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Identidade e a «liberdade dos outros»

Li há dias um artigo da jornalista Teresa de Sousa onde se condenavam as movimentações de protesto, a decorrer sobretudo nas Américas e na Europa, que têm envolvido marcas monumentais evocadoras do racismo, do esclavagismo e do colonialismo. Já escrevi sobre o tema, que contém aspetos complexos e contraditórios, e não irei agora repetir argumentos. Considerava-se, entretanto, no eixo do artigo, em relação a quem nesses protestos participa, que «o seu credo é que os indivíduos não existem para além da sua identidade, como não existiam, para o marxismo, para além da sua classe»; uma afirmação ligeira que parte de um juízo injusto e por isso justifica um comentário. Seguindo esse raciocínio, no mundo em que vivemos existiria então uma espécie de gente, chamemos-lhe simplificadamente os «identitários», que em nome das suas convicções replica formas de pensamento que tendem a desvalorizar a liberdade individual, recuperando escolhas real ou supostamente assumidas pelos «marxistas».

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    Atualidade, Democracia, História, Opinião

    Ruína das estátuas e combates pelo passado

    Numa tarde do final de abril de 1945, quando uma equipa de soldados norte-americanos fez explodir perante uma câmara de filmar a suástica de ferro e granito que em Nuremberga encimava o Estádio onde tinham sido encenados os gigantescos comícios dos congressos do Partido Nacional-Socialista, asseverou-se perante o mundo a derrocada do devaneio imperial de Hitler. Onze anos depois, durante o levantamento popular antissoviético de Bucareste que teve o apoio dos comunistas reformistas húngaros, uma das primeiras iniciativas da multidão em fúria foi a demolição da estátua colossal de Estaline erguida à entrada do Parque Városliget. Estes dois episódios de iconoclasia – replicáveis à escala dos largos milhares – podem ser invocados contra o receio de que da destruição de peças monumentais tomadas como símbolos de uma ordem política detestada resulte forçosamente um apagamento da História. Pelo contrário, assinalaram escolhas julgadas necessárias, adquirindo um peso histórico próprio.

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      Combate social e consensos

      Observo algumas posições exaltadas, nas quais, a partir do justo entendimento do racismo como um problema real e grave da sociedade portuguesa, se fala da ordem política vigente, e até do trajeto histórico da nossa democracia, como expressão continuada de um «poder racista». A leitura de certa teoria radicalizada, bem como a imersão em realidades onde conflitos dessa natureza estão mais presentes e são bem mais agudos, faz com que os seus autores defendam a transformação de uma realidade contraditória e conflitual, onde existem muitos problemas por resolver, alguns dessa natureza, num campo de batalha capaz de virar às avessas a própria democracia e alguns dos seus fundamentos.

      Como os jornais e as redes sociais acabam muitas vezes por ampliar ou maquilhar estas percepções, elas ganham um eco que raramente corresponde ao seu real impacto. Partindo de pressupostos muitas vezes corretos, pela forma que tomam, pela urgente urgência que pretendem impor, afastam muitos cidadãos mobilizáveis dos combates pela justiça e pela igualdade, fragmentando e debilitando o próprio campo do progresso. Salvo em momentos críticos ou revolucionários, que são raros, combater por uma mudança social substantiva implica sempre a produção de consensos, jogando com estados de consciência, e também um avanço por etapas. Não pela ordem do caos para obter o céu já e agora, o mais tardar amanhã de manhã.

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        Da vida das estátuas

        Todas as revoluções e combates emancipatórios se erguem contra os símbolos dos regimes que pretendem derrubar ou das formas de opressão que pretendem abolir. De entre os mais significativos, pela clareza e presença pública da mensagem que invocam, sobressaem as estátuas, destinadas a enaltecer e a perpetuar a lembrança de figuras ou acontecimentos produzidos no passado. O objetivo é sempre preservar a memória dos indivíduos e dos seus feitos, conservar a repercussão dos eventos recordados ou enaltecer determinadas opções históricas. À parte aspetos menores, como o estilo caduco e o mau gosto original de muitos desses monumentos, a procura de eternização de uma mensagem tende a esquecer algo essencial e sempre presente: tudo no curso da atividade humana é transitório e contextual, nada é perpétuo e absoluto, daí resultando que, o que a dado momento e para certos grupos possui um significado, noutro tempo e para outros setores representa algo diverso, ou mesmo o oposto.

