A característica marcante do que na cidade onde vivo desde 1969 se chamam os «coimbrinhas» – termo pejorativo quase caído em desuso, de que só os últimos «coimbrinhas» se servem para referirem uma entidade abstrata da qual sem o conseguirem se procuram excluir -, consistia em ver o mundo reduzido à escala dos estreitos horizontes da cidade pequena e provinciana que ia do Choupal à Figueira da Foz (apesar da universidade, para alguns críticos por causa dela, ou de parte dela).
Como se sabe, a «cancel culture» (ou «cultura do cancelamento») é uma forma de ostracismo em que uma pessoa é expulsa de uma posição de influência ou fama devido a atitudes consideradas questionáveis – tenham elas ocorrido online ou no mundo real – por parte de quem desenvolve essa operação. Conduz ao boicote dessa pessoa, geralmente alguém prestigiado, de bom nome, que no presente ou no passado, incluindo-se aqui mesmo um passado bastante distante, adotou e compartilhou uma opinião controversa ou teve um comportamento no atual momento considerado errado ou ofensivo. Esta pessoa é então «cancelada», apagada, ignorada ou boicotada por antigos amigos e seguidores, transformados agora em adversários jurados, provocando um grave prejuízo na sua vida pessoal e pública.
Não é preciso ser-se adivinho para antever o que aí vem. O brusco e acentuado crescimento em Portugal da direita radical dos partidos neofascista (Chega) e ultraliberal (Iniciativa Liberal), promovido pelo destaque politico conferido pela sua presença no parlamento, pelas subvenções do Estado a que têm direito, pelo vínculo que mantêm com os códigos do nacional-populismo e pela projeção que lhes vai ser dada – já está a ser dada – pela comunicação social de maior impacto, vai tornar esse setor político, muito provavelmente, a direita com a qual a esquerda terá verdadeiramente de confrontar-se nos próximos anos. As indecisões e a relativa moderação do PSD e o estilhaçamento do CDS farão em breve com que – como aconteceu, por exemplo, na França ou na Itália – a direita «civilizada» veja muito reduzida a sua influência em favor de quem prega ideias tão perigosas quanto simples e primitivas. Contra este setor, o enfraquecimento dos partidos da esquerda e das pontes que entre si possam manter representará sempre uma calamidade.
As avestruzes a enfiarem a cabeça num buraco cavado na areia quando se sentem ameaçadas não passa de uma lenda. Na realidade, isso jamais acontece. Mas como metáfora a lenda tem feito o seu caminho, aplicando-se às pessoas que, confrontadas com uma situação incómoda ou inesperada, para a qual não encontram resposta que as deixe satisfeitas, ou que outros associam a uma solução contrária às suas certezas, contornam o tema e evitam falar dele, agindo, num processo de negação, como se não tivesse ocorrido. Ou então como se não tivesse a importância e o sentido que outros, que nem aceitam ouvir, lhe atribuem, embora possam, em alguns momentos, reconhecer que talvez eles tenham uma pontinha de razão.
No que respeita ao essencial dos resultados das eleições do dia 30 de janeiro, não há volta a dar. Para além da inequívoca e confortável maioria absoluta que António Costa e o PS obtiveram, libertando-os para afirmarem o seu projeto próprio, mas também para os perigos de uma governação autocentrada e sem grandes concessões políticas, e da grande e rápida subida de uma direita à direita do próprio CDS, associada à difusão sistemática do ódio social e do racismo, ou ao recuo do Estado-Providência e ao regresso a um capitalismo selvagem inspirado no mundo brutalmente desigual do século XIX, eles representaram uma inegável derrota do Bloco de Esquerda e do PCP. Esta ocorreu numa escala que nem os mais pessimistas ou clarividentes, apesar dos sinais das sondagens, foram capazes de prever.
Não há volta a dar: os resultados das eleições do dia 30 significaram uma derrota, com uma dimensão que nem os mais pessimistas ou clarividentes conseguiram antever, do PCP e do Bloco de Esquerda, os dois maiores partidos situados à esquerda do PS. Pior, todavia, que essa derrota, já expetável para quem não vivesse cego pelas suas certezas, são sobretudo dois fatores. Em primeiro lugar a sua dimensão, que imporá uma menor capacidade de influência política institucional, agora transferida para o espaço da rua. Em segundo a aparente resistência, da parte das direções de ambos os partidos, a desenvolverem um processo de crítica e de autocrítica capaz de impor um reconhecimento dos erros táticos e estratégicos, sem empurrarem para os ombros dos outros responsabilidades que são próprias.
