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EUA: revolta e violência

Quem conhece a longa história das rebeliões populares, pelo menos daquelas que se conhecem desde os movimentos milenaristas do período medieval europeu, sabe que sempre nelas confluíram fatores contraditórios. De um lado o protesto puro, ou a resistência imperativa, postos em prática de uma forma em regra espontânea e quase invariavelmente assertiva e crua. É, aliás, nessa crueza – em regra coincidente com um baixo grau de politização – que se se situa o essencial desses levantamentos coletivos, sendo ela também aquilo que lhes pode conferir alguma capacidade para perturbar o sistema dominante e para alterar situações estabelecidas. As revoltas medievais não pretendiam instaurar regimes justos, mas antes punir reis iníquos e senhores abusivos. Do outro lado, a formulação violenta de estados de descontentamento, de situações de opressão, ou mesmo de desenraizamentos, que podem transformar esses momentos em situações algo caóticas, nas quais, da parte de alguns dos que nelas participam, a sua iniciativa poder ser desviada para atitudes desorganizadas e voltadas contra alvos que não são os principais. O puro banditismo entra, por vezes, na equação.

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    Acontecimentos, Democracia, Direitos Humanos, História, Olhares

    Dilema na «era da ignorância»

    O historiador britânico Eric Hobsbawm publicou entre 1962 e 1994 uma tetralogia sobre o caminho do mundo desde a Revolução Francesa à extinção da União Soviética. Cada volume aborda diferentes «eras»: a das revoluções que abalaram a sociedade do «Antigo Regime» (1789-1848); a do capital que passou a dominar o planeta (1848-1875); a dos impérios que ofereceram novas formas e dimensões ao poder político e económico (1875-1914); por último, a dos extremos, onde ideologias antagónicas conduziram a guerras e a tensões vividas numa escala sem precedentes (1914-1991). Essas «eras» correspondiam a fases do percurso humano nas quais povos e Estados se organizaram e se equilibraram em função de quadros de desenvolvimento ou de conflito diferentes e contraditórios, mas traduziram também percursos assentes em ideias partilhadas sobre o itinerário histórico, rumo a sociedades futuras que as diferentes forças e ideologias olhavam como inevitavelmente melhores e mais racionais.

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      Atualidade, Democracia, História, Opinião

      O proselitismo e o prosélito

      A defesa das convicções próprias é um dos fatores mais essenciais do processo de humanização, permitindo que o sujeito se afaste do espírito de rebanho, pense por si mesmo e assuma as suas convicções, batendo-se por elas de uma ou de outra forma. Em democracia essa defesa é absolutamente essencial, pois permite dar coerência e conferir dinâmica ao que de outro modo seriam apenas atitudes e reações casuísticas. E ainda que por vezes se apoie no domínio da fé e da certeza – sejam estas de teor político, filosófico ou religioso – continua a ter um valor importante na organização da diversidade humana e da vida coletiva. Quem não tem posições, ou tem-nas fechadas e jamais as exprime, acaba por colaborar com todas as injustiças ou por ser cúmplice das situações mais condenáveis. Porque quem cala, consente, como diz o ditado.

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        Apontamentos, Democracia, Olhares

        Feios, porcos e maus

        Vi fragmentos da gravação em vídeo da reunião do governo brasileiro presidida por Jair Bolsonaro que está a espantar meio planeta. Há a dimensão do conteúdo, a mais grave e impressionante: momentos de defesa explícita de interesses pessoais, uso constante do palavrão para falar de terceiros, verbalização das maiores vulgaridades, agressividade latente em discursos lançados contra tudo e todos, sob a caótica direção de um sujeito na aparência indiferente ao que se passa, salvo às suas próprias palavras. Parece a sequência de um filme de terceira categoria sobre a máfia italo-americana, onde cada personagem é um patético cliché.

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          Atualidade, Democracia, Olhares

          Do medo de ler

          A história da escrita e da leitura é também a história da censura e a da autocensura. Feita de temas proibidos, de lápides e pergaminhos rasurados, de livros queimados ou que não puderam circular livremente, de interpretações silenciadas, de autores atormentados e mortos, e de outros que, pelo temor da perseguição, acabaram por calar-se, por cultivar a arte do enigma, certas vezes, não poucas, por abandonar mesmo a escrita. Existem milhares de estudos, de alcance e valia diversos, sobre o caminho das práticas censórias, sobre os muitos e diferentes regimes que as estimularam, sobre autores que sob o seu peso padeceram ou sucumbiram, ou sobre obras perseguidas, muitas delas, sobretudo entre as publicadas antes da invenção da imprensa, das quais para sempre se perdeu o rastro.