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          A informação na selva da opinião

          Pela mão do meu avô paterno, aprendi a ler antes ainda da primária e com recurso a um jornal diário nacional, podendo ser esta uma das razões – gosto, pelo menos, de acreditar que assim foi – para logo me ter transformado num quase dependente da informação. Na verdade, muito poucos terão sido os dias de vida em que a partir de certa altura me mantive inteiramente longe dela, e na era pré-Internet chegava em algumas alturas a fazer largos quilómetros diários só para comprar alguns jornais. Não sei ao certo quando comecei a fazê-lo já de uma forma crítica, mas educado ainda durante o salazarismo, cedo também tive de desenvolver algumas estratégias, tanto como leitor quanto como autor, aliás rapidamente censurado. Ainda assim, habituei-me a encarar a comunicação social sobretudo como um grande espaço para o conhecimento do mundo, para a educação da sensibilidade e de mobilização para a cidadania; mesmo, como acontece de uma forma imprescindível nas democracias, quando nela se exprimem ou defendem ideias e escolhas que de modo algum são as nossas.

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            EUA: revolta e violência

            Quem conhece a longa história das rebeliões populares, pelo menos daquelas que se conhecem desde os movimentos milenaristas do período medieval europeu, sabe que sempre nelas confluíram fatores contraditórios. De um lado o protesto puro, ou a resistência imperativa, postos em prática de uma forma em regra espontânea e quase invariavelmente assertiva e crua. É, aliás, nessa crueza – em regra coincidente com um baixo grau de politização – que se se situa o essencial desses levantamentos coletivos, sendo ela também aquilo que lhes pode conferir alguma capacidade para perturbar o sistema dominante e para alterar situações estabelecidas. As revoltas medievais não pretendiam instaurar regimes justos, mas antes punir reis iníquos e senhores abusivos. Do outro lado, a formulação violenta de estados de descontentamento, de situações de opressão, ou mesmo de desenraizamentos, que podem transformar esses momentos em situações algo caóticas, nas quais, da parte de alguns dos que nelas participam, a sua iniciativa poder ser desviada para atitudes desorganizadas e voltadas contra alvos que não são os principais. O puro banditismo entra, por vezes, na equação.

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              Acontecimentos, Democracia, Direitos Humanos, História, Olhares

              Dilema na «era da ignorância»

              O historiador britânico Eric Hobsbawm publicou entre 1962 e 1994 uma tetralogia sobre o caminho do mundo desde a Revolução Francesa à extinção da União Soviética. Cada volume aborda diferentes «eras»: a das revoluções que abalaram a sociedade do «Antigo Regime» (1789-1848); a do capital que passou a dominar o planeta (1848-1875); a dos impérios que ofereceram novas formas e dimensões ao poder político e económico (1875-1914); por último, a dos extremos, onde ideologias antagónicas conduziram a guerras e a tensões vividas numa escala sem precedentes (1914-1991). Essas «eras» correspondiam a fases do percurso humano nas quais povos e Estados se organizaram e se equilibraram em função de quadros de desenvolvimento ou de conflito diferentes e contraditórios, mas traduziram também percursos assentes em ideias partilhadas sobre o itinerário histórico, rumo a sociedades futuras que as diferentes forças e ideologias olhavam como inevitavelmente melhores e mais racionais.

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                Atualidade, Democracia, História, Opinião

                O proselitismo e o prosélito

                A defesa das convicções próprias é um dos fatores mais essenciais do processo de humanização, permitindo que o sujeito se afaste do espírito de rebanho, pense por si mesmo e assuma as suas convicções, batendo-se por elas de uma ou de outra forma. Em democracia essa defesa é absolutamente essencial, pois permite dar coerência e conferir dinâmica ao que de outro modo seriam apenas atitudes e reações casuísticas. E ainda que por vezes se apoie no domínio da fé e da certeza – sejam estas de teor político, filosófico ou religioso – continua a ter um valor importante na organização da diversidade humana e da vida coletiva. Quem não tem posições, ou tem-nas fechadas e jamais as exprime, acaba por colaborar com todas as injustiças ou por ser cúmplice das situações mais condenáveis. Porque quem cala, consente, como diz o ditado.

