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Os novos bárbaros

A palavra «bárbaro» deriva, como é sabido, do grego βάρβαρος, significando «não grego». Era dessa forma que os antigos helenos classificavam os estrangeiros e todos os povos cuja língua não era a sua. Começou por ser uma alusão aos persas, cujo idioma de toada gutural entendiam como um estranho e indecifrável «bar-bar-bar». Por extensão, também os romanos foram por eles designados como bárbaros. Depois, já sob o Império Romano, a expressão passou a ser utilizada com a conotação de «não-romano» ou de «incivilizado», aplicada em primeiro lugar aos hunos, aos celtas e aos diferentes povos germânicos, cujo comportamento, reputado como brutal e cruel, era inexplicável e totalmente fora dos parâmetros da sua matriz cultural, parecendo bastante ameaçador. A palavra foi-se mantendo entretanto, ao longo dos séculos, no léxico ocidental. Apesar de contestável na sua dimensão etnocêntrica, o seu uso superou em algumas significações este limite, para se vincular negativamente à classificação de todos aqueles que se opunham, recorrendo à violência ou pela força da ignorância, ao que parecia serem as conquistas partilhadas da humanidade. Ajustado, sucessivamente, a todos os que se afastavam de um ideal de paz, de bem-estar, de saber, de liberdade, de igualdade, de proteção dos mais fracos, de supremacia do interesse da comunidade ou coletivo, de defesa do indivíduo frente ao pensamento único e a todas as modalidades de opressão, de desrespeito das minorias, dos excluídos, dos mais pobres e mais fracos. (mais…)

    Apontamentos, Olhares, Opinião

    Depardieu já não mora ali

    Com aquele perfil de Napoleão Bonaparte aquilino, sorridente e bem nutrido, visivelmente menos dado a cavalgadas e a batalhas que o original, Gérard Depardieu, 64 anos, grande ator, realizador episódico e agora empresário de sucesso, oferecia-nos, até há pouco tempo, uma excelente representação visual do «verdadeiro francês». No ecrã, foi o Conde de Monte-Cristo. Foi D’Artagnan. Foi Porthos. Foi Mazarino. Foi Cyrano de Bérgerac. Foi Jean Valjean. Foi até o gaulês Obélix. E ficou para sempre, já do lado meridional dos Alpes, como o inesquecível Olmo Dalco, protagonista pobre do 1900, de Bertollucci. Durante anos viveu também como um homem de causas, tendo apoiado em 1987 a reeleição de François Mitterrand, que lhe aplicou na lapela o emblema da Legião de Honra.

    Entretanto engordou bastante, tornou-se empresário vinhateiro e hoteleiro de sucesso, investiu empenhadamente na bolsa, e, em 2007, passou-se para o outro lado da História, apoiando a eleição, e depois a frustrada reeleição, de Nicolas Sarkozy. Pelo meio foi-se tornando um Olmo bem-sucedido na vida, arrivista e colérico, e de tal forma podre de rico que foi um dos alvos da lei Hollande destinada a taxar poderosamente os franceses que juntam muito mais dinheiro do que aquele que conseguem contar. Por isso se mudou para a Bélgica, onde a intervenção fiscal do Estado é consabidamente mais branda. E agora acaba de, apenas em duas semanas, obter de Vladimir Putin a nacionalidade russa. Pode ser que, nas suas queixas de contribuinte, tenha até algumas justificadas razões de queixa. Mas da imagem futura de egoísta, vira-casacas e oportunista já não se livrará mais. E no nosso imaginário partilhado deixou para sempre de representar uma certa «França francesa», heróica, democrática e combativa. Dá pena mas a escolha foi dele.