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            Apontamentos, Democracia, Leituras

            Uma perigosa interrupção da democracia

            Ao observar o que está a acontecer em países como os Estados Unidos ou o Brasil, com a gestão governativa da pandemia a assumir proporções catastróficas e de grande desumanidade – e com um conjunto de seguidores fanáticos dos seus presidentes a manifestar-se na rua contra quem pugna por cuidados e reservas para evitar o contágio – é natural que nos questionemos sobre a inexistência de um movimento popular generalizado de repúdio dessas políticas e de responsabilização política daqueles que as impõem. Mais ainda quando nesses países a generalidade da imprensa crítica abertamente as suas escolhas.

            Infelizmente é simples, embora dramática, a explicação para que se perceba como pode isto estar a acontecer: quem está em condições de assumir a responsabilidade política de organizar esse movimento ou de nele participar sabe que neste momento colocar pessoas na rua de uma forma massiva será, por razões de segurança própria, tão impossível quanto criminoso. Estranho tempo este em que a indignação pública fica, ainda que em sistemas que permanecem formalmente democráticos, retida em casa. Sob este aspeto verifica-se, de facto, uma perigosa interrupção da democracia.

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              Sinais negativos nestes dias de clausura

              Há dias, ao passar no suplemento literário Babelia, do diário El País, pelos resultados de um inquérito de pergunta única sobre a fase de confinamento, «O que descobriu durante este tempo?», dei com uma resposta da poeta e tradutora andaluza Aurora Luque: «Que é necessário simplificar e procurar a lentidão, o silêncio e o respeito. Que as redes sociais nos dominam e controlam e que nos roubaram o tempo verdadeiramente livre.» Colocadas no plano do senso comum, estas palavras podem parecer um tanto exageradas ou despropositadas. Afinal, o fechamento domiciliar e a redução da vida social e profissional deveriam ter provocado um abrandamento das solicitações do quotidiano, dando lugar, apesar da calamidade, a um tempo mais lento e mais tranquilo. Todavia, este cenário benévolo deve ser relativizado, dado o isolamento obrigatório ter adicionado pesados fatores de tensão e de cansaço, e também porque para muitas pessoas com atividade ligada ao teletrabalho as novas condições e os exigentes deveres profissionais acabaram por impor uma dose adicional de esforço, angústia e fadiga.

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                Atualidade, Cibercultura, Democracia, Olhares, Opinião

                «Não Há Festa Como Esta!»

                A Festa do Avante!, organizada pelo PCP a cada setembro, nasceu em 1976, já na fase de refluxo do processo revolucionário, como uma forma de agregação da militância comunista e também como espaço de resistência política e cultural. Inspirou-se em boa parte na do jornal L’Humanité, criada em 1930, com a qual o PCF visou objetivos de certa forma análogos. Teve desde o início uma componente lúdica – aquela que ocupou sempre mais tempo do programa e que atraiu pessoas de diferentes quadrantes sociais e políticos – e outra assumidamente política, traduzida em algumas escolhas artísticas, em uma ou outra sessão cultural, nas brochuras e bibelôs dos pavilhões dos «partidos irmãos» e sobretudo no grande comício final de domingo à tarde.

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                  Uma aventura no passado (1996-2002)

                  Entre Março de 1996 e Outubro de 2002 criei e mantive no ar, com o apoio de alguns amigos, mas a maior parte do tempo inteiramente a solo – daí, aliás, a inevitabilidade do seu fim – a primeira publicação portuguesa inteiramente online. Nenhum jornal o fazia nessa altura, lembro-me bem, e ainda não havia blogues. Chamava-se NON!, e tinha por subtítulo «revista crítica de opinião, ideias e artes». Era totalmente artesanal, montada «à unha» em linguagem HTML. Durante esses anos quase não tive fins de semana, pois passava-os a reunir colaborações, a editar e a melhorar a publicação. Muitos/as dos/as que por aqui me seguem talvez recordem ainda esta aventura – a revista chegou a ter vários milhares de acessos diários – e continuam por aqui. Outros desapareceram já do mundo dos vivos. Outros permanecem amigos para a vida. De um ou outro, meia dúzia, acabei por me distanciar. Não sei o que me levou a pensar hoje neste bocado de passado, mas aqui fica o registo da recordação. Deixo a lista completa dos colaboradores: quem não sabe do que falo aferirá por ela a qualidade da «coisa».