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                  Apontamentos, Democracia, Olhares

                  Feios, porcos e maus

                  Vi fragmentos da gravação em vídeo da reunião do governo brasileiro presidida por Jair Bolsonaro que está a espantar meio planeta. Há a dimensão do conteúdo, a mais grave e impressionante: momentos de defesa explícita de interesses pessoais, uso constante do palavrão para falar de terceiros, verbalização das maiores vulgaridades, agressividade latente em discursos lançados contra tudo e todos, sob a caótica direção de um sujeito na aparência indiferente ao que se passa, salvo às suas próprias palavras. Parece a sequência de um filme de terceira categoria sobre a máfia italo-americana, onde cada personagem é um patético cliché.

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                    Atualidade, Democracia, Olhares

                    Do medo de ler

                    A história da escrita e da leitura é também a história da censura e a da autocensura. Feita de temas proibidos, de lápides e pergaminhos rasurados, de livros queimados ou que não puderam circular livremente, de interpretações silenciadas, de autores atormentados e mortos, e de outros que, pelo temor da perseguição, acabaram por calar-se, por cultivar a arte do enigma, certas vezes, não poucas, por abandonar mesmo a escrita. Existem milhares de estudos, de alcance e valia diversos, sobre o caminho das práticas censórias, sobre os muitos e diferentes regimes que as estimularam, sobre autores que sob o seu peso padeceram ou sucumbiram, ou sobre obras perseguidas, muitas delas, sobretudo entre as publicadas antes da invenção da imprensa, das quais para sempre se perdeu o rastro.

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                      Uma perigosa interrupção da democracia

                      Ao observar o que está a acontecer em países como os Estados Unidos ou o Brasil, com a gestão governativa da pandemia a assumir proporções catastróficas e de grande desumanidade – e com um conjunto de seguidores fanáticos dos seus presidentes a manifestar-se na rua contra quem pugna por cuidados e reservas para evitar o contágio – é natural que nos questionemos sobre a inexistência de um movimento popular generalizado de repúdio dessas políticas e de responsabilização política daqueles que as impõem. Mais ainda quando nesses países a generalidade da imprensa crítica abertamente as suas escolhas.

                      Infelizmente é simples, embora dramática, a explicação para que se perceba como pode isto estar a acontecer: quem está em condições de assumir a responsabilidade política de organizar esse movimento ou de nele participar sabe que neste momento colocar pessoas na rua de uma forma massiva será, por razões de segurança própria, tão impossível quanto criminoso. Estranho tempo este em que a indignação pública fica, ainda que em sistemas que permanecem formalmente democráticos, retida em casa. Sob este aspeto verifica-se, de facto, uma perigosa interrupção da democracia.

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                        Sinais negativos nestes dias de clausura

                        Há dias, ao passar no suplemento literário Babelia, do diário El País, pelos resultados de um inquérito de pergunta única sobre a fase de confinamento, «O que descobriu durante este tempo?», dei com uma resposta da poeta e tradutora andaluza Aurora Luque: «Que é necessário simplificar e procurar a lentidão, o silêncio e o respeito. Que as redes sociais nos dominam e controlam e que nos roubaram o tempo verdadeiramente livre.» Colocadas no plano do senso comum, estas palavras podem parecer um tanto exageradas ou despropositadas. Afinal, o fechamento domiciliar e a redução da vida social e profissional deveriam ter provocado um abrandamento das solicitações do quotidiano, dando lugar, apesar da calamidade, a um tempo mais lento e mais tranquilo. Todavia, este cenário benévolo deve ser relativizado, dado o isolamento obrigatório ter adicionado pesados fatores de tensão e de cansaço, e também porque para muitas pessoas com atividade ligada ao teletrabalho as novas condições e os exigentes deveres profissionais acabaram por impor uma dose adicional de esforço, angústia e fadiga.

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                          «Não Há Festa Como Esta!»

