Os portugueses que na noite eleitoral de ontem prestaram atenção aos canais nacionais com reportagens e espaços de comentário sobre as eleições no Brasil puderam ter um rápido e eloquente vislumbre daquilo que, nos últimos anos, brasileiros e brasileiras pacíficos e de bem tiveram de suportar diariamente no seu próprio país, ao ponto até de tantos terem decidido emigrar ou de terem deixado de expressar publicamente os seus pontos de vista.
Há alguns dias, perante uma fotografia dos membros do novo Comité Central do Partido Comunista Chinês rigidamente perfilados na tribuna do Congresso destinado a estender e reforçar o mandato de Xi Jinping, senti um frémito de horror. Não é preciso ser semiólogo para ler aquele rebuscado cerimonial, a fixidez dos corpos robotizados, a impassibilidade dos rostos, a coreografia de cores e gestos, incluindo-se nestes a exclusão forçada, diante das câmaras, de Hu Jintao, o anterior presidente caído em desgraça. Mais que traduzir «uma especificidade cultural», como certas boas almas julgarão, eles visam impor internamente a aceitação incontestada da autoridade e, no plano externo, o reconhecimento da força. Se ao cenário juntarmos a quase ausência de mulheres, temos a imagem perfeita de um poder misógino e arbitrário que se celebra a si próprio.
Humanos que somos, todos envelhecemos, todas envelhecemos. Uns muito depressa, outras de uma forma imperceptível. A diferença na era das redes sociais está em que não só o fazemos a céu aberto, mostrando de que modo o tempo vai marcando a nossa existência – embora exista sempre quem jamais torne pública fotografia sua -, como podemos ter à frente, usando-as enquanto termo de comparação, imagens sem rugas que chegam do passado.
Sei que a regra, para muitas pessoas perturbadas com a complexidade dos factos – não, não se trata de um linear conflito entre «bons» e «maus» -, ou com receio de ser injuriada, até por pessoas que considera (ou que até agora considerava), é falar o menos possível sobre o tema. O mesmo acontece com os setores, enredados na defesa de uma paz a todo o custo, que esquecem a necessidade de uma política de alianças em caso de guerra e tendem a equiparar um esforço de defesa a um plano de ataque. Uns e outros procuram meter a cabeça na areia, e isso passa por deixarem, mesmo neste espaço, de escrever sobre o tema ou sequer de o comentarem.
A definição é retirada literalmente da Wikipédia: «O plágio é o ato de assinar, apresentar e publicar uma obra intelectual de natureza literária, científica ou artística (texto, música, obra pictórica, fotografia, obra audiovisual, entre outras), em partes ou na íntegra, cuja autoria pertença a outra pessoa, sem que haja a permissão do autor, no caso de obras com direito reservado, ou reconhecimento da fonte, no caso de obras públicas. Portanto, comete plágio quem se apropria indevidamente da obra intelectual de outra pessoa, assumindo a autoria.» Trata-se de um gesto miserável, não apenas porque supostamente confere a quem o pratica conhecimentos e aptidões que na realidade não possui, como omite e deprecia o esforço e a criatividade detidos por outros, bem como o seu trabalho.
Este é um olhar sobre os efeitos na opinião pública da guerra na Ucrânia, não «apenas mais um artigo» sobre esta. O conflito, que de início comentadores e especialistas militares acreditaram terminar em uma ou duas semanas, está a completar oito meses sem que se vislumbre um quadro de paz. De facto, o aparente desequilíbrio inicial, fundado na força bélica da Rússia, foi rapidamente contrariado por dois fatores: de um lado, a ajuda dos Estados Unidos, da NATO e da União Europeia ao governo de Kiev; do outro, a preparação dos militares da Ucrânia e a valentia do seu povo, que contam com a enorme vantagem moral de conhecerem o terreno e se oporem a um invasor. Ao mesmo tempo, a capacidade militar de Putin revelou-se bem mais frágil do que se supunha, compensando a debilidade com a ameaça do potencial nuclear e a mobilização de reservistas.
Ontem, 5 de outubro, celebrou-se o Dia Mundial do Professor. Professor não é apenas «aquele que dá aulas», como muitas pessoas dizem. Pode ser isso, sem dúvida, mas é sobretudo aquele e aquela que procura, a partir da sua formação – que deve prosseguir sempre, bem para além dos cursos que frequentou – contribuir para a disseminação do conhecimento e para a dinamização da capacidade crítica. Nos anos em que dei aulas, entre 1982 e 2022, quem nelas estava ouviu necessariamente esta recomendação: muito mais importante do que colecionar conhecimento, do que «saber coisas», é ser capaz de relacioná-lo e de tomá-lo na dimensão sempre mutante e contraditória que contém, pensando pela sua cabeça e jamais se submetendo a dogmas e ideias feitas, venham de onde vierem. Como «professor uma vez, professor para sempre», é o que continuo a defender.
