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O lado negro de Walt Disney

Durante décadas, para milhões de pessoas de diferentes gerações a vida de Walt Disney foi uma história cor-de-rosa editada em capa de seda. Como se o paraíso de sonhos materializado nos vários parques temáticos da Disneylândia fosse uma extensão da personalidade dessa figura supostamente idealista, amável e criativa, impecavelmente penteada e de bigode aparado, plena de autoconfiança, que povoou as fantasias de tantas crianças dos dois hemisférios. No entanto, essa vida encantadora foi em larga medida ilusória, construída e alimentada pelo próprio e pela indústria que fundou, uma vez que a sua biografia verdadeira é bastante menos transparente, claramente menos heroica e está demasiado povoada de nódoas. Não que tal facto seja novidade para quem conheça o seu trajeto para além das linhas mais essenciais da lenda, mas a evocação do Rato Mickey e do Pato Donald, de Dumbo, Bambi e Peter Pan, da Cinderella e de Mary Poppins, ou de tantos heróis aventureiros em versão «para todas as idades», continua a ofuscar um público sedento de fantasia, humor e finais felizes que vê em Disney um seu mentor. (mais…)

    Artes, Cinema, História, Olhares

    Por uma cultura mais sóbria

    Gilles Lipovetsky é um dos filósofos, críticos da superação hedonista e individualista da modernidade, mas ao mesmo tempo adversários de um coletivismo historicista que constrange a liberdade, cuja obra mais cedo e de forma mais substancial foi traduzida em Portugal. A Era do Vazio, saída em 1983, indiciava já aquela que, sob diferentes formas, será mantida como a sua interrogação maior, a saber: perante as contingências de uma época na qual deixou de existir a noção de finalidade histórica, como olhar o fenómeno inverso de em nada crer, por nada se bater, pois tudo é efémero? Em A Sociedade da Deceção (Edições 70), pequeno livro resultante de uma entrevista concedida a Bertrand Richard em 2006 e agora traduzido, Lipovetsky aborda os malefícios morais produzidos por essa «sociedade da abundância» que tende a depreciar, a esvaziar, o valor de todas as coisas, conduzindo à ideia de que nada, nem mesmo o sentimento de posse de determinados bens, a todo o instante substituídos por outros, vale realmente a pena. Nestas condições, prevê um aumento do mal-estar, mas pensa que o consumismo capitalista acabará por se cansar de si mesmo, invertendo a marcha rumo a uma cultura necessariamente mais sóbria e mais humana. Capaz de produzir os seus próprios anticorpos, entre estes o papel do voluntariado, um ecologismo responsável, a ideia de comércio justo e de desenvolvimento sustentável, e até a capacidade crítica induzida pelas redes sociais. Associado à errância das convicções, o mercado conseguiu alterar valores e estados de espírito, mas não comercializá-los de todo. Para Lipovetsky é, pois, possível o levantar de uma democracia pós-consumista. (Gilles Lipovetsky, A Sociedade da Deceção. Trad. Luis Filipe Sarmento. Edições 70. 114 págs.)

      Atualidade, Democracia

      Uma outra Segunda Guerra Mundial

      Antony Beevor
      Antony Beevor

      O coreano Yang Kyoungjong saiu do esquecimento durante o trabalho de arquivo. Tratava-se de um pobre homem de origem rural, recrutado à força sucessivamente pelo Exército Imperial Japonês, pelo Exército Vermelho e pela Wehrmacht, que foi feito prisioneiro pelos americanos na Normandia em junho de 1944. O seu trágico destino, com toda a probabilidade partilhado com muitos outros, funciona como um bom indicador da primeira intenção de Antony Beevor ao propor-se escrever aquela que poderia ter sido apenas mais uma entre centenas de sínteses sobre o conflito que identificou como «o maior desastre da História produzido pelo próprio homem». Neste A Segunda Guerra Mundial, editado já em 2012, Beevor procurou de facto ultrapassar os relatos que a espartilham com base numa separação rigorosa dos diferentes espaços envolvidos – a Europa a leste dos Pirinéus, o norte de África até à Abissínia, a imensa região do Pacífico, o Extremo-Oriente –, contornando o ponto de vista eurocêntrico e estabelecendo uma linha de continuidade entre as campanhas ocorridas nos múltiplos teatros de operações. Aliás, não é por casualidade que, como numa viagem de circum-navegação, o relato começa em agosto de 1939, com a vitória dos soviéticos sobre os japoneses em Khalkin-Gol, entre a Mongólia e a Manchúria, e encerra seis anos mais tarde, em agosto de 1945, precisamente na mesma região, com a invasão do norte da China pelo Exército Vermelho. (mais…)

