Author Archives: admin

Alquimia do Verbo

Rimbaud
Rimbaud. Desenho de Laure B.

Há cerca de dez anos traduzi um pouco de Rimbaud para uma publicação da qual perdi o único exemplar que me foi enviado. Reencontrei agora parte desse trabalho que julgara perdido.

A mim. A história de mais uma das minhas loucuras.
De há muito que me vanglorio de
possuir todas as paisagens possíveis e que acho ridículas
as celebridades da pintura e da poesia moderna.

Amei pinturas idiotas, vãos de portas, bugigangas,
panos de saltimbancos, estandartes, estampas baratas,
literatura fora de moda, latim eclesiástico,
livros eróticos sem caligrafia, romances antigos,
contos de fadas, contos para crianças, velhas óperas,
refrões ingénuos, ritmos simplicíssimos.

Sonhei com cruzadas,
com viagens de descobrimento das quais não existiam relatos,
repúblicas sem histórias, guerras de religião sufocadas,
revoluções de costumes, movimentos de raças e de continentes:
acreditei pois em todas as magias.

Inventei a cor das vogais! – A negro, E branco,
I vermelho, O azul, U verde
Determinei a forma e o movimento de cada consoante,
e, com ritmos instintivos,
procurei inventar um verbo poético acessível, custe o que custar,
a todos os sentidos. Guardei a tradução.

Era acima de tudo um esboço. Escrevi os silêncios,
as noites. Anotei o indizível. Fixei vertigens

Arthur RimbaudAlchimie du Verbe (Trad. de Rui Bebiano)

    Artes, Poesia

    Urbatetar

    Em As Cidades Invisíveis, Italo Calvino menciona as duas únicas maneiras de se chegar a Despina – ­­«de navio ou de camelo», esclarece – acrescentando que a simulada urbe se revela diferente «a quem vem por terra e a quem vem por mar». Distingue assim a forma múltipla de ler a cidade, aquela cidade e todas as cidades, consoante se privilegiem determinados aspetos: o modo de aceder à malha urbana, o sentido dos percursos contornando as ruas e os edifícios, as divergentes invocações da memória, o movimento perpétuo dos que a habitam, a própria distribuição dos fragores e dos silêncios. Schuiten e Peeters, autores de banda desenhada, traçaram mesmo, em O Arquivista, a figura do urbateto, o criador integral de cidades, capaz de projetar desde a ideia da sua existência à configuração infinita dos trajetos e dos enredos. Todos possuímos algum desse engenho: podemos escolher as vias, circular pelos lugares reinventando-os à nossa maneira, produzindo os nossos mapas, reduzindo o impacte da imagem dominante e apriorística, a «cidade real» que nos é imposta como os muros de uma prisão.

      Artes, Cidades

      Walter, judeu-alemão

      Walter Benjamin

      Morto (ou suicidado) em 1940, quando procurava escapar aos nazis, Walter Benjamin foi talvez o menos previsível dos marxistas do seu tempo, a ovelha negra de uma família que na altura se encontrava razoavelmente unida. Foi ensaísta, crítico literário, filósofo, tradutor, sociólogo, jornalista e radialista. Nos interesses e na experiência misturou literatura e reflexão filosófica, religião e secularismo, esquerda e misticismo. Combinou o idealismo alemão com o materialismo histórico, o desespero com a criatividade, a teoria com a vida. Especializado em Goethe, Balzac, Proust, Kafka e Baudelaire, mas interessado também, sempre, em miudezas, em atividades fúteis e em coisas vulgares. Perseguidor de brinquedos, livros infantis, barcos e viagens. E ocupado com mulheres impossíveis, o que não é de somenos. Gershom Scholem, o teórico do misticismo judaico, considerava-o um espírito muito especial, mas não entendia porque se relacionava ele com «todos aqueles esquerdistas». Brecht admirava-o, mas nunca conseguiu perceber que raio de conversas poderia ter ele com «todos aqueles místicos». Foi no entanto essa complexidade que o salvou do esquecimento e o fez nosso, como auxiliar da autonomia do pensamento e da ação, como exemplo da capacidade e da necessidade do desencanto perante o encantamento que escraviza.