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                    O caminho do apóstata

                    Árduo é o caminho do apóstata, aquele que primeiro duvidou, e depois abandonou, uma fé, uma ortodoxia, uma ideologia cega, certos partidos ou igrejas. Não só jamais será perdoado, como passará irrevogavelmente para a lista dos seus piores inimigos: aqueles que tiveram acesso à verdade, à salvação, à segurança da certeza, à causa que se presume infalível, e resolveram abandoná-la, preferindo a dúvida ou mudando de opinião, ainda que o tenham feito apenas em estreita latitude. Quando se escrever uma história universal da apostasia, ela estará cheia de traições, calúnias, cobardias, ostracismos, amarguras, solidões. Também de coragem, de heroísmo, de redenção, de combates pelo direito à liberdade de pensar pela própria cabeça.

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                      A pandemia e o «novo normal» da distopia

                      A utopia ficciona uma comunidade, colocada fora de um tempo certo ou de um espaço real, na qual se desenha um ideal de organização, felicidade e bem-estar aplicados à vida coletiva. No sentido oposto, a distopia, ou utopia negativa, permite conceber um lugar imaginário, onde se vive sob condições extremas de opressão, desespero e carência. Frente à realidade objetiva, a utopia é principalmente um território de desejo e esperança, enquanto a distopia é um lugar de sofrimento e desolação, determinado pela transformação da natureza e pelos caminhos da intervenção humana. Em Dystopia: A Natural History, Gregory Claeys confere-lhe, no entanto, uma dimensão que pode tornar-se tendencialmente positiva, dado mostrar um conjunto de medos «naturais» (deuses, monstros, calamidades) ou «sociais» (tecnologias opressivas ou sistemas totalitários), a partir dos quais a humanidade pode confrontar-se com cenários que de modo algum deseja e por isso deverá afastar.

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                        Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                        Comunicação tóxica

                        Jornais e televisões impuseram «notícias», divulgaram artigos de opinião ou fizeram debates sobre duas medidas dadas como certas a partir de «fontes bem informadas». Uma seria o afastamento compulsivo das ruas e de outros lugares públicos das pessoas com mais de setenta anos, e a outra a imposição da medição da temperatura dos corpos em locais de trabalho, restaurantes, cafés ou salas de espetáculo. Qualquer pessoa com sentido da realidade e sem interesse em espalhar o medo e a indignação podia perceber que medidas dessa natureza, monstruosas e próprias de um cenário distópico, jamais seriam impostas por um Governo democrático, já que punham em causa o direito à liberdade e à privacidade. Mas isso não impediu esses órgãos da comunicação social de durante semanas intoxicarem a opinião pública, dando como certa e segura a sua aplicação.

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                          Como foi cantar a liberdade

                          Conto-vos como foi, para mim e para o meu círculo de afinidades, mas também para tantos outros que queriam ver-se livres do antigamente que nos sufocava, cantar a liberdade antes de Abril. Ir noite cerrada para os quartos mais altos das repúblicas estudantis, ou para apartamentos dos arredores que ingenuamente julgávamos seguros, e pôr a rodar vinis da Colette Magny, de Luis Llach, do Brel, do Ferré, da Mercedes Soza, do Jara, do Paco Ibañez, acompanhando-os num coro tão desafinado quanto entusiasta. Também escutar, vezes sem conta, o Zeca, o Adriano, o Zé Mário, o Cília, o Sérgio ou o Tino, bravos que pela palavra nos parecia estarem ali ao nosso lado.

