Regresso a um texto que em 2002 publiquei na revista História a propósito de uma então recém-editada biografia do argentino. Uma das poucas disponíveis no mercado que não é apenas «pró» ou «contra».
Retomada em imagens que povoam jornais e documentários, nos muros das cidades, na decoração de espaços privados, em t-shirts e tatuagens, a expressão decidida do Che Guevara, captada há mais de trinta anos pelo fotógrafo Alberto Korda, continua a povoar a nossa imaginação. Como sinal da memória, insígnia de utopias ou insólito produto pronto-a-usar. Omissões várias e umas tantas mentiras, somadas a um certo oportunismo político e comercial – em alguns países vende-se até uma bebida gaseificada, a Revolution Soda, com o rosto do Che estampado como logótipo – têm adensado a carga simbólica que envolve um dos heróis e dos ícones do século que passou. Vale a pena desvendar o mito na sua origem.
Paco Ignacio Taibo II, o autor mexicano de romance negro, ensaiou essa missão num livro editado em 1996. Guevara, también conocido como el Che fornece um olhar poetizado da vida do guerrilheiro, retratando-a como expressão heroica de um destino simultaneamente pessoal e coletivo. O autor não esconde o fascínio pelo seu «santo laico». Anota: «Perto de trinta anos após a sua morte, a sua imagem atravessa as gerações, o seu mito perdura por entre os delírios do neoliberalismo. Insolente, trocista, teimoso, moralmente teimoso, inesquecível».
À parte a assumida sedução, mas talvez por causa dela, Taibo II desenha, a partir de materiais parcialmente inéditos – arquivos cubanos, diários íntimos, testemunhos orais e fotografias esquecidas – uma reconstituição que acentua os traços de um personagem surpreendentemente contraditório. O duro combatente que julgávamos conhecer, o intrépido revolucionário profissional de olhos fixos na sua meta histórica, dá lugar ao homem que duvidava muitas vezes de si próprio. Vislumbra-se assim, nessa narrativa latino-americana de um percurso latino-americano, um Ernesto Guevara de la Serna para aquém do mito. Num fresco situado na fronteira flutuante da biografia histórica e da ficção biográfica, Taibo II procurou devolver à nossa compreensão uma vida aventurosa a seu ver com profundos traços de humanidade.
O francês Pierre Kalfon, jornalista, escritor e diplomata, conhece também o cenário do drama que produziu o mito, pois foi, sucessivamente, diretor da Alliance Française na Argentina, professor universitário e correspondente do Le Monde no Chile, funcionário da UNESCO na Colômbia, na Nicarágua e na Guatemala, e adido cultural em Montevideu (Uruguai) e Santiago do Chile, tendo ainda publicado o testemunho Allende, Chili 1970-1973. Vai para dez anos, arrumou as numerosas hagiografias de Guevara, e, procurando novas informações, ou revendo aquelas que percebeu terem sido sistematicamente manipuladas, empreendeu também a complicada tarefa de reescrever a biografia de um semideus.
O resultado foi um livro, Che. Ernesto Guevara, uma lenda do século, lançado em 1997 e editado entre nós em 2002 pela Terramar. Nele recorre a fontes de informação análogas às de Taibo II, a maioria delas também inéditas e identificadas com clareza, ainda que lamente a impossibilidade de aceder à documentação que continua guardada no interior de Cuba (principalmente aos cadernos pessoais na posse da viúva, Aleida March, que se recusou a mostrá-los). É visível que Kalfon não escreve tão bem quanto o mexicano, mas esforçou-se por produzir, na condição de europeu e de diplomata, uma obra mais despojada do envolvimento emocional e mais atenta às circunstâncias políticas da época. A aridez do discurso é aqui temperada pelo confronto objetivo entre distintas leituras dos mesmos acontecimentos.
Destaca-se, desde o início, o valor, constitutivo da personalidade do biografado e do seu percurso, que é atribuído a uma forte atração pelo risco e pelas posições extremadas: «é sempre ele que, sob o olhar inquieto de todos, trepa ao rochedo mais musgosos e escorregadio, cinco metros a pique sobre a água, e se lança num salto mortal». «Fúser» – a alcunha, resultante da contração de «furibundo Serna», pela qual o Che se tornara conhecido na adolescência – é-nos assim insistentemente mostrado na sua faceta voluntarista, povoada de sombras de um certo pathos, que o tornará admirado, temido, mas, acima de tudo, imprevisível. Um traço perturbante, capaz de realçar a força da sua rebeldia. Ou, dito de outra maneira, a sua pulsão revolucionária.