      Apontamentos, Cinema, Olhares

      O ódio

      Fragmento de uma das novelas-testemunho mais terríveis que alguma vez li: O Tchekista, de Vladimir Zazúbrin, editado pela Antígona com tradução de António Pescada. O livro, depois de cortado e emendado por imposições do censor, foi originalmente publicado em 1923. Acompanhado de um prefácio saído da pena de um tal Valerian Pravdúkhin, no qual se declarava que a obra «ajudará os verdadeiros revolucionários a cauterizarem definitivamente em si mesmo os “espinhos” herdados do passado histórico, para se tornarem intrépidos engenheiros da transformação inevitável do seu ser». Enquanto «os pequenos-burgueses se assustarão» inevitavelmente «diante deste desenho de traços carregados», pois «não foi para eles que a revolução abriu as suas amplas estradas verdes para os longes radiosos, para o oceano da sociedade sem classes». Zazúbrin, nasceu em Pensa, a sudeste de Moscovo, no ano de 1895, ajudou a preparar a revolução bolchevique, foi o primeiro presidente da União Siberiana de Escritores e, apesar dos elogios que no início da carreira literária o próprio Lenine lhe fizera como escritor «de um novo tipo», terminou fuzilado em 6 de Dezembro de 1938, no auge do Grande Terror estalinista.

        Apontamentos, Democracia, História

        Imaginem lá

        Lembro-me bem de todas as meias-noites da mudança de ano. Mesmo nos momentos difíceis, ou naqueles mais tristes, sem presságio de futuro ou com morte próxima, elas aconteceram em ambientes partilhados de bem-estar e de esperança. Até aquela, irrepetível, passada enregelado e à luz de uma vela, na casa clandestina, a comer fatias de um bolo-rei minorca misturadas com cerveja choca. Quando a televisão mudou os hábitos e, no tempo do regime velho, se passou a mostrar ao povo o réveillon dos ricos, de fato completo ou vestido de noite – exibindo alegria de circunstância entre cornetas de plástico, serpentinas, chapéus cónicos, pandeiretas e línguas de sogra –, havia ainda assim uns minutos para sair à rua e olhar os artifícios de fogo lá no alto, no céu. E para ouvir os cláxones dos carros, as pancadas nos tachos e nas panelas, os votos gritados de bom ano, os estampidos secos das rolhas, sob o clarão festivo da luz pública.

        Este ano, porém, e pela primeira vez, fui à varanda para dar de caras com um quase silêncio, a rua quase deserta, as janelas com as cortinas corridas, uns petardos pobres, isolados e sem graça alguma, a fazer de conta que assinalavam um momento especial. Engoli então a minha dose de passas com uma sensação de perda. Aquilo que estamos a viver faz-nos assim, mais tristes e semi-mudos, menos esperançosos, mais pobres e inevitavelmente inseguros, enquanto escutamos aqueles que escolhemos para organizarem a esperança de todos a prometerem-nos o pior. Se não para todo o sempre, dizem eles de olhos no chão, seguramente até ao fim das nossas vidas. E das vidas dos que vierem depois. Expiando, porque merecemos, o pecado de termos um dia confiado em que a cada trânsito do calendário se seguia um futuro. Um futuro melhor, mais feliz, imaginem lá. Imagine-se lá.

          Apontamentos, Democracia, Devaneios, Olhares

          Filosofia ao domicílio |3

          Jacques Derrida

          Terceiro post da série iniciada há dias, a obra evocada hoje é A Escrita e a Diferença, publicada em 1967 por Jacques Derrida (1930-2004), o filósofo francês de origem argelina e descendente de judeus sefarditas.

          Na história da filosofia, Jacques Derrida ocupa um lugar singular. Tendo levado a cabo um longo e minucioso trabalho de releitura de textos filosóficos, fê-lo com a permanente intenção de decifrar, nas margens e entre as linhas dos discursos, um texto outro que se oferecia à leitura. Esse trabalho tem um nome: «desconstrução». Noção utilizada já por Martin Heidegger, a desconstrução nasceu nos Estados Unidos, mas foi a Derrida que incumbiu conceptualizar a sua prática, conferindo-lhe um impacto e uma dignidade académica de dimensão internacional. Longe de constituir um método aplicável segundo regras fixas e claras, a desconstrução é um princípio de arruinamento alojado no coração de todo o discurso e de toda a construção. No entanto, não é uma destruição. Desconstruir um texto é antes interrogar os seus pressupostos para abrir uma nova leitura, uma nova interpretação. Desta forma, Derrida põe os textos a dizerem aquilo que não parecia até esse momento ter sido dito. Em L’Écriture et la Différence, deixou claro que a tradição filosófica jamais deixou de fazer subordinar a escrita à presença da palavra viva, convertendo-a num suplemento técnico e artificial sem substância. De facto, na tradição do pensamento ocidental, desde Platão a Rousseau, sempre se procurou atingir o sentido último das coisas através do logos (a razão, a lei, o discurso) que se exprimiria de uma forma natural através da palavra.

