Uma razoavelmente conhecida mas sempre jovem e presente frase de Antonio Gramsci, deixada num artigo redigido em Fevereiro de 1917 e publicada na compilação La nostra città futura. Scritti torinesi: «Odio gli indifferenti. Credo che vivere voglia dire essere partigiani. Chi vive veramente non può non essere cittadino e partigiano. L’indifferenza è abulia, è parassitismo, è vigliaccheria, non è vita. Perciò odio gli indifferenti.» A tradução do italiano é fácil; bem mais custosa será a apreensão da ideia por parte de quem veja o tempo passar apenas na escala do interesse privado, da vida enclausurada no fundo mais fundo do seu pequeno mundo.
É verdade que pouco ou nada podemos fazer, uma vez que não votamos nas presidenciais norte-americanas nem temos a possibilidade de influenciar os eleitores. Mas se nos deixarmos submergir nos nossos graves e constantes problemas, tornando-nos indiferentes às eleições que terão lugar neste 6 de Novembro, ou, pior, aceitando a ideia absurda e insana segundo a qual democratas e republicanos, Obama e Romney, são dois lados idênticos de uma mesma moeda, ficaremos incapacitados para compreender aquilo que aí pode vir. Para quem ainda tenha dúvidas, transcrevo um passo de uma crónica de Miguel Sousa Tavares publicada no Expresso de 8 de Setembro passado. (mais…)
Se eu disser Gae Aulenti, provavelmente o nome não dirá muito a um grande número de pessoas. Mas se recordar que ela foi a arquiteta italiana capaz de transformar uma velha e sombria gare parisiense de comboios no luminoso Museu d’Orsay, já será identificada sem mais delongas. Gae, nascida em Palazzolo dello Stella, Udine, trabalhou ainda na reconstrução ou em realizações de outros importantes museus, bem como em cenários para teatro e em áreas como o design de objetos, de mobiliário e de interiores. Morreu na passada quarta-feira aos 84.
De acordo com um artigo saído hoje no Público, a Direção-Geral de Saúde vai recomendar às escolas que os alunos deixem de ter à vista gulodices imundas como pastéis de nata, queques, bolos de arroz, croissants ou bolachas Maria. Apesar de não saírem dos bares, elas saem dos expositores, que ficam então reservados para os alimentos ditos «mais saudáveis», como sandes com verdura, leite branco, iogurtes sem edulcorantes, água ou fruta. Segundo a mesma peça, há também alguma comida fora da categoria dos doces que passará à condição de pecaminosa, como os malvados croquetes, os perigosos pastéis de bacalhau e as peçonhentas sandes de chouriço ou mortadela. O estranho, porém, é que os alunos-junkies poderão continuar a comê-las desde que as peçam, mais ou menos à socapa, ao dealer de serviço ao bar. Ninguém informado e no seu perfeito juízo nega que existam produtos alimentares que não devam ser oferecidos em doses exageradas a crianças e jovens sem discernimento suficiente para saberem o que é bom ou mau para a sua saúde, mas também é verdade que grande parte desses hábitos é adquirida em casa e que existe um limite razoável para separar o veneno daquilo que não passa de um pequeno pecado. Tenho grandes recordações de infância que incluíam orgias de portuguesíssima bolacha Maria (com muita manteiga ou tiras de marmelada) e os fantásticos pastéis de bacalhau feitos pela minha mãe. Custa-me imaginar gerações futuras que do seu tempo de escola lembrem sobretudo bebedeiras de leite branco e bacanais de pão integral com alface.