        Democracia, História

        Galão escuro

        Não sou propriamente um admirador do estilo e do discurso pessoal, a meu ver um tanto obreirista, despojado de jogo de cintura e de léxico geracionalmente datado, de Arménio Carlos. E menos ainda o sou, apesar de lhe respeitar o lastro de dedicação e luta, da forma como a política sindical do seu partido tem orientado a atividade da CGTP. Mas estou inteiramente do lado de Arménio quanto a esta «questão do escurinho». Refiro-me à forma como o secretário-geral da central sindical se referiu publicamente a Abebe Selassié, o etíope que qualificou como o «terceiro rei mago» desta Troika alienígena que nos governa e empurra para o precipício. A obsessão do politicamente correto faz destas coisas: vigia até os pequenos detalhes, desvia-se do que é realmente importante, e erra o alvo com inábeis tiros de pólvora seca. Será preferível, para quem se entreteve a dissecar esta liberdade verbal, o discurso cinzento, permanentemente examinado e autovigiado, que retira humanidade ao combate político e faz de quem assume responsabilidades públicas um cidadão permanente acossado? Ou ficarão os críticos neste particular de Arménio Carlos menos perturbados com as sobrevivências dessa previsível «língua de madeira» que contamina tantas vezes, e em momentos decisivos, o seu discurso? Quando ressurgem estes fantasmas lembro-me sempre de um amigo que conheceu o antigo presidente moçambicano Samora Machel – nos anos que se seguiram ao 25 de Abril objeto regular de piadas racistas, bastante acintosas, que a generalidade dos portugueses de esquerda e de direita contava no meio de grande galhofa – e me garantiu terem sido as mais engraçadas de todas as que ouviu aquelas saídas da boca do próprio Samora. O antirracismo pratica-se e combate-se em muitas frentes, mas o policiamento severo, maníaco e por vezes demagógico da linguagem – sobretudo quando aplicado a pessoas insuspeitas de partilharem essa detestável atitude social – não será seguramente uma delas.

          Apontamentos, Atualidade, Olhares

          Memória da esquerda da esquerda

          Mao e o Lótus Azul
          Mao e o Lótus Azul

          Nos últimos anos tem vindo a crescer o  volume de estudos e de testemunhos de caráter autobiográfico sobre os trajetos da «extrema-esquerda» em Portugal nos tempos que precederam ou se seguiram à Revolução dos Cravos. Esta tendência tem ajudado a superar dois equívocos que durante algum tempo integraram a «lenda» pública construída a propósito desse setor da oposição ao antigo regime. Um deles, talvez o mais conhecido, é o proposto de um modo quase sempre ligeiro e sensacionalista por alguma comunicação social, mais interessada em explorar os «pecadilhos» juvenis desta ou daquela figura pública cujo trajeto de vida passou por ali do que em compreender historicamente o seu compromisso. O outro, mais profundo, assenta na perspetiva divulgada pelos setores que os militantes dessa área consideravam então reformistas, ou «revisionistas», e que ainda hoje não convivem bem com o facto de, apesar da sua «doença infantil» (seguindo o diagnóstico de Lenine) ou do seu «radicalismo pequeno-burguês», as organizações «esquerdistas» terem crescido e protagonizado sob o marcelismo importantes lutas contra o regime e a Guerra Colonial. Desempenhando também, apesar de confinadas aos meios estudantis e intelectuais, e ainda a estreitas franjas da juventude operária, um manifesto papel de catalisador no teatro político do imediato pós-25 de Abril. (mais…)

            Biografias, História, Memória

            Delinquente

            Fotografia de eda Pan
            Fotografia de eda Pan

            «Traficava droga, assaltava lojas e esfaqueava rivais. Mas continuava a esconder o cigarrito sempre que passava por um dos amigos do pai.»

            De Galáxia de Berlindes, volume de «textos ultrabreves» de Pedro Monteiro; à venda ao excelentíssimo público em algumas das melhores livrarias.