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            Democracia, Séries

            A capital e o país nos anos 60

            A historiografia que se ocupa da fase final do Estado Novo tem enfatizado, entre as condições que conduziram à queda do regime, os fatores políticos, militares, diplomáticos, económicos e sociológicos que foram limitando a sua capacidade para se renovar ou mesmo para se manter de pé. Tem sido destacado, com toda a justeza, o papel das oposições organizadas na construção do espaço de resistência e favorável à sublevação que tornou possível, ou inevitável, o 25 de Abril. O que raras vezes tem sido mostrado é que essa dinâmica de mudança teve uma outra componente, ao mesmo tempo subterrânea e aparatosa, traduzida na importação de valores e de hábitos internacionais, já em curso nos países industrializados, na afirmação da uma nova cultura juvenil e na introdução de práticas de consumo capazes de abalar a fortaleza política e moral que, desde a sua já distante génese, o salazarismo e a propaganda do regime tinha procurado defender e apresentar como modelar. (mais…)

              História, Memória, Olhares

              Reabilitar Orwell sacudindo-lhe o pó

              Christopher Hitchens
              Hitchens sobre Orwell

              Mais de setenta anos após a sua morte, o percurso pessoal, político e intelectual de George Orwell permanece objeto de um escrutínio atravessado ao mesmo tempo pelo aplauso e pelo ódio. No entanto, se o primeiro, associado à sua denúncia militante da desigualdade social, do imperialismo e do totalitarismo como os males capitais do seu tempo, encontrou sempre momentos de reconhecimento público e outros nos quais pareceu confinado apenas a uns quantos admiradores, o segundo estabeleceu-se como uma constante, com uma intensidade que parece até, apesar dos múltiplos esforços de impugnação, ter-se inflamado mais após a morte do escritor. Aquilo que Christopher Hitchens (1949-2011) se propôs fazer neste A vitória de Orwell, escrito há já cerca de uma década mas tão brilhante que resistiu a esta frágil tradução portuguesa, foi olhar para a avalanche de rancor e, de forma sustentada e sagaz, desmontar os mais insistentes argumentos adversos ao escritor, desancando alguns dos seus intérpretes. O que não é de admirar vindo de quem, como aconteceu com Hitchens, foi objeto de comparáveis vilipêndios e incompreensões. (mais…)

                Biografias, Democracia, História

                Admirável mundo velho

                Num comentário a esta imagem:«Saudades de uma linha reta!»
                Num comentário a esta imagem:
                «Que saudades de uma linha reta!»

                A palavra Ostalgie emergiu há alguns anos, na Alemanha, como expressão de uma tendência para reavaliação benévola do passado da antiga República Democrática Alemã. Esta «nostalgia do leste» surgiu, de início, como expressão da dificuldade de alguns setores sociais, particularmente os ligados às gerações mais velhas de «alemães de Leste», para lidarem com as transformações da sua vida pessoal e da sua História coletiva. Mas rapidamente expandiu a sua influência, absorvendo grupos descontentes com a realidade e as desigualdades do capitalismo, chegado de rompante e deixado à solta depois de 1989, ou então incapazes de se adaptarem a novos estilos de vida e a diferentes processos de trabalho. Enquanto os mais velhos passaram a exprimir nostalgia por um passado, o da sua idealizada juventude, no qual, apesar da ausência de liberdade e da penúria generalizada, tinham vivido uma certa experiência de segurança no emprego e de igualdade formal no quotidiano, muitos dos mais jovens começaram antes a idealizar um passado que não viveram, olhando-o como expressão do paraíso perdido ao qual seria bom poder alguma vez regressar. (mais…)

                  Atualidade, Cibercultura, História

                  Filosofia ao domicílio |2

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                  Neste segundo post da série iniciada há poucos dias, o destaque é para O Homem Unidimensional, publicado em 1964 pelo filósofo alemão «marxista heterodoxo» Herbert Marcuse (1898-1979).

