um esforço para mostrar de que forma em diversas situações contemporâneas – como a ascensão do neoliberalismo e da Terceira Via, o intervencionismo militarista americano, a ascensão dos fundamentalismos islâmico e cristão, ou as tensões em redor das novas formas de terrorismo -, se detecta o mesmo erro básico e funesto, traduzido na convicção de que existe uma espécie de finalidade histórica única, destinada a impor um modelo universal, pela qual alguém deve assumir a responsabilidade. Particularmente visada é a intervenção dos utopistas neoconservadores e religiosos na definição da política externa americana sob a administração de George W. Bush, tanto na sua vertente mais pragmática (procurando, por exemplo, impor um modelo ocidental de democracia para o Iraque), quanto no seu lado assumidamente apocalíptico, destinado a vincar o papel redentor dos Estados Unidos da América.
Como numa missa negra – Black Mass é o título original da obra, que a tradução portuguesa não seguiu -, verifica-se uma inversão perigosa do objecto sagrado. A dimensão utópica, essencialmente consagrada como positiva e redentora ao longo dos últimos dois séculos, é aqui voltada então do avesso e apontada aos humanos como um ídolo sedento de sangue, destinado a causar logros, desilusões, ou, bem pior, a impor por toda a parte o sofrimento e a morte. As utopias, diz Gray, «são sonhos de libertação colectiva que na vida real se transformam em pesadelos.»
Nesta obra de filosofia política, patenteia-se uma leitura cínica, embora sedutora, do conceito de utopia. Leitura que passa pela eleição de um antídoto destinado a derrotar o canto de sereia que esta a todo o momento sugere. O autor chama realismo a esse antídoto, definindo-o como a aceitação de que a vida não consiste afinal na demanda de soluções absolutas e salvadoras, mas antes, inversamente, no reconhecimento da existência de problemas insolúveis frente aos quais se devem ir apenas, caso a caso, tomando as decisões possíveis. Contra as utopias que exprimem uma continuação da religião por outros meios, sugere-se pois um contra-veneno. Resta saber se este funcionará e se a atracção pela imaginação utópica não é de facto, como insistiu, entre outros, Ernst Bloch, uma característica recorrente e inevitável, contra a qual a consciência do realismo pouco poderá.
John Gray, A Morte da Utopia e o Regresso das Religiões Apocalípticas. Tradução de Freitas e Silva. Guerra e Paz, 312 págs.