        Apontamentos, Biografias

        Paraíso sobre os telhados

        Cesare Pavese
        Cesare Pavese

        Será um dia tranquilo, de luz fria
        como o sol que nasce ou que morre, e o vidro
        fechará por fora o ar sórdido.

        Acorda-se uma manhã, de uma vez para sempre,
        na tepidez do último sono:
        a sombra será como a tepidez. Encherá o quarto
        pela grande janela um céu mais vasto.
        Da escada subida um dia para sempre
        não virão mais vozes nem rostos mortos.

        Não será preciso deixar a cama.
        Só a aurora entrará no quarto vazio.
        Bastará a janela para vestir cada coisa
        de uma claridade tranquila, quase uma luz.
        Pousará uma sombra descarnada no rosto supino.
        As recordações serão coágulos de sombra
        calcados quais velhas brasas
        na chaminé. A recordação será a chama
        que ainda ontem picava nos olhos apagados.

        Cesare Pavese – De Paternidade
        (Trad. de Carlos Leite)

          Olhares, Poesia

          Laranja limão

           

          Confiando naquilo que Nathaniel Hawthorne contava de Charles Fourier em The Blithdale Romance, este acreditava que o fulgurante e inevitável progresso da humanidade rumo à perfeição faria com que um dia o mar passasse a saber a limão. O fascínio da imaginação utópica assenta em operações e convicções desta natureza, que auguram um futuro de absolutos, programados e construídos à imagem dos desejos e da indeterminada determinação de quem os projecta. Os obstáculos apenas surgem quando os fabricantes de utopias por medida fixam a exata percentagem do açúcar, do ácido cítrico e do sódio da água marítima. Condenando a um degredo sem regresso, os infames, todo o sabor a laranja.

            Apontamentos, Olhares

            O olhar fotográfico

            Desde a primeva visão gravada por Joseph Nicéphore Niépce, em 1826, a partir da varanda da sua casa em Vincennes, a fotografia testemunha a dimensão expressiva do silêncio. Sinal primário da arte fotográfica, a suspensão no tempo da imagem captada com a câmara retira o fotografado do tumulto dos dias, complexificando e alterando a sua primitiva e mais simples conformação simbólica. O trabalho do silêncio intervém assim na construção de sentidos que de outro modo permaneceriam indizíveis. Roland Barthes falava, em A Câmara Clara, de um «saber fotográfico» absolutamente único e intraduzível. Palavra alguma o pode explicar. Resta-nos olhar. Olhar sempre.

              Apontamentos, Artes, Fotografia

              Nómada

               

              Kenneth  White salienta, em O Espírito Nómada, a grandeza possível, infinita e insaciável, da viagem que resulta mais da atitude de quem a busca que do movimento de quem a cumpre.

              Os nómadas não têm história, têm uma geografia e essa geografia, que tem lugar no «espaço plano» das estepes, escreve-se por meio de uma «linha criativa de fuga» caracterizada pela rapidez, uma rapidez «fora da lei», mas no fluxo, fora do âmbito da «máquina racional administrativa», seguindo as correntes de energia. (…) Não que seja em absoluto necessário passarmos todo o nosso tempo a viajar, como Frobenius, pelas estepes e pelos desertos. Deleuze, refina a sua ideia de nómada até ao paradoxo: «O nómada não é necessariamente alguém que se agita: há viagens no lugar, viagens em intensidade, e mesmo historicamente os nómadas não são aqueles que se movem à maneira de migrantes, pelo contrário, são aqueles que não se movem e que se põem a nomadizar para permanecerem no mesmo lugar escapando aos códigos.»

                Apontamentos, Olhares, Recortes

                A voz dos futuros

                utopia

                Em entrevista publicada no número de Julho-Agosto do Magazine Littéraire, o professor e filósofo francês Miguel Abensour chama a atenção para dois entendimentos negativos, tão enganadores quanto limitativos, que a propósito da ideia de utopia a partir dos anos oitenta se tornaram voz corrente tanto no campo da teoria política quanto junto da opinião pública. Abensour afirma ali que «é preciso colocar a utopia do lado do despertar, e não da ilusão». Neste sentido, tornado óbvio para quem conheça a história da ideia, não poderemos continuar a identificá-la com o logro e com a derrota, mas antes com a possibilidade de futuros plausíveis, que só a falta de imaginação e de coragem pode avaliar como irrealizáveis. Ao mesmo tempo, Abensour sublinha que «não foi a utopia a lançar as bases do totalitarismo, mas a dominação totalitária que fez o funeral da utopia», contrariando o juízo, também ele corrente, segundo o qual foi o excesso de esperança, a imaginação infinita e ingénua de paraísos construídos na Terra, a legitimar regimes que durante o século passado governaram através do terror e da ordem do silêncio. Duas afirmações, aparentemente elementares, que ao serem relembradas ajudam a reavaliar o papel criativo e libertador do exercício utópico enquanto método da reflexão política, instrumento programático e voz de todos os futuros.