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                            Lenine, 150 anos

                            No último 22 de Abril perfizeram-se 150 anos sobre o nascimento de Vladimir Ilyich Ulianov, Lenine (1870-1924). O seu papel na história do marxismo, dos ideais socialistas e da experiência vitoriosa da Revolução soviética de 1917 é crucial. A sua capacidade, independentemente das críticas que possam ser feitas aos métodos utilizados, para tornar real uma utopia revolucionária e um modelo de transformação da história que vinha sendo derrotado década após década, foi sem dúvida extraordinária. Todavia, para fazermos verdadeiramente justiça à sua capacidade e ao seu importante papel, devemos olhá-lo em primeiro lugar na sua dimensão humana e no contexto histórico em que afirmou a sua liderança revolucionária, não como a figura mitificada e marmórea na qual a dada altura foi transformado. Relembre-se apenas que o conceito de «leninismo» foi uma invenção de Estaline, principal responsável pela simplificação do seu pensamento e pela sua transformação em dogma. Lenine foi um revolucionário, sem dúvida, mas não um santo ou um mágico.

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                              Biografias, Democracia, História, Olhares

                              25 de Abril, democracia e resistência

                              A polémica só é polémica em boa parte devido a alguns preconceitos e mal-entendidos. Não acuso todos os que se manifestam contra a cerimónia de celebração do 25 de Abril na Assembleia da República de serem estúpidos ou fascistas, como já vi fazer, até porque conheço muitas pessoas que o defendem e são democratas acima de qualquer suspeita, algumas delas até antigos e antigas resistentes. Penso que muitas estão mal informadas sobre o facto de a data ir ser comemorada na Assembleia num quadro de presenças e com uma coreografia necessariamente contidos, que serão idênticos aos que têm sido usados durante todas as sessões que tiveram lugar, como parte imprescindível do funcionamento da democracia, durante estas semanas de estado de emergência.

                              O que não deixo de notar é o aproveitamento do suposto «mau exemplo» estar a servir aos antidemocratas para insultarem os deputados, como se estes fossem uma corja de delinquentes ou um grupo de suicidas, e a cerimónia da celebração da democracia fosse data descartável, menos importante que uma sessão regular, como aquelas que têm acontecido, também em formato reduzido, ao longo destes dias. Basta uma visita rápida a muitos comentários escritos em sites e nas redes sociais para se ver onde alguns querem verdadeiramente chegar: ao combate irracional contra os setores do parlamento que mais firme e legitimamente têm defendido a cerimónia. Nem que seja apenas por isto, e assim como um gesto de resistência, mas também porque a democracia não se suspende, ele terá de ser cumprido.

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                                Sobre a pirueta «científica»

                                Estamos habituados, no meio académico nacional e também fora dele, à escassez de um debate substantivo sobre o estatuto de ciência. Não que ele não ocorra, de modo algum, mas é muito raro e com frequência limitado ou desvalorizado. Isto fica em boa parte a dever-se ao facto de algumas das suas vertentes, que colocam esse estatuto em perspetiva e o relativizam, poderem potencialmente perturbar a fixidez do status quo vigente e de algumas das dinâmicas de poder que a ele se encontram associadas. A valorização tradicional do conceito de «saber», como um absoluto imperativamente ligado a uma epistemologia ortodoxa, é frequentes vezes afirmada, replicando ainda o choque proposto pelo positivismo do século de Oitocentos a respeito do caráter estritamente objetivo da ciência, capaz de separar o evidentemente certo do óbvia e necessariamente errado.

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                                  Atualidade, Ensaio

                                  Privacidade e perigo da hipervigilância

                                  Ao contrário de uma ideia muito comum, individualismo não é sinónimo de egoísmo. Este define um centramento do sujeito em si mesmo e nos seus interesses, não hesitando neste processo em lesar os outros. Já o primeiro apoia-se na independência e na liberdade de escolha e de decisão, não representando necessariamente uma quebra do dever de solidariedade. Funda-se na crença na singularidade do indivíduo, no valor do seu critério, na possibilidade de escapar ao exercício arbitrário da autoridade e de se juntar a outros, participando de livre-vontade em projetos coletivos que visam o todo e a sua transformação. O indivíduo moderno, liberto da dependência do divino pelo humanismo renascentista, e depois sustentado pelos ideais à época emancipatórios do racionalismo e o iluminismo, integra essa dupla condição, capaz, através do contrato social, de associar a escolha de cada um ao seu papel nas dinâmicas partilhadas.

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                                    Atualidade, Democracia, Opinião