              Apontamentos, Ficção, Olhares, Recortes

              Mudança em Israel?

              Existe um equívoco, partilhado por muitas pessoas que têm o cuidado de separar o antissemitismo do antissionismo, fundado na ideia errada de acordo com a qual o sionismo foi e é, da base ao topo, sempre agressivo, expansionista e basicamente de direita. Como se sabe, a explicação mais simples aponta o antissemitismo como preconceito ou hostilidade contra os judeus, fundado no ódio contra a sua identidade histórica, étnica, cultural e religiosa. Esta é uma tendência que uma grande parte da esquerda sempre recusou ou continua a recusar, ainda que, na prática, a sua vertente mais dogmática com ela tenha pactuado ou continue muitas vezes a pactuar. Por sua vez, o antissionismo prevê uma oposição frontal ao direito do povo judeu à autodeterminação e à existência de um Estado nacional judaico independente e soberano. Simplificando: um grande número de bons cidadãos e de consciências democráticas admite que os judeus não devem ser perseguidos pelo facto de o serem, mas, sendo-o e vivendo no único estado judaico existente, devem tratar de empacotar os haveres e tornar à errância, devolvendo a integralidade do território àqueles, palestinianos principalmente, que dele foram espoliados quando do processo que conduziu à independência e depois, pela via da guerra e dos colonatos, à expansão territorial de Israel. O antissionismo alimenta assim o antissemitismo. (mais…)

                Atualidade, História, Olhares, Opinião

                Filosofia ao domicílio |5

                Deleuze & Guattari

                No quinto post da série, destaca-se Mille PlateauxMil Planaltos, o segundo tomo de Capitalismo e Esquizofrenia, publicado em 1980 pelos filósofos Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992).

                «Um livro não é feito de objetos ou de assuntos, é feito de matérias diversamente constituídas, de datas e a velocidades muito diferentes.» Gilles Deleuze e Félix Guattari, recusando o modelo tradicional do «livro-raiz», incapaz de comportar a multiplicidade, escreveram em conjunto um livro único, pensado como verdadeira experimentação. Mille Plateaux (Mil Planaltos na edição portuguesa, em tradução discutida) é uma obra concebida de acordo com uma multidão de estratos, de plateaux (tabuleiros? planaltos?), uns ligados aos outros mas sem uma ordem ou hierarquia que lhes atribua um lugar certo. Para Deleuze, este livro foi o termo do seu pensamento antisistemático já desenvolvido em Différence et Répétition (1968) e em Logique du Sens (1969), livros nos quais elaborou as premissas de uma nova metafísica, destinada a promover uma filosofia da multiplicidade contra a dominante filosofia da unidade. Segundo tomo, após L’AntiŒdipe (1972), de Capitalisme et Schrizophrénie, Mille Plateaux prossegue a procura de um pensamento antiacadémico, liberto de todo o «aparelho do saber». Aspira aliás a dirigir-se aos não-filósofos, a libertar a filosofia da sua própria escola de intimidação, que não admite no seu seio senão os especialistas em determinados textos. O projeto de Deleuze é também o de fundar uma «filosofia pop» que, tal como acontecia com a cultura pop, se dirigiria a um público de massas. (mais…)

                  Olhares, Séries

                  A Voz da rádio

                  No velho Programa 1 da Emissora Nacional, do tempo pré-Abril, existia uma rubrica, típica da Guerra Fria, que continha essencialmente propaganda anticomunista e se destinava a reforçar o semblante psicologicamente atemorizador da «Cortina de Ferro». Encerrava sempre o arrazoado em tom autoritário com a mesma frase, bradada por voz masculina, que dava até o título ao programa: «A verdade é só uma, Rádio Moscovo não fala verdade.» A verdade a que os portugueses tinham direito era então determinada pelo controlo ou pela vigilância das quatro estações de rádio em onda média, curta ou FM permitidas pelo regime. Do outro lado do continente, pela mesma época, para a imensa maioria dos cidadãos a questão punha-se de uma forma muito idêntica: apenas podiam ouvir rádio, em casa, nas lojas, nas cantinas ou nos locais de trabalho, através de aparelhos como este, construídos sem sintonizador, com um só botão para ligar/desligar e para aumentar ou diminuir o volume. Desta forma forçados a ouvir sempre a mesma voz. Como aquela que se podia ouvir deste lado, apresentada como certa, segura e rigorosamente indiscutível. A pesada Voz da Verdade.