                  Heterodoxias, Olhares

                  A aventura

                  Para a estética romântica, poesia e aventura não eram experiências puras, desinteressadas. Além do pormenor e da peripécia, ambas detinham um móbil, ambas visavam preencher um destino partilhado de uma forma passional mas razoável. Escrever ou pensar, escolher ou agir de outro modo, insinuava uma vontade de fuga, uma tentativa de escape, vista como algo de socialmente perigoso e por isso condenável. Só a partir das décadas finais do século XIX o desejo de tomar sem barreiras a indefinida direção da aventura deixou de ser tão insistentemente olhado com essa carga negativa. E só depois de Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, o desejo de ação sem outro objetivo que não o cumprimento de uma vontade indómita e de um imperativo inexplicável passou a guiar sem necessidade de justificação aqueles que escolheram o caminho da jornada insurrecta, da via errante. Sem norte seguro, sem clara intenção, sem absolutas certezas.

                    Apontamentos, Memória, Olhares

                    O microdiploma

                    O diploma

                    Correndo o risco de insistir num assunto repisado, chamo a atenção para o parágrafo do Miguel Cardina que, no Arrastão, sublinhou três fatores importantes relacionados com a microlicenciatura do ministro Relvas: a desgraçada dimensão ética da mentirola aprontada pelo próprio sobre a sua formação académica; as ligações perigosas entre setores dos partidos do poder, certos negócios e determinadas instituições do ensino superior privado; o provincianismo traduzido na vontade de deter o título de «doutor» para se fazer respeitar entre as massas informes de fatos cinzentos. Junto-lhe um curto comentário sobre dois aspetos que têm sido tratados de maneira mais lateral mas merecem alguma atenção, transcendendo até o timing preciso deste episódio de vaudeville. (mais…)

                      Apontamentos, Olhares, Opinião

                      Elvis’54

                      Elvis Presley

                      Elvis “The Pelvis” Aaron Presley gravou o seu primeiro álbum a 5 de Julho de 1954. Há precisamente cinquenta e oito anos. E o planeta não mais deixou de bambolear as ancas.

                      [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=w-ii6jpdOEk[/youtube]
                        Apontamentos, Artes, Música

                        A dúvida

                        Cioran
                         

                        E. M. Cioran sobre a escravidão da absoluta certeza. Em Do Inconveniente de Ter Nascido (Letra Livre).

                        A partir do momento em que formulo uma dúvida, ou mais exactamente: a partir do momento em que sinto necessidade de formular uma, experimento um bem-estar curioso, inquietante. Ser-me-ia de longe mais fácil viver sem qualquer vestígio de crença do que sem qualquer vestígio de dúvida. Dúvida devastadora, dúvida nutritiva!

                          Apontamentos, Recortes

                          Havia o céu

                          Albert Camus
                           

                          Para Albert Camus, a pobreza que conhecera, que vivera, durante a infância passada em Argel, não lembrava necessariamente a mais crua desgraça. Ei-la à luz de O Avesso e o Direito.

                          Nas noites de Verão os operários punham-se à janela. Na sua casa não havia senão uma janela muito pequena. Traziam-se então cadeiras para defronte da casa e gozava-se a noite. Havia a rua, os vendedores de gelados ao lado, os cafés em frente, e os ruídos de crianças correndo de porta em porta. Mas sobretudo, por entre as grandes figueiras, havia o céu. Há uma solidão na pobreza, mas uma solidão que dá a cada coisa o seu valor. Com um certo grau de riqueza, o próprio céu e a noite cheia de estrelas parecem bens naturais. Mas no fundo da escada, o céu retoma todo o seu sentido: uma graça sem preço.

                            Apontamentos, Recortes