                          A Festa do Avante!, organizada pelo PCP a cada setembro, nasceu em 1976, já na fase de refluxo do processo revolucionário, como uma forma de agregação da militância comunista e também como espaço de resistência política e cultural. Inspirou-se em boa parte na do jornal L’Humanité, criada em 1930, com a qual o PCF visou objetivos de certa forma análogos. Teve desde o início uma componente lúdica – aquela que ocupou sempre mais tempo do programa e que atraiu pessoas de diferentes quadrantes sociais e políticos – e outra assumidamente política, traduzida em algumas escolhas artísticas, em uma ou outra sessão cultural, nas brochuras e bibelôs dos pavilhões dos «partidos irmãos» e sobretudo no grande comício final de domingo à tarde.

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                            Uma aventura no passado (1996-2002)

                            Entre Março de 1996 e Outubro de 2002 criei e mantive no ar, com o apoio de alguns amigos, mas a maior parte do tempo inteiramente a solo – daí, aliás, a inevitabilidade do seu fim – a primeira publicação portuguesa inteiramente online. Nenhum jornal o fazia nessa altura, lembro-me bem, e ainda não havia blogues. Chamava-se NON!, e tinha por subtítulo «revista crítica de opinião, ideias e artes». Era totalmente artesanal, montada «à unha» em linguagem HTML. Durante esses anos quase não tive fins de semana, pois passava-os a reunir colaborações, a editar e a melhorar a publicação. Muitos/as dos/as que por aqui me seguem talvez recordem ainda esta aventura – a revista chegou a ter vários milhares de acessos diários – e continuam por aqui. Outros desapareceram já do mundo dos vivos. Outros permanecem amigos para a vida. De um ou outro, meia dúzia, acabei por me distanciar. Não sei o que me levou a pensar hoje neste bocado de passado, mas aqui fica o registo da recordação. Deixo a lista completa dos colaboradores: quem não sabe do que falo aferirá por ela a qualidade da «coisa».

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                              O caminho do apóstata

                              Árduo é o caminho do apóstata, aquele que primeiro duvidou, e depois abandonou, uma fé, uma ortodoxia, uma ideologia cega, certos partidos ou igrejas. Não só jamais será perdoado, como passará irrevogavelmente para a lista dos seus piores inimigos: aqueles que tiveram acesso à verdade, à salvação, à segurança da certeza, à causa que se presume infalível, e resolveram abandoná-la, preferindo a dúvida ou mudando de opinião, ainda que o tenham feito apenas em estreita latitude. Quando se escrever uma história universal da apostasia, ela estará cheia de traições, calúnias, cobardias, ostracismos, amarguras, solidões. Também de coragem, de heroísmo, de redenção, de combates pelo direito à liberdade de pensar pela própria cabeça.

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                                A pandemia e o «novo normal» da distopia

                                A utopia ficciona uma comunidade, colocada fora de um tempo certo ou de um espaço real, na qual se desenha um ideal de organização, felicidade e bem-estar aplicados à vida coletiva. No sentido oposto, a distopia, ou utopia negativa, permite conceber um lugar imaginário, onde se vive sob condições extremas de opressão, desespero e carência. Frente à realidade objetiva, a utopia é principalmente um território de desejo e esperança, enquanto a distopia é um lugar de sofrimento e desolação, determinado pela transformação da natureza e pelos caminhos da intervenção humana. Em Dystopia: A Natural History, Gregory Claeys confere-lhe, no entanto, uma dimensão que pode tornar-se tendencialmente positiva, dado mostrar um conjunto de medos «naturais» (deuses, monstros, calamidades) ou «sociais» (tecnologias opressivas ou sistemas totalitários), a partir dos quais a humanidade pode confrontar-se com cenários que de modo algum deseja e por isso deverá afastar.

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                                  Comunicação tóxica

                                  Jornais e televisões impuseram «notícias», divulgaram artigos de opinião ou fizeram debates sobre duas medidas dadas como certas a partir de «fontes bem informadas». Uma seria o afastamento compulsivo das ruas e de outros lugares públicos das pessoas com mais de setenta anos, e a outra a imposição da medição da temperatura dos corpos em locais de trabalho, restaurantes, cafés ou salas de espetáculo. Qualquer pessoa com sentido da realidade e sem interesse em espalhar o medo e a indignação podia perceber que medidas dessa natureza, monstruosas e próprias de um cenário distópico, jamais seriam impostas por um Governo democrático, já que punham em causa o direito à liberdade e à privacidade. Mas isso não impediu esses órgãos da comunicação social de durante semanas intoxicarem a opinião pública, dando como certa e segura a sua aplicação.

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