                  Bíblia do pensamento crítico durante os sixties, O Homem Unidimensional procurou fundamentalmente descrever aquilo que Herbert Marcuse designou como «sociedade industrial avançada», tão implantada então no mundo capitalista «livre» quanto do lado soviético. Denuncia aí a burocratização das relações sociais e principalmente a formatação do pensamento através dos média, da publicidade e da propaganda, ou mesmo da imposição de um determinado padrão de moral. Por mais modernas que pudessem ser, as sociedades industriais encaminhavam-se, segundo Marcuse, para uma forma de «pensamento único» que matava à partida toda a possibilidade de divergência. Contra o marxismo ortodoxo, não acreditava mais no papel emancipatório desempenhado pela classe operária, valorizando antes, como instrumentos de subversão do jugo das ideias dominantes, sobretudo os grupos sociais mais ativos na imposição quotidiana da liberdade, fossem eles os intelectuais radicais, os artistas ou as minorias sexuais. Defendia insistentemente, aliás, a afirmação de uma atitude radicalmente crítica, se não mesmo «negativa», na medida em que o pensamento positivo se identificava com o pensamento unidimensional. Editada em França no ano de 1968, a obra encaixou perfeitamente no meio efervescente dos estudantes nessa altura em revolta, alimentando em parte a emergência de uma «nova esquerda» radical e declaradamente antisoviética. Parte da qual integrará algum tempo depois, se bem que com algumas inflexões teóricas, as organizações ativistas de orientação «maoista». [Adaptação de um artigo de Nicolas Journet.]

                    Democracia, Recortes, Séries

                    Imagem, «real» e realidade

                    Susan Sontag

                    Os seis ensaios que este livro de Susan Sontag foram publicados entre 1973 e 1977 na New York Review of Books, e logo de seguida editados em conjunto, rapidamente convertidos em clássicos dos estudos sobre a semiótica da fotografia. Passando quase incólumes pelas últimas décadas, abordam um assunto – o lugar central que a fotografia detém na cultura contemporânea – que não só permanece inteiramente atual, como tem sido reforçado até no seu interesse devido aos progressos ocorridos entretanto no domínio da captação, da reprodução e da disseminação da imagem. Como seria de esperar pelo seu entendimento do papel da crítica, Sontag excluiu de todo uma observação estritamente técnica da prática fotográfica, que pudesse desligá-la do quadro social dentro do qual é produzida e consumida. Abrangentes e reflexivas, as observações que vai propondo dialogam constantemente, de um modo erudito e sedutor, com a filosofia, a sociologia, a história, a estética e a pintura, partindo sempre do princípio segundo o qual, atualmente, «tudo existe para terminar numa fotografia». (mais…)

                      Artes, Fotografia, Olhares

                      Olha, é Natal

                      Porque já fiz o mesmo, estou à vontade para olhar agora como sintoma de uma qualquer doença, eventualmente infantil, o esforço de alguns, incréus ou intransigentes, para evitarem referir-se ao Natal como data primordial do nosso calendário. Escrevem então «natal» com minúscula, evitam desejá-lo «Bom» aos outros, preferindo falar de felizes «Festas», consideram a Consoada coisa para idosos semiadormecidos e a parafernália do presépio cristão como uma brincadeira de crianças, de ociosos ou de retardados. Para mim, um ateu graças a Deus convicto, o Natal, enquanto episódio simbólico fundador do cristianismo, conserva um lugar central na agenda da vida coletiva, na organização dos afetos partilhados, e, acima de tudo, na construção da identidade cultural desse Ocidente que escreveu a sua própria história e a sua tradição. Bem sei, como Roger Garaudy um dia escreveu, que ele, o Ocidente, «é um acidente», mas este deu-se, aconteceu, e agora estamos todos envolvidos nas suas peripécias e consequências. Por isso, é com pena e também com preocupação que vejo as nossas cidades e vilas quase sem as mágicas e habituais iluminações da época, as paredes exteriores das casas ainda mais nuas e frias, sem «Pais Natal» anafados e vemelhuscos a tentarem desesperadamente escalá-las, as lojas de prendas semivazias ou com produtos de saldo. E que encontro muitos milhares de compatriotas, tantos deles agora desempregados, sem o suplemento de esperança e de breve bem-estar que nesta altura lhes oferecia o magro mas quase sempre merecido e seguro… subsídio de Natal.

