De acordo com uma sondagem da Universidade Católica para a RTP ontem divulgada, a maioria dos portugueses (62%) considera que o Governo liderado por Pedro Passos Coelho/relvas está a ter um mau desempenho. Mas uma maioria ainda mais ampla (73%) não encontra melhor alternativa em qualquer um dos partidos da oposição, julgando-os incapazes de fazer melhor. A falta de desígnio e de esperança propaga-se na medida direta da ausência de confiança e de expectativas. A democracia caminha por uma viela escura.
Passam 70 anos sobre a saída do primeiro livrinho da série Os Cinco, da autora britânica de literatura infanto-juvenil Enid Blyton. Para sucessivas gerações, entre elas a minha, terão sido os volumes desta série os primeiros livros «a sério», de texto corrido, a serem lidos. Ou melhor, devorados. Desde logo os livros em si, contendo enredos repletos de cenários misteriosos, embora todos eles a uma segura distância de casa, e de aventuras «crepitantes», que apesar de tudo encheriam de tédio os fãs, já um pouco mais velhos, de Sandokan. Mas devoradas também eram as refeições que se seguiam à leitura: depois de tanto passarem à frente dos pequenos olhos descrições absorventes de lanches e de piqueniques repletos de sanduíches de carnes frias com mostarda ou manteiga de amendoim, de cremosos gelados de baunilha, de compotas de laranja ou frutos silvestres, de deliciosos biscoitos de manteiga e grandes jarras de limonada (ou de garrafas térmicas com um tépido e reconfortante chá), ficava-se inevitavelmente com uma fome dos diabos.
Em 1942, com Os Cinco na Ilha do Tesouro, começaram pois a chegar à leitura sucessivas vagas de crianças fascinadas com as incríveis peripécias de Júlio (Jules), Ana (Anne), David (Dick), do cão Tim (Timmy), e, esta ficou para o fim pois foi sempre a minha personagem favorita, da Zé (Georgina), que pensava e se movia pelos outros todos. «Chamam-lhe ‘Zé’? – perguntou a Ana, surpreendida. – É nome de rapaz. – Tens razão – disse a tia. – Mas a Zé detesta ser rapariga e chamamos-lhe Zé, como se fosse um rapaz.» Linhas perturbadoras para quem saiba o que, na época do Estado Novo, significava designar alguém, depreciativamente, como uma «maria-rapaz». A sequela do Clube dos Sete já a apanhei noutra fase, mas ainda deu para perceber que a excitação, e na aparência o empenho da autora, já não pareciam bem os mesmos. Vivi por isso esta nova leitura como uma decepção. É, no entanto, provável que quem tenha chegado então a Enid Blyton considere este julgamento um perfeito disparate. E que tenha razão. A minha Blyton, porém, é a dos septuagenários Cinco. A quem agora até se procura dar a beber o elixir da eterna juventude.
O Segundo Século Vinte é um ciclo de debates e apresentações relacionado com temas da história recente de Portugal. A iniciativa, uma organização do Centro de Documentação 25 de Abril e do Teatro Académico de Gil Vicente, é de periodicidade bimensal e começa já nesta quinta-feira, dia 23 de fevereiro, pelas 18 horas. Será em Coimbra, no TAGV. Nesta sessão, «Pára-arranca. História e amnésia no movimento estudantil», falar-se-á das experiências, dos esquecimentos e dos recomeços que explicam mas também condicionam a intervenção cívica e reivindicativa dos estudantes. Participarão os investigadores Guya Accornero e Miguel Cardina, sendo a moderação de Rui Bebiano. Pode ver e copiar aqui o cartaz do ciclo.
Quem experimentou viver a um mesmo tempo o poder do amor e o da crença na ideia da revolução redentora sabe o que significa ter na mão o futuro, todo o futuro, o próprio e o da humanidade inteira, incandescente, combinado num único destino e numa só certeza. Em Baku, Olivier Rolin conta a propósito desta sorte um episódio que retirou de um texto autobiográfico de Banine, a escritora francesa de origem azeri. Quando em 1920 o poder dos sovietes chegou à região, Banine e uma prima, ambas com quinze anos, «uma tímida e a outra estouvada», as duas muçulmanas e filhas de ricaços locais, deixaram-se seduzir pelos ideais e pelas figuras esguias de dois jovens bolcheviques, revolucionários ateus, recém-chegados de longe para tratar das expropriações. Foi pois «de emblema de Lenine espetado nos vestidos de verão» que na altura aceitaram fazer parte da comissão incumbida de inventariar as vivendas da sua própria família. Não pensaram duas vezes nas consequências da sua escolha, embora depois acabassem por perder os namorados, as propriedades e a própria terra onde haviam nascido. Não podiam tê-lo pensado naquele momento das suas vidas.
Porque me parece bastante claro, informado, equilibrado e pedagógico, porque nele reencontro o essencial daquilo que penso sobre o assunto, e também porque me parece importante arrefecer um pouco a fervura do debate em torno do Acordo Ortográfico, transcrevo o artigo de opinião, da autoria de Helena Topa, saído no Público de hoje.
