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Mulheres e Mulherzinhas

O Dia Internacional da Mulher, evocado como momento de rebelião e protesto no Portugal pré-Abril – devido ao lugar visivelmente secundário, marcado pela exploração material e pela depreciação cultural, que nele ocupavam as mulheres – foi-se banalizando nos últimos anos, e, tal como aconteceu com o Dia das Mentiras ou o dos Namorados, transformando num engodo para o consumo. Não que a data tivesse deixado de ser importante e não tenha permanecido na agenda dos movimentos e dos cidadãos cientes de que a emancipação das mulheres é uma tarefa apenas iniciada. Mesmo no mundo no qual estas são formalmente iguais em direitos e deveres e não precisam sair à rua com o rosto tapado ou vigiadas pelo marido. O que acontece é que a trivialização da data fez com que ela passasse a ser evocada também por mulheres com uma noção frágil da sua própria emancipação, confundindo-a apenas com a presença na rua e no mercado de trabalho, e ainda por homens que com o seu gesto de «homenagem às senhoras» apenas reforçam a desigualdade e o preconceito. São as mesmas e os mesmos que têm pavor do feminismo – grosseiramente julgado como expressão de uma hipotética luta «das mulheres contra os homens» ou de uma «recusa do feminino» – e que alimentam esta versão caricatural do 8 de Março. Na verdade, do que falam é do «Dia da Mulherzinha», essa criatura débil, frágil e desejavelmente rosada, decalcada do livro autobiográfico de Louisa May Alcott publicado há quase século e meio. A mulherzinha que se realiza no «final feliz», eventualmente consumado no casamento e na maternidade, mas, de facto, que permanece no seu lugar decorativo, dependente e subalterno. Mesmo quando sobe à tribuna, conduz um trator com presteza, toca pandeireta numa tuna ou dirige a economia familiar.

    Apontamentos, Atualidade, Olhares

    O inútil caminho do ódio

    O ódio contra alguém começa devagar, mas se não é atalhado não para de crescer. Ele parte de uma aversão nebulosa, alimentando-se do rancor e jogando-se na inimizade e na repulsa que afastam até um ponto de não retorno. Mas não é meramente passivo: o ódio leva quem o vive a tentar isolar, a procurar destruir, a tudo fazer para abalar as ideias, a forma de estar, o passado, o presente e o futuro de quem tanto se detesta. É um sentimento mórbido, que cega sem remissão, que avilta, que nada produz, que coage a liberdade e tiraniza quem o vive. Além disso, raramente age de forma frontal: por regra denigre, insinua, alimentando-se de rumores, de meias-verdades e de mentiras. Nada tem a ver com o reconhecimento da diferença ou com o combate limpo contra as ideias da pessoa da qual se discorda, de quem não se gosta e que se rejeita. (mais…)

      Democracia, Memória, Opinião

      Como arruinar um projeto em 144 páginas

      Na História Politicamente Incorreta do Portugal Contemporâneo (De Salazar a Soares), editada há pouco pela Guerra & Paz, Henrique Raposo, o cronista do Expresso também «licenciado em História e mestre em Ciência Política», considera existir um padrão dominante no interior da historiografia nacional que é preciso meter na ordem. Este funcionaria como uma espécie de vírus, desvirtuando e falsificando o conhecimento que temos do século passado a partir da perspetiva vitoriosa da esquerda. Considerando-a intrinsecamente nefasta e objetivamente falsa, propõe-se então contribuir para atenuar essa influência. Resume-a neste livro através de um complexo de «mitos» que pretende questionar. Identifica essencialmente cinco: o de Salazar como mera criatura da Igreja católica, o de um Mário Soares sem o qual Portugal de facto não teria entrado na Europa, o do Estado Novo vergando os portugueses à irrevogável pobreza, o de uma esquerda que vez alguma fora «colonialista», e, por fim, o da hegemonia cultural da mesma esquerda como tendo começado antes do 25 de Abril e fechado as portas logo no final de 1975. A narrativa de Raposo procura negar radicalmente estes juízos, anunciados como fábulas. (mais…)