                        Apontamentos, Etc., Olhares

                        Filosofia ao domicílio |1

                        A ausência de filosofia produz inevitavelmente uma prática cega. Eis uma verdade que os programas educativos e de apoio à investigação, diluindo o papel estruturante do conhecimento que é oferecido pelas humanidades, tendem cada vez mais a esquecer, anulando a presença do pensamento do mundo e da reflexão crítica que o acompanha. Começa aqui a apresentação de uma série de textos publicados originalmente na revista Sciences Humaines, entretanto traduzidos e adaptados, destinada a chamar a atenção para algumas dezenas de obras filosóficas, publicadas nos últimos cem anos, cuja leitura pode ajudar-nos a contrariar essa tendência. E a impedir-nos de retomar os caminhos que um dia terminaram em becos sem saída.

                        A primeira obra destacada é A Condição Humana (também editada sob o título A Condição do Homem Moderno), publicada em 1958, da autoria da filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt (1906-1975). (mais…)

                          Democracia, Recortes, Séries

                          As escolhas

                          Quanto mais difíceis, incertas e dramáticas são as épocas e as situações, mais facilmente se reconhecem as grandes qualidades e os piores defeitos daqueles que as vivem. Aquilo que de melhor e de pior todos nós temos. E isso acontece mesmo em situações-limite, quando o medo do sofrimento, da exclusão e da morte pode fechar cada um sobre si próprio, aparentemente impenetrável e dúctil, ocupado com as tarefas mais elementares da sobrevivência. Calar-se, não ver, passar ao lado, sair dali, é então a atitude mais comum. No entanto, os relatos dos que sobreviveram ao internamento nos campos de concentração e de extermínio recordam, com insistência, que mesmo nos limites mais extremos da barbárie dos carcereiros e da desumanização dos detidos foi possível, em instantes fugazes, aparentemente impercetíveis, mas muito intensos, encontrar sinais de compaixão e de coragem, bem como, ao invés, marcas indeléveis de impiedade e traição. (mais…)

                            Atualidade, Cinema, Memória, Música

                            Les artistes

                            Praticamente ninguém fala deles, embora não sejam invisíveis. A não ser quando falam deles próprios, em monólogo. Ou então para os seus. É fácil perceber o porquê desse silêncio e desse insulamento: a sua voz sem valor acrescentado, «inútil», é depreciada pelo discurso dominante, particularmente nestes tempos de «salve-se quem puder» que acompanham o naufrágio coletivo. É também ignorada por quem passa ao lado do universo infinito mas peculiar que habitam. Não «produzem valor», não são «competitivos», não lutam como lobos por um lugar ao sol, não têm como mola vital o desejo animal de sucesso e riqueza a qualquer preço. Não vivendo do ar, o reconhecimento de que precisam é principalmente o dos espetadores, o dos leitores, o do público que entra e sai. Porque, como cantava Ferré, Léo Ferré, «ce sont des gens d’ailleurs». Gente de outro lugar.

                            São os que vivem da criação e das artes. Que apenas precisam de tempo e meios essenciais para escrever, para representar, tocar, montar espetáculos, pensar. Muitos sacrificaram «carreiras de sucesso», empregos estáveis, bem-estar material, até pequenas heranças, para habitarem, quase sempre com pouco dinheiro mas amor pelo que fazem, nesse universo que vive de e para a imaginação e a representação do mundo. Mas preferiram viver assim, sabendo que jamais seriam ricos, para fazerem aquilo de que gostavam. Viviam no entanto remediados pois, apesar de se alimentarem de trabalhos ocasionais e precários, sabiam que depois de um viria outro. Com tudo à sua volta a desabar, sem apoios para a sua arte, com menos público, ficaram agora mais sós e desamparados que nunca. Sem segurança material, reserva para a velhice, uma noção de futuro. Sujeitos a fazer qualquer coisa, menos aquilo que foi da sua escolha, para terem o pedaço de pão que lhes cabe. Num país para todos ainda mais triste e sem luz. Até que…

                            Adenda: Já depois de escrito este post fui recuperar este.

