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A IS, a esperança e a falta dela

Em Homage to Catalonia, publicado em 1938 na ressaca da presença combatente na Espanha da Guerra Civil, George Orwell sublinhava que o que atrai as pessoas comuns, ou pelo menos muitas delas, para o socialismo, e «as deixa dispostas a arriscar a pele por ele», é a ideia de igualdade. Até há pouco diríamos que a hipótese de arriscar a pele por uma causa corresponderia, nesta Europa descrente mas em aparente expansão que saiu do termo da Guerra Fria, a um círculo muito restrito de combates e de lugares, marcados por um extremismo socialmente isolado ou pelo regresso do nacionalismo. A reinstalação da desigualdade à qual assistimos nos últimos tempos pode, porém, inverter rapidamente esta situação: perante o colapso dos mercados, do capitalismo e da democracia parlamentar tal como a conhecemos, o retorno da política dos extremos pode conduzir à reemergência dessa atitude-limite que transforma uma causa no sentido de uma vida vivida no fio da navalha. Como escreveu Tony Judt num dos seus derradeiros livros, «sociedades grotescamente desiguais também são sociedades instáveis», dividindo-se através de conflitos internos, cada vez maiores e mais insanáveis, que terminam geralmente «com desfechos não democráticos». (mais…)

    Apontamentos, Atualidade, Opinião

    Simetria semiológica

    Reparará quem segue este blogue que em seis anos quase não se publicaram fotografias de políticos portugueses no ativo. Chegou o momento de proclamar urbi et orbi os três motivos pelos quais isso sucede. O primeiro prende-se com o mais genuíno snobismo: este blogue vive da e para a polis, mas não é um blogue de politiquinha, daqueles que se ocupam quase a full-time (e fazem bem, cumprem a sua função) dos rodriguinhos de São Bento, das fífias de Belém e atividades afins. Por isso, quando fala deles, gosta de relativizar o seu papel nas preocupações do leitor. O segundo é de natureza meramente estética: A Terceira Noite pode ter alguns posts fraquinhos (ou até o podem ser praticamente todos), mas esforça-se por ser um prazer para os olhos, um lugar visualmente incitante, ou então tão relaxante quanto uma massagem ayurvédica acompanhada pelo som de vagas marítimas. A maioria das imagens pessoais disponíveis destruiria esse equilíbrio, como um par de peúgas brancas usadas com um fato escuro. O terceiro motivo é o mais fácil de expor: o blogue preparava-se para este breve momento de simetria semiológica, esgotando de uma vez a quota para os próximos seis anos.

    [fotografia extorquida à página facebook de maquinistas.org]

      Apontamentos, Devaneios, Fotografia, Olhares

      Günter, Israel e os outros

      Günter

      «O que deve ser dito», o «poema» na origem da polémica é, de facto, confrangedoramente mau para alguém com a sua responsabilidade literária. Desqualificado como decrépito e apodado de insensível antissemita, Günther Grass declarou entretanto à Associated Press que se pudesse reescrevê-lo teria evitado usar o termo «Israel» e referido expressamente o atual governo de Benjamin Netanyahou. O episódio conta-se em poucas palavras: revoltado com o facto de a Alemanha vender a Israel um submarino com capacidade para lançar mísseis armados com ogivas nucleares, Grass publicou o referido «poema», no qual, num arremedo estético da cartilha do velho realismo (socialista ou não), acusa o governo israelita de «ameaçar a já frágil paz mundial». A peça vai mais longe, condenando «o suposto direito de um ataque preventivo» contra as «supostas» ameaças de um Irão empenhado, também ele, reconhecidamente, em desenvolver armamento nuclear. Em consequência, o governo militarista de Israel declarou o escritor persona non grata, impedindo-o de regressar a um país que, como convidado, visitou já por diversas vezes.

