Esta fotografia de Henri Cartier-Bresson, tirada na Rua Arbat, no centro histórico de Moscovo, no ano de 1972, deixa inevitavelmente uma impressão amarga. O olhar de cobiça destas mulheres de meia-idade, vestidas de maneira pesada e uniforme, perante a bolsa de material barato à venda num armazém do Estado – mostrada como inacessível raridade sobre o balcão revestido a fórmica onde pode observar-se uma pilha de senhas –, funciona como triste metáfora dos anos de penúria e bloqueio, «de cinza», da era Brejnev.
Como no amor, aconteceram, na história da literatura, das artes ou da filosofia, desencontros que poderiam ter sido belos encontros. Possíveis que se revelaram impossíveis. Karl Marx e Charles Darwin tiveram uma reunião prevista, marcada por um amigo comum, mas esta acabaria por não acontecer. Soljenitsine e Nabokov falharam por muito pouco uma prometida conversa. E nos anos quarenta Orwell marcou um encontro com Camus em Saint-Germain-des-Prés, mas como este se atrasou um pouco, aborreceu-se e foi-se embora. Conhecendo o percurso de ambos, as causas que partilharam, as marcas que deixaram, aquele poderia ter sido o princípio de um belo entendimento. (mais…)
Não define a ausência
o conhecimento da terra,
a proximidade dos lírios, das
estradas sem destino.
Não conhecem roteiros a
sabedoria do sol e o silvo
dos insectos sem asas e cegos
que procuram água.
Não existe poesia sem
conhecimento, saber sem sal,
na vida diária feita de passos e
de réstias e de perdas.
Não sabem os trilhos dos mapas
perdidos inventados
ou da existência de um norte
frio, férreo, inamovível.
Não produzem os passos linhas
e nós de navegação
para que possamos desenhar
um ótimo plano de fuga.
É maior do que pensava a minha ignorância da petite histoire do socialismo e por isso estou sempre a encontrar episódios novos. Nos dias que antecederam a tomada do poder pelos bolcheviques, Lenine escondeu-se em Moscovo no número 91 da Rua Serdobolskaia, apartamento 41 (atualmente o 106 da Perspetiva Marx, apartamento 20). A proprietária era uma mulher moscovita de 34 anos, que não só alojou Vladimir Ilitch, fornecendo cama, mesa e roupa lavada, como lhe serviu de ligação com os restantes membros da direção do Partido. É legítimo supor que o relacionamento entre os dois não tenha sido apenas estritamente político, dado o bilhete, ainda hoje conservado, que Lenine lhe deixou quando abandonou o apartamento para ir mudar a história da Rússia e do mundo: «Vou agora para onde tu me pediste que não fosse. Adeus.» De onde se depreende que a camarada possuía um nome só aparentemente convincente: Margarita Vasilevna Fofanova.
Na cidade síria de Alepo, a segunda do país com 2,5 milhões de habitantes, perante o avanço das forças de Assad, «um número muito grande de civis», encurralado pelos bombardeamentos cerrados de artilharia pesada por terra e ar, «reuniu-se em parques públicos em áreas mais seguras» ou então «refugiou-se nas escolas». A maioria dos cidadãos está desesperada, temendo pela vida e assistindo à destruição sem piedade da sua cidade-museu. O esquerda.netjá viu aquilo que está a acontecer na Síria: uma chacina em nome da defesa de um regime massivamente contestado nas ruas de todo o país. Mas limita-se a noticiar, não toma uma posição. A «teoria do não-intervencionismo a todo o custo», em qualquer caso, independentemente de situações extremas nas quais o que deve importar é a defesa elementar de vidas humanas, conduz o Bloco de Esquerda a becos sem saída desta natureza. Já o Avante!apoia as forças do regime e vê coragem e nacionalismo, «defesa legítima» contra uma agressão externa «programada nos corredores do Pentágono», onde existe principalmente a brutalidade sem limites, lançada no terreno contra as forças anti-regime mas que atinge sobretudo civis que lhe não conseguem escapar. Enquanto o PCP é consequente com a sua fidelidade política ao inquebrantável princípio leninista do «inimigo principal» e ao velho parceiro na região da «saudosa» União Soviética, o BE evita tomar uma posição clara face a uma tragédia humana desta dimensão. Queira-o ou não, quem cala consente.
Ernesto Guevara de la Serna
por Hans Magnus Enzensberger
Durante uns tempos, milhares usaram o seu pequeno boné
e multidões desfilaram com retratos seus
em grande formato, gritando bem alto o seu nome.