        Atualidade, Olhares, Opinião

        Tudo depende de nós

        Fotografia de Vesselin Vitanov
        Fotografia de Vesselin Vitanov

        Em A Ironia do Projeto Europeu parte-se de uma constatação: estamos de regresso a um ponto de partida do qual, ao longo das últimas décadas, jamais ponderámos reaproximar-nos. Há um século, como lembra Rui Tavares no início deste ensaio, a Europa contava com condições económicas, políticas e tecnológicas excecionais para construir «um sistema de cooperação entre nações fundado sobre a emancipação pessoal». Porém, muitos dos problemas verificados, «da finança descontrolada à legitimidade política esvaziada», antecipavam já aqueles com os quais hoje de novo nos confrontamos. Sabe-se que nessa época foi a Primeira Guerra Mundial a solução encontrada para supostamente resolver o dilema, mas tal não significa que estejamos hoje em condições de repetir a péssima receita. Existem demasiados interesses, combinados e sem um responsável identificado, para escolher um território físico e um inimigo contra o qual fazer agora marchar os exércitos. Ainda assim, e é essa uma das preocupações presentes neste livro: paira uma pulsão de violência imposta pela exacerbação das contradições e dos consequentes conflitos entre os Estados, os grupos sociais e os indivíduos. Por isso este livro apresenta uma reflexão sobre a contradição, em cenário de crise, entre crescimento e desigualdade, e também sobre a sua possível superação, procurando mostrar de que modo, apesar da propensão para o bloqueio e o conflito, existem condições para reconquistar uma democracia transformadora capaz de ajudar a Europa a regenerar-se e os europeus a lançarem-se num novo estádio de desenvolvimento. (mais…)

          Atualidade, Opinião

          Esperar desesperando

          Fot. Paulo Pimenta / Público
          Fot. Paulo Pimenta / Público

          Encontrei na semana passada uma amiga brasileira que não via há algum tempo. M. vivera uma época em Portugal, que então percorrera de uma ponta à outra e conhecera bastante bem, até que há cerca de dois anos regressara por motivos familiares à sua cidade de origem. Agora de volta, depois de todo este tempo, para nós aparentemente sem fim, durante o qual o país sofreu o choque imenso que conhecemos, ocorreu-me perguntar-lhe se sentia alguma diferença visível entre o Portugal que deixara e aquele ao qual agora retornava. Aquilo que me respondeu não me deixou surpreendido: «Com certeza que sim, de imediato. E o que mais me impressionou foram as mudanças na cara das pessoas. Um ar de contrariedade, de desgosto, um semblante de tristeza e de falta de confiança, um rosto rígido que eu não conhecera antes, um olhar diferente e talvez um pouco perdido.» A nossa memória diz-nos a mesma coisa, mas pronunciada desta forma, a partir do ângulo de observação de quem não viveu o dia-a-dia da nossa dramática mudança, a descrição de M. funciona como um abalo. (mais…)

            Acontecimentos, Apontamentos, Atualidade

            O intelectual público

            Tony Judt

            «Um historiador (ou qualquer outra pessoa) sem opiniões não é muito interessante, e seria de facto estranho que faltassem ao autor de um livro sobre a sua própria época pontos de vista incómodos sobre as pessoas e as ideias que a dominaram.» A afirmação é de Tony Judt e surge no posfácio de Pensar o Século XX, o seu derradeiro livro. De certo modo, ela explica o cenário de fundo diante do qual todo o volume se desenrola: o de uma extensa viagem, sob a forma de um diálogo do autor com o historiador americano Timothy Snyder, através da sua própria vida, do seu percurso profissional, das suas escolhas, e ainda, apesar da obra ter sido concluída alguns dias apenas antes da morte anunciada, dos planos que tinha e em relação aos quais não deixava de revelar um admirável entusiasmo e uma inexplicável esperança. Denunciando em todas as situações, em cada uma das posições que tomou e dos projetos nos quais se envolveu, uma curiosidade, uma agudeza crítica e uma autonomia que pontuaram as suas escolhas e se descobrem agora no seu legado. (mais…)