      A posição do governo israelita é, obviamente, escusada e bastante condenável, apenas possível porque este se encontra nas mãos de alguns dos setores mais conservadores e agressivos do país. É contraproducente, do ponto de vista da imagem global de Israel, e incompreensível até para quem gosta, sem estar de todo desprovido de razão, de se gabar de ser «o único Estado democrático da região». Bernard-Henri Lévy, que também não é um anjo, aproveitou para desancar nos esquecimentos do escritor alemão, lembrando-lhe que, já agora, podia falar do que ao mesmo tempo se passa na Coreia do Norte, na Rússia de Putin, na Síria e no Irão ali mesmo ao lado. Mas aquilo que realmente impressiona é o facto de a esquerda antissemita ocidental – a mesma que ainda há pouco tempo apontava o dedo a Grass pelo seu longínquo e por longo tempo escondido passado filo-nazi – passar a incensá-lo como se de um herói se tratasse. Vale tudo para ser «contra Israel», independentemente das circunstâncias históricas e políticas do seu trajeto, seja o que for que possa desenhar-se no horizonte da região. Uma atitude que indicia a ausência de uma «política de princípios», justa e democrática, que é, afinal, cada vez mais necessária. Entre outras coisas para obter para aquelas paragens uma paz duradoura, sem vencidos e vencedores.

        Atualidade, Olhares, Opinião

        Coimbra: a cidade e a luta estudantil

        coimbra_c

        Disponível em formato pdf um texto que escrevi em 2007 sobre «Coimbra: a luta estudantil e o património identitário da cidade». Poderá servir de munição, ou de contrapeso, no debate atualmente em curso sobre os usos e os abusos da praxe estudantil. E também para uma apreensão mais completa do papel dos estudantes na vida e na história deste lugar diferente. Uma apreensão menos passadista sem por isso promover o esquecimento. Pode baixá-lo aqui.

          Apontamentos, Coimbra, História, Olhares

          shhhtttt!, Nostalgia Futura

          Durante algum tempo o ritmo de A Terceira Noite irá diminuir um pouco. Aliás, já se nota que está a diminuir. Nada de especial a acontecer, para além de excesso de trabalho e um problema com os dias que não esticam. Mas leram bem: apenas «um pouco». Nada de dramático, sendo provável que por vezes nem se note a quebra. Em alguns momentos, no entanto, ela acontecerá.

          Entretanto, para todos/as mas em especial para os/as leitores/as que me acompanham desde o início desta e de outras aventuras, aqui fica a ligação para uma experiência nova, composta basicamente por recortes, colagens e inspirações resultantes de trabalho alheio que vou guardando e tenho vontade de partilhar.

          São, shhhtttt!, o contos da Nostalgia Futura.

            Apontamentos, Novidades, Opinião

            Vida noturna

            Robert Doisneau

            O publicista e escritor irlandês Richard Steele escrevia em 1710, na revista satírica The Tatler, que tinha ido visitar um amigo chegado do campo para viver em Londres. Mas este encontrava-se já deitado quando, às 8 da tarde, Steele se apresentara em sua casa. Voltou na manhã seguinte, pelas 11 horas, para lhe dizerem que o amigo ia começar a jantar: «Rapidamente descobri que o meu amigo seguia religiosamente os seus antepassados e respeitava os horários usados na sua família desde a época da conquista normanda.» Dei algumas vezes exemplos análogos enquanto falava a turmas de alunos sonolentos sobre o imaginário aldeão dos tempos que antecederam a abertura das estradas e a chegada da eletricidade. Ali, como todos trabalhavam desde a alvorada, e o trabalho doía, todos se deitavam «com as galinhas», ficando os ruídos e as sombras da noite a cargo dos espetros e das bruxas, dos quais aliás ninguém duvidava. Mesmo nas nas cidades, as coisas não se passaram de forma substancialmente diferente até ao surgimento das festas aristocráticas e à abertura dos cafés por volta do século XVII, começando então a noite a ter uma animação inteiramente nova. Com o aparecimento da iluminação urbana e a multiplicação dos teatros o processo foi completado, alterando-se profundamente o uso social e as representações simbólicas da vida noturna. A noite fugaz mas persistente «das paixões recusadas, das paixões descabidas», gravadas a canivete nas mesas dos bares, Lins dixit, chegou bastante tarde mas para ficar.

              Apontamentos, Cidades, Olhares

              Contra as praxes vexatórias

              Eis o abaixo-assinado proposto por 15 professores da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e destinado a sugerir medidas para que as «praxes académicas» deixem de se apresentar como «atos de humilhação, de atemorização e de atentado à dignidade». Pretende-se sobretudo divulgar junto dos novos estudantes o seu caráter estritamente voluntário e a impossibilidade legal de se fundarem em práticas vexatórias, o que grande parte dos visados desconhece. Independentemente da opinião pessoal de cada signatário, necessariamente variada, no conjunto, e ao contrário daquilo que alguns meios de comunicação afirmaram, o documento não se destina a «acabar com a praxe», mas antes a impedir os efeitos perigosos ou nefastos que em seu nome têm vindo a ocorrer. Entretanto o texto já recolheu largas dezenas de assinaturas de outros professores da FLUC, estando a circular por mais faculdades. Dentro de dias mais informações serão divulgadas.