                    Apontamentos, Etc., Memória

                    A História e as escolhas de Israel

                    Tony Judt

                    Quem se interessa um pouco pela história recente, ou por aquela que com esta se relaciona, conhecerá provavelmente, pelo menos de ler alguns comentários a propósito do tema, as teses revisionistas, inevitavelmente polémicas, do historiador Shlomo Sand, um descendente de judeus polacos sobreviventes de Auschwitz que é, entre outros empregos académicos, professor na Universidade de Tel Aviv. O seu Como o Povo Judeu foi inventado, acaba de ser publicado em Portugal, numa edição da Figueirinhas, e traz-nos de volta ao essencial da tese que defendeu e o título desta obra limpidamente revela. Sand procura aí provar que o povo judeu jamais existiu como «raça-nação» com uma origem comum, resultando antes de uma mistura de grupos muito diferentes que, em diversos momentos da história foram aderindo à religião judaica. O que, a ser aceite, pode reduzir parte da legitimidade histórica que fundamenta a existência de Israel. Por vezes o seu trabalho – discutível, sem dúvida, mas não negligenciável – tem sido aproximado daquele produzido pelos «historiadores» que desenvolveram teorias negacionistas a respeito do Holocausto, considerando-o essencialmente uma «invenção dos judeus», mas essa é uma ideia de modo algum partilhada por Sand. (mais…)

                      Atualidade, Democracia, História

                      Oshima e a educação sexual

                      Morreu ontem aos 80 o realizador japonês Nagisa Oshima, a quem, no obituário, o Público chama com justiça «um dos mais importantes cineastas do corpo». Todavia, em Portugal, para muitas pessoas o cinema de Oshima permaneceu na memória devido apenas à exibição pela RTP, numa noite de 1991, do seu O Império dos Sentidos. O erotismo do filme, focado na relação obsessiva entre a prostituta Sada e Kichizo, o dono do bordel, gerou algum escândalo e teve destaque de primeira página, com o arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueira, a insurgir-se contra a inclusão da obra na grelha do canal público. Ficou para o futuro a sua frase sobre o que vira: «Aprendi mais em dez minutos deste filme do que no resto da minha vida». À volta da exibição de O Império dos Sentidos, tenho aliás para contar uma história igualmente curiosa, ainda que um pouco mais antiga. O filme foi estreado em Portugal em 1976, o ano de produção, e vi-o no meio de um tumulto. Dado o erotismo patente nos fotogramas que acompanhavam a sua divulgação, no cinema onde o pude ver – o velho Avenida, de Coimbra – o público era composto por uma estranha mescla de pessoas interessadas em «cinema de autor» e outras, menos dadas às artes e desinteressadas da crítica, que acreditavam tratar-se simplesmente de mais um filme pornográfico. Como não era obviamente o caso e as cenas se arrastavam sem qualquer exibição de sexo explícito, gerou-se rapidamente um tumulto, com os amantes do hardcore a manifestarem a sua indignação, abandonando a sala e exigindo aos berros a devolução do dinheiro do bilhete. Nunca soube em que ficou o episódio, uma vez que fui dos que permaneceram sentados e viram o filme até ao fim. Ainda que sem o proveito pedagógico que teria mais tarde o arcebispo de Braga.

                        Apontamentos, Cinema, Memória

                        Alien e Toninho

                        Estão a ver aquela criatura alienígena, altamente agressiva, que persegue e mata a tripulação de uma nave espacial no filme Alien, o 8º Passageiro, dirigido em 1979 por Ridley Scott? No enredo, a única forma de lhe sobreviver é destruí-la, já que na sua matriz estão uma agressividade congénita e uma vontade de morder, de matar, impossíveis de controlar, só saciadas do sangue e da carne de um ser humano se encontrarem outro a quem decepar, trucidar, mastigar e sorver. Agora imaginem que o realizador do citado filme de ficção científica era português e chamara Toninho ao monstro intergaláctico. Seria inevitável que em relação a um eventual desejo de vingança pelos crimes que este cometera se contrapusesse, entre os espetadores, um sentimento de culpa por num certo momento lhe quererem mal. Para mais sabendo-se, como se sabe, como quase todos os rapazes maus homónimos, os Toninhos humanos deste mundo, são recuperáveis, desde que se lhes dê, independentemente de serem ou não psicopatas, a dose certa de carinho e mais uma oportunidade. (mais…)