Contava um meu professor que certo aluno, ao qual durante uma aula pedira que dissesse o que pensava sobre a função da guerra, teria afirmado odiá-la, pois sem ela não haveria história e não se veria forçado a estudar uma disciplina que detestava. Apresentado de forma ingénua, o que afirmou esse aluno vai no sentido da conhecida afirmação de Engels, deixada no seu Anti-Dühring, sobre ter sido a violência da guerra «a parteira da história». Isto é, a força dinâmica indispensável e decisiva no longo trajeto das sociedades humanas. A ideia não traduz, por parte do amigo e colaborador de Marx, uma vontade de glorificação do papel da guerra, mas tão só a constatação de uma realidade: goste-se ou não dela, os avanços e os recuos da história das sociedades humanas tiveram a guerra como constante cenário e decisivo fator de transformação.
O principal responsável pela política ditatorial e agressiva da Rússia, a par da China um imperialismo em franca e rápida ascensão – contra o norte-americano, que obviamente não se evaporou -, acaba de justificar, neste 30 de setembro, a anexação de parte de um país soberano que agrediu e procurou destruir com base num «referendo» completamente ilegítimo e manipulado e em nome de um suposto «anticolonialismo». Que é de facto, e acima de tudo, um combate contra as sociedades democráticas e os direitos dos povos, incluindo nestes o russo, à autodeterminação, à paz e à liberdade. Sei de muita gente que estará a delirar com as suas palavras, antevendo já o regresso a um passado pelo qual sentem uma nostalgia sem limites e a que pensam poder um dia poder regressar. Por certo já hoje assobiaram, pelo menos mentalmente, a Kalinka e os Barqueiros do Volga.
A generalidade dos comentadores de política internacional concorda em que o último discurso de Putin representa um evidente sinal do desespero de quem se viu com todas as suas previsões belicistas trocadas e se confronta agora com o espectro de uma derrota militar na Ucrânia. Depois da sua intervenção, a situação piorou ainda, com alguns sinais bem visíveis, como a fuga de pessoas da Rússia perante a ameaça de uma mobilização forçada para a guerra, o regresso das manifestações de rua, logo reprimidas pela polícia, o imediato reforço da ajuda militar ocidental a Kiev e as posições da China e da Índia, agora nitidamente desconfortáveis com o belicismo desvairado, na forma de fuga para a frente, do seu aliado e, mais recentemente, untuoso cortejador.
Na sua cegueira, amigos e cúmplices de Vladimir Putin terão exultado com a sua última declaração. Principalmente por sete motivos, perante os quais é fácil contra-argumentar, mas que estes setores jamais questionam, ficcionando a sua própria visão da situação. Em primeiro lugar, porque assumiu formalmente que a Rússia está em guerra, deixando claro que antes andou a enganar os seus próprios concidadãos. Em segundo, porque decidiu o lançamento da mobilização de 300.000 reservistas, o que apenas confirma as notícias sobre o desastre militar que tem sido a sua iniciativa na Ucrânia. Em terceiro, porque acusa o ocidente de «chantagem nuclear», embora todos os jornais mostrem há meses as sucessivas ameaças feitas neste preciso sentido por ele e por Lavrov.
Por causa de um longo artigo a publicar em breve, passei perto de três semanas a ler e a escrever sobre a história do Mar Negro. Esse «lago asiático» – como se lhe referia em 1765 a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert – que, devido à presente guerra de invasão da Ucrânia pela Rússia, subitamente passou de lugar distante, quase ignorado ou mesmo recôndito para a larga maioria dos europeus, a espaço que nos habituámos a reconhecer como próximo e em condições de afetar o nosso modo de vida. Todavia, por muitos séculos este papel foi inexistente, ocupadas que estavam as suas margens apenas por pequenos poderes e por comunidades isoladas e autossuficientes.
Nasci menos de um ano após Isabel II ter subido ao trono do Reino Unido. Por isso, para mim, como para uma grande parte dos humanos vivos, a «Rainha de Inglaterra», agora desaparecida, faz parte da mobília cultural do mundo em que vivemos. Mesmo sendo republicano desde que recordo – nas lições da história jamais foram reis, príncipes e duques a entusiasmar-me, preferindo sempre quem se batia pela justiça, pela igualdade, pela beleza ou pelo conhecimento –, e tendo construído ao longo dos anos uma perceção clara do caráter caduco e inútil da realeza britânica, não pude, todavia, ficar imune à figura omnipresente nos jornais e revistas, nos documentários e nos livros de história, até no cinema e na ficção, de Elizabeth Alexandra Mary. Para mais uma mulher bonita e de semblante tranquilo, quase sempre sorridente, que alimentava o imaginário mágico de tanta gente. No meu caso, em particular, o de algumas tias e primas, e do respetivo grupo de amigas, que talvez acompanhassem melhor o que se passava nos salões de Buckingham ou de Balmoral que na casa da vizinha ou mesmo na sua.