Não gosto de esconder a cara ou de trocar de nome para não ser reconhecido. Quando esta atitude se torna um hábito, associo-a sempre ao medo, ou então à perfídia, a formas ínvias de pensar ou de falar sem assumir a responsabilidade do que se pensa ou se diz. Já usei um nom de guerre, conspirativo, e com ele procurava camuflar a minha identidade. Aconteceu antes da democracia, quando fiz parte de uma organização política clandestina que combatia o fascismo e o colonialismo. Servi-me depois, episodicamente, de um pseudónimo literário, com o qual publiquei alguma poesia e dois ou três contos. Fiz ainda pequenas investidas em blogues, servindo-me ali de nomes inventados, mas mais como ensaios de heteronímia que como processos para dizer escondido o que supostamente, seria incapaz de pronunciar às claras. E usei ainda um ou outro nickname na Internet, sempre associado nos registos ao apelido e ao sobrenome inscritos no Cartão de Cidadão. Repugna-me o anonimato sem um motivo sólido que o justifique, as máscaras ou os óculos que escondem a expressão, as vozes que se alteram para camuflar o seu proprietário, os anoraques que tapam o rosto, o cabelo e os olhos, dando a quem deles se serve uma sensação de impunidade. A coragem é ainda uma atitude socialmente apreciada, e isso deveriam saber os adeptos ou companheiros de viagem dos grupos que, sob um regime injusto, mas que não segue os métodos das ditaduras, apenas se manifestam na sombra, ou escrevem sem dar o nome, sem assumir as razões e as consequências das suas escolhas. Ao dar o nome e a cara, darão um rosto mais humano e um sentido ético mais acentuado à sua luta, às suas razões, e ficarão mais próximos daqueles em cujo nome tomam a palavra. Elevando a sua causa perante o cidadão comum e elevando-se a si próprios também.
O trabalho do britânico Ian Kershaw tem sido ocupado principalmente com a história alemã do Terceiro Reich e o trajeto pessoal e político de Adolf Hitler. Em Até ao Fim aborda os últimos dez meses da existência do regime nazi, aqueles que vão da tentativa de assassinato do Führer, em 20 de julho de 1944, até à rendição do regime, ocorrida em maio do ano seguinte. Fá-lo procurando obter uma resposta para uma pergunta posta logo no início do livro: o que terá feito com que a Alemanha, cuja derrota já então se mostrava inevitável, optasse por combater até ao fim? Afinal, mesmo nas guerras mais mortíferas do passado, sempre ocorrera um momento no qual os comandantes vencidos reconheciam a derrota e chegavam a um compromisso com os vencedores, na tentativa de evitar males maiores ou de salvar a própria pele. Todavia, com a Alemanha de Hitler nada disto aconteceu, tendo o território germânico de ser conquistado aldeia a aldeia, rua a rua, cidade a cidade, numa espiral de violência que fez com que na classificação macabra das baixas civis e militares da Segunda Guerra Mundial os alemães tenham ficado num macabro segundo lugar, logo após os soviéticos. A larga maioria das vítimas, incluindo cerca de metade dos soldados alemães mortos na guerra, pereceu no entanto, justamente, nesses derradeiros meses, sobretudo como consequência dos bombardeamentos maciços dos Aliados e do avassalador avanço do Exército Vermelho. (mais…)
Durante um quarto de século, o passado das centenas de milhares de portugueses chegados ao Portugal europeu com a descolonização pareceu ter sido apagado. A integração foi dramática, difícil e em larga medida incompleta, mas se o seu futuro continuou a preocupar, o que ficara para trás parecia «merecer» o completo apagamento. Foi só quando a normalização possível da situação dos «retornados» deixou de ser um problema coletivo que estes adquiriram uma nova visibilidade. Esta foi conquistada recentemente e de um modo muito lento, apenas projetada no interesse público, aliás, numa fase bem posterior à abordagem da própria Guerra Colonial, também ela silenciada e só a partir da década de 1990 em condições de começar a ser objeto de um grande número de leituras de natureza crítica, jornalística, histórica, política ou ficcional. Neste caso, afora a publicação de alguns romances (como o recente O Retorno, de Dulce Maria Cardoso) e de textos de natureza memorialística e nostálgica, poucos livros abordaram o tema do regresso de uma forma equilibrada, sem com isso querer dizer desvinculada da emoção invocada pela memória e da mágoa imposta pelo silêncio. Mas é isto que procura e consegue Voltar, da autoria da jornalista Sarah Adamopoulos. (mais…)
A guerra, a irmã-espingarda e o camarada-cigarro. Combatentes das Brigadas Internacionais treinam algures em Espanha durante o mês de Janeiro do ano de 1937. A fotografia é de Vera Elkan.