                          Apontamentos, Devaneios, Opinião

                          Ainda Hobsbawm

                          Eric Hobsbawm

                          O desaparecimento no passado outubro do historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) teve uma repercussão mediática à escala do impacto do seu trabalho. O longo e ativo trajeto profissional contribuiu em larga medida para o quinhão de reconhecimento que determinou esse eco, mas o que ampliou o reconhecimento público que obteve foi principalmente o facto de, como poucos na sua área, ter contribuído para levar o interesse pela dimensão explicativa da História até um conjunto amplo de colegas de outras áreas de saber, de estudantes de diferentes gerações e de leitores ávidos, que sem a sua ajuda mais dificilmente teriam voltado para aí os seus horizontes. Conseguiu-o através de dois aspetos particulares do seu trabalho: o primeiro foi a multiplicidade dos temas pelos quais se interessou, trazendo para a academia, sem descuidar outros mais canónicos, assuntos até então proscritos, como o papel criador dos bandidos e dos rebeldes, a vida verdadeira «dos de baixo», a formação do universo do jazz, o retorno dos nacionalismos ou os modos de «invenção da tradição»; o segundo aspeto prende-se com o facto de, em A Era dos Extremos, uma das obras mais lidas e recomendadas sobre a história humana recente, ter defrontado as cronologias tradicionais definindo um «breve século XX» balizado, entre 1917 e 1991, pelo impacto mundial da Revolução Soviética, do seu apogeu, estabilização e queda. Ao mesmo tempo, a elevada qualidade da sua capacidade narrativa permitiu-lhe ir conquistando para o território do conhecimento histórico um público não-especializado, motivado acima de tudo pelo prazer da leitura. (mais…)

                            Biografias, História

                            A responsabilidade da Samsung

                            Volto ao caso público do vídeo da Samsung que se tornou viral e inflamou uma parte do país nas últimas 24 horas. Em verdade digo, a quem nunca teve desejos fúteis e fetiches por objetos, que atire a primeira pedra à jovem Filipa «Pépa» Xavier por esta ter revelado como maior desejo para 2013 a aquisição de uma mala. Não uma mala qualquer, claro, mas uma daquelas pretas da Chanel, modelo Timeless Classic, que, para além de medonha (gostos não se discutem) e pouco prática, ascende a um custo, consoante o tamanho, que ronda entre os 2990 e os 3750 euros. Se volto a este episódio completamente banal é por me parecer terem os jornalistas e comentadores que o abordaram interpretado a partir do lado errado a onda de gozo e indignação que rapidamente o envolveu. Não, estão enganados, aquilo que caiu mal a muitas pessoas não foi o facto de a moça ter uma certa «gana de mala», que a própria, aliás, reconheceu logo como algo consumista. Nem sequer o ter proclamado publicamente tal raça de apetite num tempo em que a maioria dos portugueses faz contas, ou começa a fazê-las, ao dinheiro para pagar as necessidades mais elementares. Caiu mal e tornou-se confrangedor, sem dúvida, aquela exibição obscena, pretensamente estilosa, de tolice e de falsa politesse, mas o que aconteceu de realmente grave tem passado ao lado dos comentários. Apesar de ser tão simples detetá-lo. Grave e inaceitável foi antes, foi mesmo, o facto de uma empresa como a Samsung apresentar como modelo de um certo charme e como instrumento de apelo à compra dos seus produtos a exibição despudorada de uma total ausência de sensibilidade social.

                              Apontamentos, Devaneios, Etc.