1. A Festa do Avante!, organizada pelo PCP em setembro de cada ano, nasceu em 1976, já na fase de refluxo do processo revolucionário, como uma forma de agregação da militância comunista e também como espaço de resistência política e cultural à recuperação do capitalismo. Inspirou-se em boa parte na do jornal L’Humanité, criada em 1930, com a qual o partido francês visou objetivos análogos. A do Avante! teve desde o início uma componente lúdica – aquela que ocupou sempre mais tempo do programa e que atraiu pessoas de diferentes quadrantes sociais e políticos – e outra assumidamente política, traduzida em algumas escolhas artísticas, em uma ou outra sessão cultural, nas brochuras e bibelôs dos pavilhões da responsabilidade dos «partidos irmãos» e sobretudo no grande comício final de domingo à tarde.
A pessoa conformista aceita sem reagir situações que lhe são impostas e intimamente deveria rejeitar ou contrariar. A disposição que melhor a define é a passividade, temendo sempre que qualquer gesto ou palavra que possa afirmar lhe perturbe o modo de vida. Alinha as suas perceções, crenças e condutas pelas dos outros: encomenda a mesma bebida, adota os mesmos códigos de vestuário ou adere cegamente às escolhas que dominam o grupo a que pertence. O psicólogo social Solomon Asch mostrou que pessoas com este comportamento preferem até dar cobardemente respostas erradas, ou contrariar a sua consciência – como acontece com o triste personagem interpretado por Jean-Louis Trintignant no filme Il Conformista, de Bernardo Bertolucci –, a arriscar a reprovação social, que entendem como via para uma fatal exclusão.
Qualquer historiador minimamente a par dos debates ocorridos no seu campo disciplinar, ou naqueles que com ele confluem, no decorrer dos últimos cem anos – desde a velha «Escola dos Annalles», fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch para desmascarar o logro do positivismo histórico – sabe que não existe verdade única na leitura e na crítica do passado. Existem factos comprováveis e existem metodologias que visam aplicar critérios de verdade – de outro modo a história não seria história, mas antes romance, poesia ou lenda -, mas não existem verdades absolutas e estabelecidas por uma vez. As diferentes e renovadas interpretações dependem de fatores diversos, que vão do tempo e do lugar à personalidade do autor e ao seu percurso, como dependem também de novas perceções do fluir do mundo e do constante acréscimo de conhecimento objetivo determinado pelo estudo e pela investigação. Todavia, essa pluralidade, que é até uma das riquezas e fontes de interesse da história como saber e como arte, não pode determinar uma «história» que na realidade o não é, uma vez que deturpa e se molda aos poderes ou aos grupos, correspondendo a uma forma de propaganda ou de manipulação, tantas vezes em apoio de agendas políticas explícitas ou escondidas. Todos os dias deparamos com ela: essa suposta «história» feita por conveniência, à medida, para legitimar convicções ou para iludir o povo. Naturalmente, ela não se envergonha de inventar, de desvirtuar ou de mentir se isso servir os objetivos imediatos de quem inventa, desvirtua ou mente.
Apesar de estar completamente afastado do poder há cerca de 31 anos, quando por discordar de um modo frontal da dissolução da União Soviética – bem ao contrário do que por aí se escreve e diz – se demitiu bruscamente da presidência, a morte, ontem ocorrida, de Mikhail Gorbatchev (1931-2022), também Prémio Nobel da Paz de 1990, não deixa de representar a de alguém com um papel decisivo no complexo curso do mundo contemporâneo. Apesar de já existirem muitas e detalhadas obras, tanto no campo da biografia como no do ensaio, publicadas a propósito da sua vida e do seu trajeto político e influência, a sua personalidade e a sua intervenção permanecem de uma interpretação bastante complexa, que talvez só venha a poder ser melhor clarificada no seu próprio país no dia em que este puder despertar do pesadelo putiniano e conhecer melhor tudo o que ali aconteceu nos últimos cinquenta anos.
Na escrita, a abreviatura utiliza um ponto final, algumas vezes um traço oblíquo, para indicar que aquela se trata de uma palavra incompleta, em condições de dispensar parte da original. Nas últimas duas décadas, o veloz processo de simplificação associado ao uso intensivo das comunicações em linha, não só aboliu o uso desse ponto indicativo, como ampliou de um modo avassalador todo esse processo de simplificação, estendendo a hipótese de recurso à abreviatura a praticamente todas as palavras, e chegando até a abreviar abreviaturas consagradas. Para quem ama verdadeiramente a sua língua ou a dos outros, pode, todavia, seja no processo da escrita ou no da leitura, tornar-se um tormento, como ainda há pouco dias, na última entrevista que concedeu, afirmou a poeta Ana Luísa Amaral.