Não é novidade alguma dizer-se que estes tempos de desigualdade e crescente penúria, de ausência de perspetivas e de crise dramática do Estado social, são péssimos para a democracia. Nem é preciso ler os títulos ou ver os telejornais; basta andar de olhos abertos e de ouvidos alerta para percebermos como um número crescente de pessoas associa a crise ao desgoverno, o desgoverno à mentira e a mentira ao sistema político que tem a democracia representativa como núcleo. Neste ambiente, facilmente se propaga uma grosseira retórica antipartidos, antipolíticos e «antipolítica» que a todos mete no mesmo saco e não anuncia nada de positivo. Pior: esta é a altura para os discursos demagógicos se multiplicarem em número e em capacidade de influência, servindo-se dos sintomas mais dolorosos para enganarem os cidadãos a respeito dos motivos que os produziram e dos métodos da cura. A democracia, asseguram, é um desperdício, não dá de comer às pessoas, pelo que é necessário suspendê-la para se evitar a catástrofe. Se tal acontecer, serão cortadas as pontes com o passado recente e um autoritarismo mais ou menos iluminado, e sem fim à vista, será apresentado como única via possível para escapar ao descalabro. Tivemos em Portugal um bom exemplo deste caminho sem retorno, com a imagem negra e falsificada da história da Primeira República que o Estado Novo divulgou ao longo de décadas, insinuando a ideia de que o regresso do sistema parlamentar seria uma concessão a um caos primitivo e infernal. (mais…)
Em «Na Caverna de Platão», um dos mais conhecidos ensaios de Susan Sontag sobre fotografia, esta arte/técnica é descrita como «um dos principais meios de acesso à experiência, a uma ilusão de participação». Repetida como o é agora, banalizada pela inclusão de câmaras de alta definição nos pequenos telemóveis que se levam para todo o lado, a evidência das imagens, como diz ainda a ensaísta, romancista e ativista americana, propaga uma perceção «voyeurista» do mundo, «que nivela o significado de todos os acontecimentos». Uma leitura estritamente estética desta situação – se é que é possível tê-la sem um artifício de análise – permite uma certa euforia, determinada pelo excesso de representações e pela qualidade das imagens. Mas uma leitura mais conscientemente política deixa-nos consternados, uma vez que o efeito de banalização induzido pela proliferação reduz o impacto social daquilo que é representado. Penso nisto enquanto observo Masculine World, uma fotografia do iraniano Vahid Rahmanian que retrata mulheres de Teerão a viajarem numa carruagem de metro interdita a homens, e percebo como à beleza dos seus rostos, ao hipotético mistério dos corpos que se velam, se sobrepõe, ainda assim, uma noção de tristeza, de dignidade diante da indignidade e de injustiça que supera distâncias e transcende fronteiras. E admito que Sontag se tenha mostrado demasiado pessimista.
Em 23 de outubro de 1956, há exatamente 56 anos, uma manifestação estudantil ferozmente reprimida pela polícia política em Budapeste tornou visível, mais de uma década antes da «Primavera de Praga», a primeira tentativa de democratizar o socialismo de Estado, associando-o a uma maior transparência política e a mais liberdades públicas no contexto do que foi então chamado «um socialismo verdadeiro». O movimento de oposição ao regime de partido único cresceu rapidamente e prosseguiu com a formação de milícias que tomaram o poder na capital e em outras cidades. O derrube da estátua colossal de Estaline teve na altura um particular simbolismo. Num ambiente efervescente, foram levadas a cabo ações de vingança sobre os agentes da ÁVH, a Polícia de Segurança do Estado, bem como sobre muitos quadros do Partido dos Trabalhadores Húngaros. O seu Comité Central ensaiou então uma abertura e Imre Nagy, um comunista reformista em tempos quadro do Comintern, foi nomeado primeiro-ministro, mas o Bureau Político mudou de ideias e acabou por apelar à intervenção militar de Moscovo. Em 4 de novembro, uma poderosa força soviética entrou em Budapeste. (mais…)
Em memória do Manuel António Pina (1943-2012), o MAP, com quem falei apenas em duas ocasiões, mas que sem o saber, e com toda a certeza sem o querer, foi um dos meus heróis. Uma crónica sua.