Agora, aqueles cortejos pela City quase parecem irreais,
como o país e a classe que o viram nascer.
Longe dos matadouros e das barracas e dos bordéis
ia-se desfazendo a casa do pai, junto ao rio. O dinheiro fora-se,
mas a piscina ficou. Um rapazinho tímido,
alérgico, muitas vezes quase a sufocar. Em luta com o seu corpo,
fumando charutos, fez-se homem (o que isso seja, não é história para aqui). (mais…)
Num dado momento do seu trajeto filosófico, Jacques Rancière (n. 1940) passou a dedicar-se aos discursos dos excluídos, daqueles que num dado momento da História se viram confinados ao silêncio, empurrados para as margens pelas vozes hegemónicas: os proletários, os pobres, as mulheres, as minorias. Este A Noite dos Proletários, originalmente publicado em 1981, integra-se nesse esforço, procurando encontrar no discurso «desclassificado» de um conjunto de operários franceses saint-simonianos, «letrados» autodidatas da primeira metade do século XIX, um olhar diferente do habitual a propósito de conceitos – como exploração, domínio, trabalho, fadiga, economia, libertação, associação ou saber – associados à afirmação, então em pleno curso, do capitalismo triunfante e da nova identidade do universo do trabalho. (mais…)
As paredes sujas, a velha secretária, a máquina de escrever, as folhas de papel, os químicos, o lápis e a esferográfica, os cigarros, a caixa de fósforos, o cinzeiro cheio de beatas, os óculos. Só a lupa está ali a mais. Num devaneio da memória, diria que se trata da reconstituição museológica do meu espaço de trabalho em São Martinho do Bougado, concelho da Trofa, na casa de piso único, térreo, sem quarto de banho ou cozinha, onde em 1974 vivi cinco meses de clandestinidade. Mais prosaicamente, é «apenas» a recordação fotográfica do habitáculo de William Burroughs no Beat Hotel de Paris. (Fotografia de Jed Birmingham)
O post que escrevi ontem a propósito da morte de José Hermano Saraiva destacou aspetos que se completam no que representou a sua vida como homem público: a enorme popularidade que colhia como comunicador, a forma como a maioria dos historiadores o não considerava um dos seus, a maneira como ainda assim contribuiu para uma valorização popular da História, sem esquecer o percurso como quadro do Estado Novo e defensor do legado de Salazar. Ficou no entanto por comentar um aspeto importante: o que determinou uma popularidade tão grande que agora, na hora do seu desaparecimento, tantas pessoas que não serão propriamente adeptas do anterior regime se indispõem com as críticas, mais do que legítimas, mais do que necessárias, que lhe são feitas? (mais…)
Como seria de esperar, a morte de José Hermano Saraiva (1919-2012), está a dar lugar, a par das demonstrações de pesar que são devidas sempre a quem parte, a um cortejo de elogios excessivos. Mas deteta-se também a invocação de algumas de críticas ao seu trabalho no campo da História e a exibição de comprometedores silêncios sobre o seu papel como cidadão. O peso do lugar que ocupa no nosso imaginário coletivo justifica um olhar sobre estes três aspetos.
Os elogios decorrem, naturalmente, da sua popularidade como divulgador da História de Portugal, ou, de acordo com algumas leituras, como historiador. Os seus programas televisivos, ampliados pela enorme capacidade histriónica que detinha, tornaram-no figura única, em termos de popularidade, na sua área de especialização. Relato um episódio que me foi contado há já uns anos por um colega, historiador e professor da Universidade do Porto, que é bastante revelador do peso dessa aura. Tendo sido a dada altura decidido fazer aos alunos do 1º ano de História da Faculdade de Letras um inquérito sobre os seus conhecimentos da disciplina, e tendo-lhes sido pedido que indicassem o nome de três historiadores portugueses vivos, nem um só deles deixou de indicar o nome de José Hermano Saraiva. O curioso, e também significativo, é que vários indicaram como segunda e terceira escolha… Alexandre «Saraiva» (referindo-se a Herculano, claro, falecido em 1877) e Vitorino Magalhães «Saraiva» (Godinho, como é bom de ver). «Saraiva» tem, pois, para muitos portugueses, uma relação de sinonímia com «historiador», reforçada pelo facto de, nesta profissão, poucos serem conhecidos fora dos círculos académicos ou dos setores educados da classe média. (mais…)
O antigo primeiro-ministro britânico Anthony Eden disse certa vez que quem não viveu diretamente «os horrores de uma ocupação por um inimigo estrangeiro» não tem o direito de julgar aqueles que os sentiram na pele. Algo de idêntico, aliás, pode dizer-se da forma como são avaliados determinados comportamentos em situações de guerra ou de perigo extremo: é fácil fazer juízos benévolos, ou proclamar heroísmo, ou anotar cobardias, quando nunca se soube pela experiência própria o que é pisar o frágil risco que pode separar a vida da morte, sabendo, ademais, que se está a fazê-lo. And the Show Went On: Cultural Life in Nazi-Occupied Paris, do jornalista brasileiro, filho de ingleses, Alan Riding, é um absorvente relato da vida artística parisiense sob a ocupação nazi, explorando a desconfortável e instável região instalada entre o colaboracionismo, forçado ou não, e a genuína resistência.