              História

              Portugal numa biografia

              Jorge Sampaio

              Num tempo em que os rostos mais ativos e reconhecidos da coisa pública, em particular aqueles que integram os partidos do chamado arco da governação, pertencem já a uma geração que cresceu e se formou politicamente em democracia – não tendo vivido o risco da perseguição pessoal ou da privação da liberdade devido às suas opiniões ou escolhas políticas – é bom ter à mão uma obra como esta biografia de Jorge Sampaio, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira. O primeiro grossíssimo volume, dos dois previstos, foi lançado em novembro passado. A justificação mais imediata do seu interesse, associada a esse défice geracional de memória, não é difícil de determinar: ecoa aqui o percurso pessoal e político de um homem independente, embora sempre alinhado à esquerda, iniciado numa altura, a da fase final do Estado Novo, na qual adotar essa escolha política requeria coragem, e prosseguido depois num tempo, imediatamente posterior à instauração do novo regime em 25 de Abril, em que a instabilidade da governação e a difícil aprendizagem da democracia exigiam uma entrega muito grande, permanente, a quem se envolvesse na luta partidária e no funcionamento das novas instituições. (mais…)

                Biografias, História, Memória

                A outra China

                Ao lado dos campos de batalha das duas Guerras Mundiais e das campanhas de extermínio levadas a cabo pelos grandes regimes totalitários, as principais mortandades do século passado já não foram determinadas por epidemias, como acontecera recorrentemente em tempos mais recuados, mas antes pela fome. O mais doloroso e inaceitável é que elas ocorreram como consequência de uma política consciente e deliberada de governos que teriam, supostamente, a obrigação de prevenir, ou no mínimo de reduzir, o seu impacto. Estima-se que o Holodomor, a fome de caráter genocidário, hoje já bem conhecida nas circunstâncias e nos números, que devastou a Ucrânia em 1932-1933, enquanto em Moscovo se proclamavam as «vitórias», quase todas fictícias, do 1º Plano Quinquenal, de acordo com as estimativas menos pessimistas terá feito entre 5 e 6 milhões de vítimas. Nada de comparável, porém, à Grande Fome, que na China sobreveio entre 1958 e 1962, durante a qual o número de pessoas mortas devido aos seus efeitos terá muito provavelmente rondado os 45 milhões. (mais…)

                  História, Memória

                  O elétrico vermelho

                  Num livro sobre o levantamento, o apogeu e o fim da Cortina de Ferro publicado há poucos meses pela Doubleday (Iron Curtain: The Crushing of Eastern Europe), a jornalista e historiadora norte-americana Anne Applebaum, conhecida por ser a autora de uma das mais sérias e completas obras sobre a origem, a organização e o funcionamento do Gulag soviético, conta-nos um episódio extraordinário. Ele ocorreu em Varsóvia já depois de terminada a guerra, num belo dia do verão de 1945. Seguia um funeral por uma das muitas centenas de ruas reduzidas a destroços na altura da retirada pelos nazis quando os seus tristes acompanhantes depararam de repente com uma cena extraordinária: um verdadeiro carro elétrico varsoviano, vermelho como sempre mas o primeiro a cruzar a cidade depois do fim do conflito, fazia o seu percurso tocando a sineta. As pessoas nos passeios estacaram todas, surpreendidas, e muitas desataram a correr atrás dele, enquanto outras batiam palmas e gritavam vivas. E então o funeral parou, os seus enlutados participantes esqueceram por momentos o corpo gélido que conduziam à última morada, e envolvidos na euforia geral viraram-se para aquele elétrico saído das cinzas e começaram, também eles, a bater palmas. Por um instante, uma espantosa vibração de esperança e de vida esmagou, gloriosa, a fixidez da morte.