Aos Nossos Heróis
Éramos jovens e habitávamos um lugar cercado de paredes onde os ecos do longínquo mundo chegavam esparsos e abafados. E, no entanto, o nosso coração pequeno-burguês (des gens de la moyenne como cantava Colette Magny sobre o Dia do Estudante de 1966) estava maduro, pulsante de sentimentos excessivos e de palavras por dizer. De algum modo, Maio de 68 aconteceu dentro do nosso coração. Era aí que, também nós, nos barricávamos então contra a pequenez do nosso tempo e do nosso lugar. E, sim, também nós (conselhistas, anarquistas, guevaristas, trotskistas, enragés de todas as espécies), dentro do coração nos sentíamos, mansamente embora, la pègre e lachienlit. (mais…)
Esta noite sonhei que voltara ao passado. Ainda melhor: sonhei que fora ao passado roubar, para poder usar nestes dias sem luz, aquilo que ele tinha de melhor. Não a juventude por alguns revista como insana, a energia sem medida, cuja evocação nunca me encheu de nostalgia porque as troquei por outras coisas e porque sei que a memória mais bela e perfeita tem sempre a forma de fábula. Pensando bem, afinal nesse passado fui tão feliz e tão infeliz quanto o sou hoje, ainda que por motivos diferentes. Fui antes buscar outra coisa, que ao contrário das fases e das dinâmicas da vida, permanece imortal porque transcende o tempo curto que nos cabe. Falo da esperança e da vontade indómita de mudar as coisas do mundo, sabendo sempre que nelas se misturam, em partes iguais, a imaginação do que há-de vir e o banho de realidade que sempre defronta o futuro.
Em La Chinoise, o filme que Godard rodou em 1967, numa parede do pequeno e bem burguês apartamento de Paris que serve de quartel-general ao bando de jovens irredutíveis, aprendizes de alquimista da Revolução que há-de vir, que protagonizam o filme, encontra-se escrito, com letras delicadamente decalcadas, «é preciso confrontar as ideias vagas com as imagens claras». Uma frase, se a memória desgastada não me engana, justamente da autoria de Mao Tsé-tung. Nela se resume o princípio que no meu sonho procurei trazer de volta para este lado do tempo. O de que não há intervenção política capaz sem que a precedam o esboço de impossíveis quimeras. Porque o excesso de realismo e a ditadura da «política do possível», imune à ideia de salto, de viragem, deu no que deu. Como o comprovam os noticiários assustadores, soturnos, deprimentes, que ainda somos capazes de ouvir.
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«Há um cego que prefere sair à noite, entre a uma e as quatro da madrugada, com um amigo também cego. Porque está seguro de não encontrar ninguém nas ruas. Se vão de encontro a um candeeiro da iluminação pública podem rir-se à vontade. E riem. Durante o dia há a piedade dos outros que os impede de rir.» (Albert Camus, Carnets I, ed. 1962)
Viajo no tempo e tento concentrar-me na época em que deixei a Igreja católica apostólica romana. Até à altura em que as dúvidas apareceram, tinha sido um fiel convicto, praticante, tão seguro da minha crença e dos seus dogmas que cheguei uma vez a zangar-me com os meus pais por estes se afirmarem católicos e não frequentarem a Santa Missa. Aos 14, porém, comecei a sentir-me desconfortável e rapidamente encontrei duas razões para me afastar dos rituais, primeiro, e depois da fé. A primeira razão teve a ver com a recusa de uma retórica oca, repetitiva e indecifrável que nada me segredava: as prédicas aborrecidas que se limitavam a frase feitas sobre «o fim dos tempos» que eu não conseguia vislumbrar que coisa fossem, sobre uma «Salvação» que não percebia do que me iria afinal salvar e sobre o Espírito Santo, chamado de «Paráclito» sem que ninguém me explicasse que esta era a palavra grega para «consolador», enchiam-me de tédio. E, pior, nada tinham a ver com as letras das canções dos Rolling Stones, que acima de tudo adorava. (mais…)
Na Carta a um amigo alemão, de 1944, Albert Camus falava da Europa na qual acreditava e pela qual se batia, contra aquela que a guerra se preparava então para aniquilar: «A vossa Europa está enferma. Ela nada tem para agregar ou exaltar. A nossa é uma aventura comum que prosseguiremos, apesar de vocês.» Escritas há 68 anos num momento dramático, estas palavras não perderam a validade, uma vez que a ideia de uma Europa unida, fraterna, democrática e progressiva – não tenhamos medo dos conceitos velhos mas imortais – continua a existir como utopia e, contra todos os obstáculos e cavalos de Troia, continua também a permanecer como projeto. As circunstâncias atuais correspondem, sem dúvida, a um momento de brutal retrocesso nesse caminho, e esta Europa pouco tem de são ou até de sustentável. Mas a casa permanece de pé e não é previsível nem desejável um regresso ao tempo ventoso e inseguro em que cada um geria por sua conta e risco o velho e desconjuntado castelo do seu Estado-nação. (mais…)