A tão usada frase «o inferno são os outros» foi introduzida por Jean-Paul Sartre na peça Huis Clos (Entre Quatro Paredes), escrita em 1944, onde é pronunciada pelo personagem Garcin. Os três únicos personagens, que incluem também Estelle e Inès, estão todos mortos e condenados para sempre ao inferno. Porém, neste não existe fogo, nem demónios, nem tenazes, como na tradição cristã, sendo a maior pena a que cada um é submetido o ter de conviver eternamente com os outros dois. Tem servido muitas vezes para identificar aquela atitude humana que tende a considerar que tudo o que de mau, errado, negativo, prejudicial, acontece em nosso redor, é culpa dos outros, de quem nos cerca, mas não nossa. Perante algumas interpretações dos resultados eleitorais com as quais estou a deparar – bem, algumas delas não são de facto interpretações, mas um enredado de queixumes e recriminações – as palavras de Sartre voltam a fazer sentido.
As eleições legislativas deste domingo deixaram o país político numa situação inteiramente nova, diante da qual as armas da análise crítica precisam de afinação. Por este motivo, e também porque importa deixar assentar alguma poeira, limito-me, para já, a curtas notas sobre aspetos que me parecem particularmente significativos e evidentes. Adiante conto escrever de forma mais completa e prospetiva.
«Pois é» – como diz a irritante bengala da fala usada a torto e a direito por um meu conhecido – cá estamos de novo, neste sábado, em mais uma «pausa para reflexão» a anteceder um importante momento eleitoral. É sempre um dia algo perdido, desnecessário, para mais com a longa e profunda reflexão que, seja qual for o resultado, vamos ter de fazer a partir da noite deste domingo. Da minha parte, julgo que nunca «refleti» tanto em situação pré-eleitoral como o tenho feito nestes três meses. Até porque, pela primeira vez, irei votar, por exclusão de partes e um sentido de utilidade, num partido no qual não confio inteiramente. Mas, como diz aquele conhecido ditado, «em tempo de guerra não se limpam armas». Ou como lembra aqueloutro: «não há atalho, sem trabalho». Vamos lá votar à esquerda e depois conversamos.
A larguíssima maioria das pessoas que aqui me seguem e lêem é composta por homens e mulheres, situados dentro da grande e plural área da esquerda, com quem tenho pelo menos algumas afinidades de natureza ética, estética, cultural ou política. É para elas este post, destinado a lembrá-las que, se ainda o não fizeram por antecipação, no próximo domingo, dia 30, não podem deixar de votar nas eleições legislativas.
No Público de hoje, o coreógrafo e bailarino Rui Horta assina um texto de opinião significativamente intitulado «Campanha Eleitoral: 10 – Cultura: 0». Apesar de nele dar, com naturalidade, maior ênfase à sua área de interesse e trabalho, não deixa de colocar o tema numa perspetiva geral, mostrando até que ponto são escassas e ocupam um lugar claramente secundário as propostas eleitorais neste domínio.
1. Em democracia, não votar é deixar para os outros decisões sobre um destino que é de todos. Quando modelos opostos de sociedade se confrontam nas urnas, mais necessário é assumir esse momento de escolha. Circunstâncias várias – ponderar culpas não é o importante neste momento – transformaram as atuais eleições num combate desta natureza. Não pode, por isso, manifestar-se indiferença perante a alternativa que está em cima da mesa: ou manter em aberto uma governação essencialmente progressista, moderna, solidária e voltada para os direitos da cidadania; ou regressar ao sombrio passado fechado em 2015, sabendo-se que, para conseguir governar, a direita terá de incluir correntes defensoras do recuo do Estado-providência, da prioridade da iniciativa privada, da desigualdade e do ódio social.
Fado, como se sabe, é o destino que «marca a hora», a sorte, a fortuna, encarados como inevitáveis. Daí o tom plangente do género musical homónimo. No tempo da outra senhora, era associado pelo próprio regime a uma dinâmica fatalista – relevem o oximoro – que procurava mostrar como inevitável a via da desgraça e da pobreza. Pois é esta que parece de regresso quando vejo as previsões fatalistas de muitos amigos e muitas amigas a propósito de uma hipotética vitória da direita nas eleições do próximo dia 30. Todavia, todas as sondagens – que eu saiba, exceto uma – atribuem uma vitória clara à esquerda no seu conjunto, desta expectativa apenas destoando os comentadores televisivos, alguns diretores de jornais e, claro, a própria direita em campanha frenética. É nestas pessoas que se fundam esses amigos e essas amigas para preverem tal cenário? Será imposição do genoma? Andam a ver demasiada televisão? Ora «vamo’láver»: vão é votar no sítio certo e convençam outros tantos a não deixarem de o fazer.
Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos e um dos «pais fundadores» da nação americana, escreveu pelos finais do século XVIII que, em democracia, as maiorias dependem mais do grau de participação de quem lhes dá forma que da mera soma dos votos que as produzem. Tantos anos depois, esta afirmação – mesmo tendo em conta que o conceito de democracia de Jefferson se encontra hoje muito datado – mantém a sua grande justeza. Isto tem sido comprovado por um grande número de experiências, do passado e do presente, nas quais a maioria dos votos concedidos em eleições a um partido ou a um candidato, por não corresponder a um efetivo compromisso político da maior parte dos cidadãos que a exprimiram, acaba por desvalorizar a própria democracia.
Tem-se falado muito do papel do voto útil, mas não do desempenhado pelo voto de protesto. O tema foi de certo modo trazido hoje para o debate por um artigo de opinião da autoria de Boaventura de Sousa Santos saído no Público («A esquerda é burra?»). Nele se coloca a possibilidade de, no dia 30, poder existir alguma transferência de voto do PCP, e sobretudo do BE, para a extrema-direita. Foi o suficiente para um grande número de pessoas se erguer em protesto contra uma possibilidade que lhe parece impossível, passe o pleonasmo. Infelizmente, se olharmos com atenção para a realidade, veremos que assim não é.
Não recordo o momento preciso em que deixei de ler só banda desenhada ou os livrinhos da coleção «Seis Balas», e passei a ocupar-me com volumes inteiros de centenas de páginas. Talvez por volta dos dez, quando atravessei a fase Enid Blyton, logo seguida da Emilio Salgari e da Júlio Verne. Mas desde essa época mantenho um hábito inalterado: jamais ler um livro sem ter à mão um lápis, para o sublinhar e anotar nas próprias páginas, ou então, se o não puder fazer, numa folha A4, dobrada em quatro, que serve também de marcador. Agora, quando sobretudo no campo da teoria leio mais em formato digital, faço a mesmíssima coisa, uma vez que os programas de leitura eletrónica já permitem o expediente.
No campo da criação artística e literária, ou no das ideias políticas e filosóficas, a intervenção das vanguardas é fundamental para a afirmação do novo que sempre acompanha a abertura de caminhos em direções não experimentadas e fecundas. A palavra vanguarda vem, aliás, da antiga literatura militar, servindo noutros séculos para identificar o pequeno e móvel corpo de batedores que se movia muito à frente dos exércitos, reconhecendo os terrenos por onde seguiria depois o grosso das tropas ou onde se travaria a batalha, e identificando o tamanho, a capacidade e a disposição do inimigo.
Este artigo sobre as legislativas foi começado há semanas, ainda sob o efeito de choque da reprovação do Orçamento. Levou, entretanto, algumas voltas, embora as ideias que contém sejam sensivelmente as mesmas da primeira versão, compensando apenas a surpresa e a perturbação daquele momento com uma maior intervenção da razão. Reflete a posição de um cidadão sem partido, politicamente empenhado e alinhado à esquerda – afirmar a antinomia esquerda-direita como ultrapassada, como volta agora a escutar-se, é sempre uma posição de direita – que procura refletir sobre esta nova encruzilhada em que se encontra a nossa democracia.
Não devemos esquecer o que passámos nos últimos dez anos. Em 2011, quando a direita neoliberal tomou conta do governo e impôs quatro anos de depauperamento, perda de direitos e depressão coletiva, foi possível compreender o que poderia representar romper o cordão umbilical com os avanços sociais conquistados a partir da Revolução de Abril. No contexto da crise financeira e de uma aceitação total dos ditames da troika, o governo PSD/CDS deixou então os mais desfavorecidos e a classe média entregues ao seu destino e à incerteza. Um tempo felizmente fechado quando, com as eleições de 2015, um governo do PS sustentado numa maioria parlamentar plural de esquerda foi capaz de reverter essa tendência, inaugurando um tempo de reposição de direitos e de progresso.