                    Apontamentos, Memória, Olhares

                    Uma sombra de medo

                    De repente, uma sombra de medo começou a pairar sobre as cabeças de muitos dos nossos políticos de tribuna e comentadores de cátedra. Um medo não declarado, mas certo e percetível. Medo da atual vaga de protestos «antidemocráticos» e não conduzidos – materializados, veja-se a desfaçatez, na propagação pacífica da bela canção de fraternidade que anunciou o fim da ditadura – poder mostrar ao comum dos cidadãos que o exercício da democracia não se limita a depositar o voto na urna e, de seguida, a hibernar durante quatro anos com a consciência tranquila e a boca fechada. Passando uma procuração com plenos poderes aos governantes e aos deputados eleitos, inimputáveis durante toda uma legislatura ainda que já nem se recordem do rosto dos seus eleitores e, sem ponta de vergonha, tenham rasgado o contrato que com eles assinaram. (mais…)

                      Apontamentos, Atualidade, Opinião

                      Para quem é…

                      Os acontecimentos que nos últimos dias envolveram a presença pública de Miguel Relvas e a violenta contestação da qual esta tem sido objeto por parte de alguns grupos de cidadãos mais destemidos, levantam uns pequenos problemas. Não penso que, em democracia, a contestação dos governantes deva passar pelo cerceamento da sua liberdade de opinião e de expressão. Ou pelo insulto público. Existem formas e lugares para a demonstração do descontentamento, mesmo quando esta é muito veemente, e que podem passar por outras iniciativas sem que tal diminua o seu impacto. Porém, no caso deste governante, e do seu trajeto oportunista, obscuro, mercantil e politicamente desprestigiado, exibido com a conivência de um governo empenhado em pôr em causa a própria Constituição da República, justifica-se uma exceção. Perante a desfaçatez, enorme e insultuosa, que é a sua manutenção teimosa, artificial e até imprudente como responsável governamental da mais alta responsabilidade, a soberania pode ser transferida para os governados e estes adquirem todo o direito, desde que o não façam com recurso à violência física – o que jamais aconteceu, diga-se –, de fazerem ouvir a sua voz. Da forma, com a intensidade e nos lugares onde entendam por bem fazê-lo. O protesto e a indignação, para serem eficazes como protesto e indignação, não podem ser bradados em surdina, cantados em becos, mastigados em vãos de escada e exibidos à socapa com punhos de renda. Precisam ser visíveis e sonoros, e, de hoje em dia, de ganhar projeção mediática. Só que cantar o Grândola, Vila Morena em tal situação parece-me um pouco desprestigiante para este grande hino-canção, tão importante para a tradição democrática e a memória coletiva dos portugueses. É que «para quem é bacalhau basta», e por isso, como escrevia alguém com piada e carradas de razão no meu mural do Facebook, mais valia cantar a Relvas A Mula da Cooperativa.

                        Apontamentos, Atualidade, Olhares

                        A vida de Ricardo

                        Antes ainda de ser vertida para o inglês, Ryszard Kapuściński: A Life, a biografia do jornalista e escritor polaco nascido Pinsk, na Bielorrússia, em 1932, e falecido em Varsóvia no ano de 2007, escrita por Artur Domosławski, seu antigo colaborador e também jornalista, tinha já algum impacto mundial. Não é difícil perceber os motivos desse rápido eco. Ryszard Kapuściński foi um jornalista experiente e respeitado, conhecido por ter entrevistado centenas de atores políticos de primeira linha e calcorreado este mundo e o outro. Traduzido em muitas línguas sempre com apreciáveis tiragens, tinha e conserva a reputação de homem corajoso, aventureiro, sedutor e inteligente, e que ainda por cima escrevia muito, muito bem, de uma forma literária, assumidamente poética, rara no seu meio profissional. Mas do qual, talvez devido à nacionalidade e à língua periféricas, bem como aos longos anos de relativa discrição, pouco se sabia. Por isso, poder saber-se mais, e logo num grosso volume atulhado de episódios e de revelações, transformou-se rapidamente em fator de interesse. (mais…)