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                Atualidade, Coimbra, Democracia, Novidades

                Marcuse de volta

                Herbert Marcuse

                Protegido provavelmente pelo estado de confusão no qual viviam os censores do marcelismo, em janeiro de 1971 o semanário de atualidades Vida Mundial, com uma tiragem, exorbitante para a época e para o país, de 40.000 exemplares, fazia a capa com um cartoon representando Herbert Marcuse, ao qual dedicava um dossiê inteiro. A razão da escolha: pouco tempo antes, já com setenta anos cumpridos, o filósofo da Escola de Frankfurt passara para a ribalta ao ser apropriado pela reflexão libertária e crítica da sociedade pós-industrial que integrou a vertente mais radical e antissistema das movimentações saídas de Berkeley e do «Maio francês». Em 1955 saíra Eros e Civilização, obra que recorria à conceção freudiana do progresso da civilização para demonstrar como a sociedade capitalista altera e condiciona o desejo. Uma posição muito naturalmente sedutora para o padrão hedonista de representação do mundo que moldava a cultura sixtie. Foi no entanto em 1964, com O Homem Unidimensional, só agora traduzido e editado em Portugal, que Marcuse passou a integrar o núcleo duro dos acusadores da sociedade tecnológica desenvolvida que considerava um fator de escravidão.

                A particularidade desse modelo societário residiria então, para além de seu elevado nível de automação, no facto de suscitar um enganador «funcionamento suave do todo». Este assumiria características totalitárias, já que continha «uma coordenação técnico-económica não-terrorista» capaz de operar «através da manipulação das necessidades por interesses estabelecidos», impedindo desta forma o surgimento de «uma oposição eficaz ao todo». O próprio indivíduo transformar-se-ia num produto da alienação provocada por uma sociedade consumista e massificada, dentro da qual a possibilidade de oposição fora suprimida ou desviada, criando uma forma unívoca, padronizada, de pensamento e de ação. Obra de denúncia do modelo monstruoso para o qual o capitalismo parecia empurrar a sociedade, foi no entanto reprovada por uma parte da crítica de esquerda por não oferecer uma via de escape para essa forma servidão que impunha ao indivíduo uma atitude conformista, consumista e acrítica. No entanto, se bem que a estrutura da obra defina principalmente uma intenção analítica – desenhando um quadro ainda hoje de considerar – não terá sido acidental a escolha da frase redentora de Walter Benjamin com a qual termina: «Só através dos que não têm esperança a esperança nos é dada.»

                Herbert Marcuse, O Homem Unidimensional. Sobre a Ideologia da Sociedade Industrial Avançada. Trad. de Miguel Serras Pereira. Letra Livre. 326 págs. Versão revista de nota saída na LER de Março.

                  Atualidade, História

                  Ainda e ainda as praxes académicas

                  Em Coimbra

                  versão revista de um post publicado há cerca de um ano

                  De novo às voltas com as praxes académicas. Não que representem um problema para quem, nos ambientes universitários, delas faz – até há pouco tempo, durante algumas semanas, agora o ano letivo inteiro – o eixo das suas vidas. Pelo contrário, aparentemente essas pessoas até se divertem, daquela forma muito própria e bastante pobre e falha de imaginação de se divertirem. Mas porque para a maioria dos cidadãos, que as observam de fora como vestígios exóticos de uma época e de um mundo que não entendem bem, são um fator de perturbação. As razões que as impõem não se prendem, no entanto, com o lado mais ou menos folclórico da «festa permanente» que lhes está associada. Na raiz implicam um espaço de recreio muitas vezes legítimo, e afinal nem todos temos o dever de achar divertidas as mesmas coisas. Mas relacionam-se com três circunstâncias sobre os quais podemos alinhar umas ideias. (mais…)

                    Apontamentos, Atualidade, Coimbra, Olhares

                    Boaventura de Sousa Santos / Páginas Tantas

                    BSS

                    Esta segunda-feira, dia 2 de abril, pelas 18H30, decorre a terceira sessão do programa Páginas Tantas, organizado em Coimbra pelo TAGV – Teatro Académico de Gil Vicente e pelo Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. Nele se irá falando de livros e de literatura, das artes e dos artistas, de ideias e de outras coisas úteis. Em cada sessão estará presente um/a convidado/a que irá conversar com o público sobre o seu trabalho. Neste mês será o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (Coimbra, 1940), diretor do Centro de Estudos Sociais e autor de uma vasta obra sobre globalização, sociologia do direito, epistemologia, democracia e direitos humanos. Mais informações no blogue do programa.