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                              Vargas Llosa e os livros

                              Em novembro de 1972 li pela primeira vez Mario Vargas Llosa. Sei precisá-lo porque na altura tinha o hábito infalível de escrever a lápis o lugar e a data de compra de cada livro e é essa a data que se conserva no meu exemplar d’A Conversa na Catedral. O romance, contendo um jogo de vozes e de sombras no Peru do tempo da ditadura do general Manuel Odría, fora lançado em Lima apenas três anos antes. E digo apenas porque a distância temporal entre os livros publicados no estrangeiro e as edições portuguesas, quando as havia, era então, por via de regra, muito maior. Para mim, a data é importante também porque daí para a frente, com oscilações de gosto, li uma grande parte do que o escritor peruano foi produzindo: todos os seus dezoito romances, vários dos seus livros de ensaio, as crónicas semanais no El País sobre temas da atualidade, e até o discurso de aceitação do Nobel da Literatura, ganho em 2010. Nem sempre concordei (ou concordo) com as suas posições políticas, mas sempre o olhei como uma referência moral, um grande contador de histórias e um homem corajoso, capaz de enfrentar tanto alguns tiranos quanto a lógica redutora do politicamente correto. E não tenho problema algum em declarar que foi por causa dele, e do debate que levou ao fim da velha amizade com Gabriel Garcia Márquez, que me tornei menos benevolente para com algumas das posições públicas do autor de Cem Anos de Solidão. (mais…)

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                                Os anjos indiferentes

                                Por estes dias em que permanecer indiferente, calar-se bem calado e fazer de conta que não é connosco, desinteressar-se do drama comum que estamos a viver, da política consciente e sistemática de destruição de um princípio de solidariedade que levou mais de um século a erguer, da ausência de uma ideia de esperança e de futuro para os mais jovens, do destino dos que trabalharam durante décadas para agora viverem no temor da miséria, da fome de quem nunca a tinha sentido e de mais fome ainda para quem já sabia que coisa era viver com quase nada, representa, cada vez mais, um ato deliberado de colaboração com o crime. A História mostra-nos, vezes sem conta, como foi fácil virar a cara para o lado oposto e deixar, por inação, que o pior acontecesse. Por ignorância, cobardia ou estupidez. Ou oportunismo. Ou, pior, por isso tudo e ainda por se assumir a convicção de que existe algures uma figura providencial à espreita, capaz de pôr todas as coisas «no sítio» e de instaurar um tempo de tranquilidade que assistirá à recomposição da «ordem natural» da existência humana. Com os mais ágeis a viverem a sua vida boa e higiénica – laborando, orando, amando os pobrezinhos – e os outros, à distância, a pedirem pares de peúgas, camisolas com defeito, latas de atum ou sopa de grão. E, por isso, que não é pouco, a ficarem atentos, veneradores e obrigados. Quietos e apáticos no seu lugar de escravos. Ou então de auxiliares de quem manda, anjos decaídos de uma ordem que ultrapassa o humano porque emanada de entidades transcendentes. Como Deus – um deus castigador, é suposto – ou a mecânica sobrenatural dos mercados financeiros.

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                                  É a ortografia, pá

                                  A decisão do governo brasileiro no sentido de diferir por três anos a aplicação do último Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, faz-me voltar ao tema. Tal como escrevi noutros dois posts – reunidos num só – não me interessa entrar aqui (ou ali) em pequenas guerras e grandes exaltações a propósito do assunto. Tenho procurado tratá-lo de uma forma muito prática e, na verdade, a única coisa que neste caso uma vez ou outra me tem tirado do sério é o uso de falsos argumentos, ou de poses «caturras», na defesa das posições mais rigidamente imobilistas. Na realidade, se alguma coisa tinha entendido já, muitos anos antes da situação ser criada e da polémica surgir, foi que a língua é um grande barco transatlântico cuja essência, e razão de ser como veículo de comunicação, é tão rígida quanto móvel. Pelo que me toca, posso dizer que passei por quatro fases neste processo: a primeira de alguma desconfiança em relação à mudança, a segunda de observação daquilo que esta anunciava, a terceira de adoção crítica (condicionada em boa parte por imperativos profissionais), e a quarta de integração, compreendendo rapidamente, apesar de ter passado mais de meio século a escrever com regras diferentes, que algumas das novas normas até «naturalizam» mais os modos da fala e da escrita, embora outras, em menor quantidade, de facto os perturbem também. (mais…)

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