                          Biografias, História, Memória

                          Um cartaz perigoso

                          Há cerca de duas semanas, quando nele reparei pela primeira vez, pareceu-me de imediato que valeria a pena comentar um dos mais divulgados dos cartazes com os quais a CGTP procurou mobilizar os cidadãos para as manifestações deste 16 de fevereiro contra as políticas antissociais do governo. A maior parte da propaganda difundida falava aliás, preferencialmente, de «trabalhadores», não de «cidadãos», menosprezando a mudança semântica que nas últimas décadas envolveu aquela palavra. Agora reforçada, aliás, no contexto de um alastramento dramático do desemprego, do trabalho precário, da desqualificação profissional e da pauperização da classe média. Tomei na altura algumas notas, mas não escrevi logo um post pois de modo algum queria, por ínfima que pudesse ser a sua divulgação, que este pudesse ser interpretado como um apelo à desmobilização de um combate imprescindível e agregador que é urgente travar. Ultrapassadas essas circunstâncias e de um modo agora mais sereno, vou direto ao assunto. (mais…)

                            Artes, Democracia, Olhares, Opinião

                            Filosofia ao domicílio |6

                            Albert Camus

                            Noutro post da série que sugere uma hipotética biblioteca básica da filosofia contemporânea, hoje é a vez de apresentar O Mito de Sísifo, o «ensaio sobre o absurdo» publicado por Albert Camus (1913-1960) em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial e na sua fase de colaboração ativa e regular com a Resistência francesa.

                            Albert Camus era existencialista? Apesar de o ter por diversas vezes negado e da desavença com Jean-Paul Sartre em 1952, um homem capaz de escrever, no primeiro romance, «Tenho a intenção de me casar, de me suicidar ou de me dedicar à Ilustração. Num gesto desesperado, talvez…», era naturalmente existencialista. Mais tarde, quando publicou O Estrangeiro, o livro foi repetidamente julgado «existencialista»… Qual o motivo? Porque Meurseault, o herói, passeia como um sonâmbulo num mundo que parece realmente não habitar. E no entanto ele age, come, bebe, fuma, faz amor e até comete um assassinato. Através deste personagem, Camus fornece a chave para o seu ensaio editado quase ao mesmo tempo, O Mito de Sísifo, que aparece como o manifesto da sua «filosofia do absurdo». Aí afirma que o absurdo se encontra em todo o lado. Evoca o personagem de Sísifo, o herói grego condenado pelos deuses a empurrar até à eternidade uma rocha para o cimo de uma montanha, de onde ela rola forçando-o a recomeçar. Sísifo incarna o tipo de ser humano dedicado a uma vida insana. Aproxima-se aí de uma das intuições de Martin Heidegger: a estranheza do sujeito em relação ao seu mundo, que designa como «desamparo», e à qual Sartre chama «abandono». Em Camus a palavra é no entanto mais forte: é «absurdo». Soren Kirkegaard e Edmund Husserl propõem soluções para o desespero: a fé para um, a procura das essências para o outro. E Camus? Está muito mais próximo de Sartre e do seu dever de liberdade. Em O Mito de Sísifo, encontram-se estas palavras: «Se o absurdo aniquila todas as minhas possibilidades de liberdade eterna, então ele força-me, contrariamente, a exaltar a minha liberdade de ação.» Num mundo sem Deus nem valores últimos, o ser humano é ainda mais livre. Camus, sem nada esperar, faz também o elogio da criação artística: «Criar, é assim dar uma forma ao seu destino.» Mais tarde dará um conteúdo ainda mais radical à sua ideia de liberdade: ela é a revolta. [Tradução e adaptação de um artigo de Nicolas Journet.]