                      Novidades, Opinião

                      Ler porque sim

                      «Ler por prazer é mal visto» diz Fernando Savater em entrevista concedida à Babelia deste sábado. Não parece exagero: a leitura é cada vez mais olhada, e apresentada até por quem tem o dever de promovê-la, como momento de integração no mercado de trabalho, fator de progressão profissional ou salvo-conduto para um certo padrão de prestígio. Em última análise, como arma de arremesso na corrida triste e insana de todos contra todos. O conhecimento pelo conhecimento, o devaneio sem explicação, a leitura pelo gozo pessoal e intransferível de desdobrar a nossa vida e dialogar com as dos outros, pretéritas ou presentes, tem vindo a ser desvalorizada pelo próprio sistema educativo, mais interessado em produzir trabalhadores eficazes, em «desbloquear riqueza», do que em fazer pessoas completas e felizes. Assimilando a felicidade ao desperdício, a poesia à preguiça, a criação ao desatino, a leitura improdutiva ao esbanjamento, tem gerado uma multidão de escravos que nem sabem que o são.

                        Apontamentos, Olhares

                        A glória do bicho-papão

                        Napoleão Bonaparte

                        Charles Esdaile começa por recordar que Napoleão Bonaparte é, depois de Jesus Cristo, a personalidade histórica mais vezes representada no cinema, e também uma daquelas sobre quem mais se escreveu. Lembra também que poucos notáveis do passado determinaram posições tão extremadas, no seu próprio tempo ou na posteridade, quanto aquelas que desde cedo se definiram em volta do caráter, da ação e das intenções do «leão corso». De um lado, um certo entendimento da sua aparência como a de um monstro, capaz de pôr um continente inteiro a ferro e fogo apenas determinado por um desejo insaciável de poder e de fama. Do outro, a representação positiva de um visionário com papel decisivo no despertar da «Europa das nações», prova provada do dinamismo do «grande-homem» na História. Sem a intervenção do qual, no caso em apreço, o fim do Ancien Régime e a reforma política e administrativa da coisa pública não poderiam ter sido obtidos do modo e nos termos em que ocorreram. (mais…)

                          Biografias, História

                          Limpar o pó a Marx

                          K.M.

                          A avaliação da obra e da influência de Marx tem produzido três modelos de leitura que tendem a depreciá-la ou a empurrá-la para o esquecimento público. O primeiro, sem dúvida o dominante, é aquele que as proclama como decisivamente mortas e enterradas com a derrocada dos Estados do socialismo burocrático e o presumível «fim do comunismo». O segundo modelo, mais antigo, assegura-lhe uma dimensão rígida e nostálgica, como indicador das experiências históricas anteriores à Queda do Muro observadas ainda, por certas consciências, como essencialmente positivas. O terceiro modelo, devedor do anterior apesar de seguir outro caminho, é aquele que vê no «regresso a Marx» a possibilidade de uma sequela, ainda que revista e melhorada ao nível dos conceitos, de um caminho até ao dogma que o próprio filósofo expressamente rejeitara em vida. O objetivo manifesto deste livro de Sousa Dias é pensar e mostrar a possibilidade de uma outra via, na qual a interpretação do mundo injusto e desigual em que vivemos, os caminhos para a sua transformação, bem como a própria ideia de comunismo, projetadas por Karl Marx, são repensados na sua iniludível capacidade revolucionária e na sua dramática necessidade.