Momentos e aspetos da vida de Guevara mereceram uma atenção especial da parte de Kalfon. O primeiro refere-se ao longo périplo sul-americano, na companhia do amigo Alberto Granado, em cima da velha moto Norton de 500 cm3 que em 1952 os transportou por uma rota sinuosa desde Buenos Aires até à Cidade do México. Apesar da coincidência temporal, percebe-se que não se tratou do tipo de viagem que os «vagabundos celestes» da Beat Generation – Kerouac, Cassady, Ginsberg – levavam então a cabo muito mais a norte, procurando na estrada a liberdade que a preconceituosa sociedade americana do pós-guerra lhes recusava. Muito pelo contrário, os dois argentinos procuravam já uma «América maiúscula», possuidora de uma dimensão coletiva e de certa forma mística, que iluminará o futuro internacionalismo pan-americano do argentino.
Outro instante decisivo situa-se justamente nesta confluência de destinos. Trata-se do encontro que, no México, envolverá Guevara com um punhado de refugiados cubanos, extrovertidos e determinados, que ali preparavam a invasão da sua ilha e o derrube da ditadura de Fulgencio Batista. Aí se detectam os últimos assomos de uma dúvida agora em vias de solução: «Já nem sei se serei um actor ou um espectador atento à ação». O «soldado da América», tal como se autodefinia então o candidato a guerrilheiro, aproxima-se então do grupo organizado pelos irmãos Castro e, como médico, assina o seu destino tornando-se o único estrangeiro a embarcar, rumo a Cuba, na expedição temerária e fundadora do Granma.
Mais adiante, um novo momento constitutivo do papel histórico do biografado desenrola-se em plena ilha, entre os combatentes da Sierra Maestra, num processo que este livro descreve detalhadamente. É aqui, com o cheiro a pólvora nas narinas e a morte por perto, que se forja o seu perfil militar, disciplinado e inteiramente dedicado ao combate, lançado em nome de uma causa que se presumia democrática, justiceira e necessariamente violenta. Como recordará mais tarde o combatente que aqui vai ganhar a sua estrela de comandante, «tinha à minha frente uma mochila cheia de medicamentos e um caixote de balas; o peso não me permitia carregá-los a ambos; peguei no caixote e deixei a mochila». Para Kalfon, com este exemplo do papel do gesto circunstancial na construção da história, «o Dr. Guevara escolheu tornar-se o Che».
O relato que aqui se faz da sua atuação posterior é de grande importância para se compreender a evolução do processo revolucionário cubano, apoiado na iniciativa de um governo que, em boa parte por influência do argentino, se foi mostrando cada vez mais próximo dos ideais comunistas. As iniciativas e as palavras de Ernesto Guevara, ministro das indústrias e governador-geral do Banco de Cuba, irredutível na aniquilação física dos «contrarrevolucionários» que vislumbrava, situavam-se nos antípodas da previsibilidade e do comportamento protocolar, marcando um estilo informal de exercício do poder que captará uma simpatia internacional visível principalmente entre sectores da «juventude rebelde» de sucessivas épocas e diferentes lugares.
Ao mesmo tempo, o relacionamento preferencial da política externa do novo regime com o bloco socialista liderado pela URSS e com o movimento não-alinhado encontrarão nele o primeiro entusiasta. Porém, como sublinha Kalfon, acabará por ser a inadequação estrutural da personalidade de Guevara ao pragmatismo e à capacidade para estabelecer os compromissos inerentes aos cargos governamentais, que, associada ao crescente desacordo em relação a aspetos da política externa e à resolução violenta das primeiras divergências no interior do regime, determinará em 1965 o seu desaparecimento voluntário de cena. Ao qual se seguiria o percurso quixotesco pelas guerrilhas do Congo, onde rapidamente se incompatibilizou com Laurent Kabila, e pela Bolívia, onde, isolado e aparentemente traído, viria a ser liquidado.
Esta biografia permite redescobrir uma personalidade cujo rosto tem sido retocado por falsificações da história provindas de diferentes quadrantes, ou banalizado pelos média e pela publicidade, separa a vida e a ação de Guevara do guevarismo, que, como tendência, a partir dos finais dos anos sessenta se metamorfoseou num messianismo que se desejou vanguardista e pretendeu necessariamente violento, e amplia também o nosso entendimento do processo de transformação e sobrevivência do regime cubano que o Che ajudou a fundar. Cuja história e cuja identidade pertencem, queira-se ou não, ao património intemporal da esquerda.