                              Olhares, Séries

                              As faturas e a apoteose do ridículo

                              Contou-me certa vez um amigo açoriano que a imagem do medo da sua mais recuada memória de infância associava três elementos: a proximidade de hipotéticos navios russos, a intervenção certa e segura do diabo e a convicção de que, por onde quer que passeasse na sua ilha, existiriam fiscais do isqueiro para o autuarem por falta de licença de uso daquela ferramenta manual de ignição, imprescindível para os fumadores, como ele era na altura. Este terceiro medo era afinal o único que tinha razão de ser: a necessidade de porte de licença para uso de acendedores e isqueiros antes de 1974 não é uma invenção de pessoas com imaginação e prova-nos de que forma, naquela época, a vigilância policial dos cidadãos combinava por vezes a rigidez do controlo com a intervenção do ridículo. O aviso, feito agora pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, de que, onde quer que se transacionem bens, poderão ser realizadas ações de fiscalização «que incidam sobre a obrigação de exigir a emissão de fatura por parte dos consumidores finais», ações que «podem ser realizadas à saída dos estabelecimentos comerciais para garantir que os consumidores exigem efetivamente as faturas pelas compras realizadas», reconduz-nos perigosamente a esse tempo. Pondo portugueses a vigiarem portugueses, de livro de autos na mão, inclusive à porta de capoeiras nas quais se possam transacionar clandestinos galináceos, ou encostados às carroças dos assadores de castanhas, como «medida de combate eficaz à economia paralela, à evasão fiscal e às situações de subfaturação». Para reequilibrar as contas do Estado, naturalmente. De volta pois à apoteose do ridículo.

                                Apontamentos, Atualidade, Memória, Olhares

                                Kapuściński e o socialismo

                                Quase a concluir a leitura da biografia do jornalista e escritor polaco Ryszard Kapuściński (1932-2007), da autoria do também jornalista e seu antigo colaborador Artur Domosławski. Um livro que justifica um post autónomo, dados os problemas que expõe, as informações que faculta, as dúvidas que levanta sobre as duas faces, a mais conhecida e a obscura, de uma das mais importantes, e das mais eloquentes, testemunhas da evolução do mundo na segunda metade do século XX. O que hoje aqui fica é apenas um extrato de um texto escrito por Kapuściński quando, após longos anos de trabalho como correspondente da imprensa polaca na América Latina, regressou ao seu país. Na Polónia vivia-se na altura a fase de transição que mais tarde determinaria o fim do regime «socialista», e Kapuściński, velho militante comunista mas homem que conhecia muito bem outras realidades, questiona-se nele sobre a diferença entre o idealismo e a entrega dos combatentes socialistas que conhecera na América Latina, e o panorama de laxismo e ausência de convicção com as quais deparava agora no seu próprio país:

                                «Ali: Devido à sua crença no socialismo, os jovens idealistas acabam muitas vezes na prisão, são torturados, são forçados a organizar-se na selva, e são por via de regra ignorados por aqueles que deveriam ser até os destinatários da sua luta. Aqui: Devido à sua crença no socialismo, os jovens carreiristas são os primeiros a conseguir um andar, um carro ou um lugar numa estância de férias. Ali: grandes ideais, o ruído metálico das espingardas; aqui: dinheiro fácil, viver indolentemente a ver televisão, passar a vida em bailes. Ali: rebelião, inconformismo, adrenalina; aqui: sorrisos falsos, mostrando apenas as caras que as autoridades querem ver. Se ali é o socialismo, aqui será o socialismo também?»

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                                  De um Portugal português

                                  Enquanto este blogue respira uns dias para ganhar outro balanço, aqui vai um post publicado há um pouco mais de quatro anos. Talvez não esteja muito desatualizado.

                                  Portugal Anos 50Numa tarde destas, enquanto me esforçava uma vez mais por dar algum sentido aos livros acumulados sem grande nexo, reencontrei um conjunto de postais reproduzindo fotografias de Gérard Castello Lopes tiradas ao Portugal dos anos 50. Foram editadas em 1999 na companhia de pequenos textos de dois Antónios. «Outros tempos, outros lugares», sublinhava um deles, o Tabucchi, na contracapa. O outro, o Barreto, falava de um país passado que Castello Lopes revirou e nos ofereceu contrariando uma quase crónica escassez de imagens. Mas será realmente assim? Estaremos a olhar aqui para um país inteiramente outro, mergulhado num sono coletivo e prolongado do qual só na década de 1960 teria sido possível despertar? Revejo as imagens e encontro em quase todas elas vestígios de um Portugal que me parece o de sempre, diverso daquele que hoje habitamos mas nem por isso imóvel, nem por isso falho do movimento que é parte da memória comum. Na qual continua a apoiar-se aquilo que nos aproxima, ajudando a desenhar a comunidade que imaginamos. (mais…)

                                    Atualidade, Fotografia, História, Memória