                          Trata-se de uma viagem por um conjunto de condições teóricas e de possibilidades. A abrir, e diante do apregoado «fracasso do comunismo», o autor mostra que terá sido outra coisa, não o comunismo mas sim uma sua caricatura, «comprometida pelo seu uso estatal e burocrático», aquilo que iniludivelmente fracassou. Procede-se depois a um reconhecimento da atualidade de Marx, separando a leitura dogmática da sua obra, e «um certo marxismo» corrompido pelo leninismo, realmente liquidados ou moribundos, da perspetiva revolucionária, fortemente positiva e incandescente, que o seu trabalho continua a ser capaz de projetar. Aborda-se em seguida a urgência do retomar da ordem do económico sobredeterminando o domínio do político enquanto consequência necessária de um regresso à leitura de Marx. Para os dois últimos capítulos ficam as propostas mais difíceis de teorizar, aquelas que associam ao pensamento de Marx uma grandeza que está para além do seu lugar como instrumento de análise. Erguendo-se contra a velha ideia de revolução enquanto inevitabilidade histórica, o autor mostra de que maneira o verdadeiro pensamento marxiano sugere a «possibilidade impossível» de romper com a ordem injusta, só aparentemente imutável, do capitalismo, e de alcançar a sua superação. E procurando esboçar o rosto da «comunidade por vir», do que será enfim o comunismo, recusa a construção fabulosa de uma ideia de sociedade perfeita, que troca pela «obra do próprio comum como poder instituinte», que não pode ser antecipado mas apenas construído a partir da experiência.

                          Um ensaio que retira o pó ao filósofo de Trier e o recoloca vivo nas nossas mãos. A ler com urgência por quem não gosta de ideias feitas e anda à procura de uma saída para isto.

                          Sousa Dias, Grandeza de Marx. Por uma política do impossível. Assírio & Alvim. 176 págs. Versão revista de nota saída na LER de Março.

                            Atualidade

                            Millôr Fernandes (1924-2012)

                            Millôr

                            Vi o milionário saltar da limusina, caminhar tranquilamente para dobrar a esquina e penetrar na mansão onde mora. Antes de dobrar, exatamente na dobra da esquina, e nas dobras da noite, lhe saiu um trintoitão na cara acompanhado da voz surda de um sujeito que ele mal viu por trás de galhos: «Passa tudo e não chia!»

                            Homem do mundo, acostumado aos azares e venturas da economia da vida, o rico banqueiro não se deixa assustar. Apenas aconselha: «Calma, amigo. Passo tudo e não chio, que não sou besta. E vou te dizer uma coisa, reconheço o teu valor – você faz o que pode para conseguir o que precisa. Como me assalta deve saber quem sou, um banqueiro, um capitalista. Mas, curiosamente, não sabe quem é, pois aceita o vergonhoso epíteto de assaltante. E, no entanto, você é um capitalista igualzinho a mim. Só que, até agora, conseguiu capital apenas pra se estabelecer com um trinta e oito. Boa noite. Posso ir?»

                            Apotegma XVIII (de «Apotegmas do Vil Metal»)

                            Millôr Online

                              Apontamentos, Memória, Olhares

                              Duas ou três coisas que eu sei sobre manifes

                              Fotografia: Patrícia de Melo Moreira/AFP

                              Depois de uma época na qual fui ativista profissional, a certa altura quase deixei de participar em manifestações de rua. As razões podem reduzir-se a três, sendo as duas iniciais com toda a certeza partilhadas. A primeira teve a ver com o recuo das causas durante os anos 80 e a forma como, falhas de imaginação e de um norte, as correntes que contestavam a ascensão neoliberal se limitavam a repetir até à náusea, receitas, motivações, bandeiras e palavras de ordem que tinham sido necessárias nos anos de resistência ao regime e durante o processo revolucionário mas já não se aplicavam a uma realidade em rápida mudança. A segunda razão ligou-se à apropriação das datas simbólicas por uma burocracia partidária, ou mesmo sindical, que procurou usar os movimentos de massas como ferramenta de estratégias sectárias, rejeitando uma corrente dinâmica, unitária e participada que pudesse exprimir-se também na rua. Banalizou-se assim o protesto, cada vez mais ritualizado, controlado, organizado para «marcar posição» e não para arquitetar futuros. A terceira razão, mais recente, não tem motivação política: justamente quando as circunstâncias mudaram e as manifestações de rua passaram a ter de novo um papel decisivo na mobilização cívica, algumas limitações de ordem física impedem-me de estar presente como queria e deveria. Por isso sou agora mais um apoiante do direito à manifestação do que um manifestante, o que, no entanto, não reduz o meu direito à crítica ou minimiza a minha condição de «homem da luta». (mais…)

                                Atualidade, Memória, Olhares, Opinião