                              Nós, albaneses

                              Apesar de já ter sido mais usada, a palavra «albanização» continua a fazer o seu curso no vocabulário político ordinário. Originalmente, reportava-se a uma vinculação às características do Estado albanês nos tempos da República Popular, proclamada no final da Segunda Guerra Mundial e governada com pulso de ferro por Enver Hoxha e o seu Partido do Trabalho. O território da Albânia, outrora local de um trânsito, nem sempre pacífico mas ruidoso e constante de povos muito diversos, servira de base de apoio nos Balcãs aos fascistas italianos e depois aos nazis. Expulsos estes, passou, após curto período de conflito civil que levou os comunistas ao poder, a fechar-se completamente ao exterior. Uma situação ampliada a partir de 1948 com a rutura completa com a Jugoslávia, à qual se seguiria, em 1961, o corte de relações com a União Soviética, e depois, em 1978, o distanciamento da China. A «albanização» tomou então dois rostos complementares: exprimiu, por um lado, a dimensão de um «Estado-pária», fechado sobre si próprio e que procurou viver de forma autossuficiente, na ignorância das mudanças que ocorriam à sua volta; e por outro, em consequência desses limites e do caráter totalitário do regime, marcou também a instauração de uma política interna de rígida contenção do desenvolvimento económico, cultural e social e de efetivo limite dos direitos individuais. (mais…)

                                Apontamentos, Atualidade, Memória, Olhares

                                Portugal, gare de partida

                                Imagem de Zoë
                                Imagem de Zoë

                                Há pouco mais de um século a figura do «brasileiro», o ricaço fanfarrão recém-chegado do lado de lá do Atlântico, com fortuna incerta, feita de astúcias e aparências, ou efetiva, reunida sabe-se lá como, era notória na paisagem das nossas aldeias, vilas e pequenas cidades. Não que a sua presença fosse significativa em termos demográficos – de facto, surgia um aqui, mais dois acolá, um outro um pouco mais além – mas porque o seu porte extrovertido e esbanjador, e também o seu comportamento moralmente dúbio e um tanto pacóvio, se faziam notar em ambientes nos quais dominava o recato do fato escuro e a moderação dos gastos pessoais e das atitudes públicas. Na literatura portuguesa da segunda metade do século XIX, a pícara personagem surge em múltiplas obras, tendo sido Camilo quem dela traçou retratos mais ásperos e impiedosos, embora forçosamente caricaturais. (mais…)

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                                  Filosofia ao domicílio |4

                                  Paul Ricoeur

                                  No quarto post da série, a obra destacada é Tempo e Narrativa, publicada em três tomos, entre 1983 e 1985, pelo pensador francês Paul Ricoeur (1913-2005).

                                  Aberto a todas as filosofias, o pensamento de Paul Ricouer procurou dialogar com as diversas influências que o formaram, esforçando-se sistematicamente para diluir as oposições que entre elas pudessem existir. É no entanto na ação humana que se encontra o fio condutor do seu trabalho. Órfão a partir dos dois anos, Ricoeur interessou-se desde muito cedo pela questão do sofrimento, do mal e da culpa. Nos anos 30 descobriu Edmund Husserl, cuja obra ajudou a divulgar em França através da tradução das Ideias Orientadoras para uma Fenomenologia, que o filósofo checo-alemão havia publicado em 1913. A marca deixada pelo seu pensamento na teoria da fenomenologia será profunda. No entanto, para Ricoeur a filosofia não era uma atividade de natureza narcísica. E foi por isso que o seu espírito de abertura foi também de abertura para aquilo que se passava fora do campo mais específico da sua disciplina. (mais…)

                                    Biografias, Olhares, Séries

                                    As duas vias da alternativa

                                    Se não quisermos naufragar no desânimo, temos de mudar de agulha, de procurar outra rota. O empobrecimento da maioria das pessoas, a diminuição do papel social do Estado, o crescimento brutal do desemprego, a redução progressiva das liberdades e dos direitos, a instalação de um clima de medo e descrença, a desconfiança dos cidadãos em relação aos seus governantes, a desvalorização do ensino e do conhecimento, o menosprezo pela criação e pelos criadores, a ausência generalizada de expectativas, a destruição apressada de tudo aquilo que de positivo foi erguido sob o regime democrático, exigem dos cidadãos cientes desta desgraça uma atuação rápida e enérgica. A construção de uma alternativa ao atual governo, mas também de uma mudança clara em relação às lógicas de sistema que delapidaram os dinheiros públicos, instituíram o «aparelhismo» rotativista partidário como princípio de governo e desvalorizaram a democracia. Esta é uma necessidade que ganha, visivelmente, um número cada vez maior de adeptos entre os convictos de que não será com o fatalismo, a desistência e a depressão coletiva que se poderá inverter a situação. Que se poderá voltar a viver num país minimamente justo e com um lugar para a dignidade e a esperança. (mais…)

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