Os primeiros capítulos mostram de que modo a vida intelectual da França se encontrava já ideologicamente fraturada no período que antecedeu 1940 – a data de início da ocupação nazi e do estabelecimento do governo-fantoche de Vichy – com o antissemitismo a marcar profundamente a vida dos criadores e do público. Para o final da Guerra, a luta pela sobrevivência tornou tudo ainda mais turvo, envolvendo escritores, artistas e atores numa teia de ofuscações, compromissos e virares de casaca. Cheio de detalhes – as solas de madeira dos sapatos das mulheres, forçadas pelas restrições impostas ao consumo de cabedal, provocando um ruído único sobre os pavimentos da cidade; os números de music-hall flirtando com o perigo ao desafiarem veladamente os alemães – por esta história magnificamente contada passam inúmeros personagens, desde jovens estrelas de cinema que procuram dar-se a conhecer à primeira oportunidade até figuras já notáveis e omnipresentes como Picasso, Piaf, Sartre, Beauvoir, Cocteau e o violentamente antissemita Céline. Um caso ao acaso: Edith Piaf deslocando-se à Alemanha para cantar a convite dos nazis mas também para obter a libertação de soldados franceses detidos. Um livro sobre um lado da normalidade possível em tempo de guerra, no qual se confundem muitas vezes, na luta pela sobrevivência, a cobardia e a coragem. Onde nem tudo é branco versus preto, simples de distinguir.
Françoise Sagan disse um dia numa entrevista: «Aquilo que faz falta na nossa época, é o gratuito. Mas é realmente excitante fazer coisas por nada. A nossa época é demasiado materialista e demasiado exibicionista, cheia de pessoas que contam em público todos os pormenores das suas vidas e que se satisfazem com a realidade. A imaginação é a única virtude que nos resta. E talvez seja mesmo a mais importante das virtudes.». É sempre fácil – e bastante tentador – estabelecer analogias entre as palavras avisadas dos que se foram, e um dia sublinhámos, e aquelas das quais nos podemos servir para julgar a nossa própria realidade. Mas num tempo como o presente, no qual absolutamente tudo é julgado pelo valor de troca e a gratuidade é considerada um desperdício ou coisa de ingénuos, vale a pena considerar estas que nos deixou a autora de Bonjour Tristesse.
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direção à porta que nunca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavras ecoam
Assim, no teu espírito.
Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?
T. S. Eliot – Fragmento de Burnt Norton (Trad. Maria Amélia Neto)
Os invernos poderiam ter sido menos rigorosos, menos tristes as viagens de comboio, menos previsíveis os desfiles do Maio. Teríamos crescido a cruzar pacificamente as cidades dos irmãos Vesnine, a viver com os quadros de Altman, os poemas de Tsvetaeva e de Akhmatova, os compassos menos previsíveis de Chostakovitch. Aragon não teria cantado o cavalo metálico sob as chaminés poluentes de Magnetogorsk. Barbusse teria permanecido um desconhecido para os nossos avós. Eisenstein teria filmado grandes planos de gargalhadas e de mãos usadas em carícias. Ter-se-ia fundido menos bronze para robustecer as estátuas. Não teriam ressoado gritos nocturnos pelos corredores da Lubianka. Teria corrido menos gelo pelas almas e ter-se-ia notado mais ruído pelas ruas. E provavelmente o socialismo seria hoje uma expressão de humanidade tão calorosa e natural quanto o amor, a felicidade ou a compaixão. A desigualdade e a opressão, essas seriam palavras raras, apenas reconhecíveis em velhos romances e compêndios de História antiga. De facto, o futuro atrasou-se um pouco. Mas prometeu que virá.