Acordo Ortográfico: prós e contras
Helena Topa
Público Lisboa
19 de Fevereiro de 2012
O recente episódio da proibição de seguir a nova norma ortográfica por parte do novo diretor do CCB, Vasco Graça Moura, veio relançar, e incendiar, o debate sobre o Acordo Ortográfico (AO). Debate esse, em boa verdade, escasso, dado que, com honrosas exceções, apenas ouvimos as vozes dos detratores.
Tudo o que tenho lido e ouvido sobre o Acordo Ortográfico revela quase sempre posições extremas, a favor ou, mais frequentemente, contra. É claro que todos têm o direito de se sentirem lesados com estas mudanças, afinal aprenderam a ler e a escrever as palavras da sua língua de uma determinada maneira, e essa maneira de escrever, que se tornou automática, é agora alterada.
Mas o que mais me preocupa não é haver pessoas radicalmente contra ou a favor, é haver ainda muita ignorância e uma multiplicação de artigos de opinião que pouco fazem para esclarecer. Penso que caberia aos meios de comunicação social um papel pedagógico, expondo os factos, esclarecendo, chamando linguistas, professores, políticos e cidadãos a pronunciarem-se sobre o AO. (mais…)
Em artigo publicado no Esquerda.net, Immanuel Wallerstein fala dos grandes desafios colocados à esquerda mundial depois de 2011, que considerou «um bom ano». As razões desta qualificação positiva relacionam-se com a perceção, por parte de um número crescente de pessoas, da necessidade absoluta de uma alteração radical de sistema, lançada «contra a excessiva polarização da riqueza, os governos corruptos e a natureza essencialmente antidemocrática desses governos, tenham ou não sistemas multipartidários». Por isso, pela primeira vez em muito tempo, em tantos lugares tantas pessoas comuns passaram a questionar a própria natureza do sistema em que vivem, deixando de o ver como imutável e ampliando assim as condições subjetivas necessárias à sua alteração.
O sociólogo enuncia ali duas grandes tarefas colocadas à esquerda para poder dar corpo a essa imprescindível mudança. Uma delas, a mais óbvia, tem a ver com a escolha entre um modelo «desenvolvimentista», que privilegie na construção de um novo sistema o crescimento económico, e um outro, «anti-desenvolvimentista», que insista nas mudanças nas condições de trabalho e no padrão de vida dos cidadãos. A outra tarefa tem, entretanto, menos a ver com o sistema pelo qual combater e mais com o combate político por esse futuro. Consiste em saber como projetar, à esquerda, a indispensável transformação política, já que em todo o mundo «as forças de centro-direita ainda comandam», influenciando uma grande parte da população. A proposta de Wallerstein é direta e óbvia, ao considerar que se quiser promover a mudança a esquerda mundial precisará de um grau de unidade ou de proximidade política que ainda não tem, devendo, por isso, concentrar boa parte das suas energias nessa tarefa de reconciliação, ou pelo menos de avizinhamento. Recordando que existem profundos e velhos desacordos tanto sobre objetivos de longo prazo quanto sobre escolhas táticas, sublinha que, sendo estes discutidos com frequência e acaloradamente, de facto pouco progresso tem sido obtido na superação ou no esbater das divergências e das divisões. (mais…)
Uma amostra de Olivier Rolin, retirada do primeiro capítulo do recente Baku, editado pela Sextante. O Azerbaijão – país sensivelmente com a mesma área e número de habitantes deste, como ele à beira-mar plantado – agora ao vivo e a furta-cores. Viagem, devaneio, jogo, evocação, num romance-reportagem que o não é bem. Um belo livro, aviso já.
Na Rua Rasulzadeh, uma rua pedonal, acaricia – oh, apenas com o olhar – pequenos traseiros bamboleantes e longos cabelos negros varrendo ombros morenos. Se todos os países do Islão fossem como este, onde as raparigas andam sem véu e de saia curta, onde servem vinho e vodka em qualquer tasca, estaria disposto a tornar-me muçulmano, pensa ele. Enfim, não está na ordem do dia. Vira à esquerda na Abdulkarim Elizadeh, cujos passeios empedrados a preto e branco lhe recordam Lisboa. À direita, um belo edifício de estilo hanseático, testemunho da época em que Baku era a capital mundial e cosmopolita do petróleo, exibe numa fachada um letreiro pintado e já quase sumido, que deve datar de antes da Revolução. Recordação bem longínqua da sua infância, quando Paris era uma cidade pintada. Tal como surge nos quadros impressionistas, ou nas fotografias de Atget ou de Marville. (…) (mais…)
Quando, em outubro de 1960, Vassili Grossman enviou o manuscrito de Vida e Destino para o chefe de redação da revista Znamia, este passou-o de imediato para as mãos do KGB. Ainda que se vivesse então a época do «degelo» kruscheviano e da crítica pública dos crimes brutais e genocidas de Estaline, as consequências não demoraram a fazer-se sentir: o apartamento do escritor judeu ucraniano foi revistado, as cópias, os rascunhos e até as fitas de tinta das máquinas de escrever foram de imediato apreendidos. Grossman viveu a perda do seu romance, resultado de dez anos de intenso trabalho, como uma catástrofe pessoal, irreversível. Morreria três anos mais tarde na obscuridade, sem conseguir recuperar do desgosto e do desânimo. No imenso panorama da sociedade soviética que é este romance, comparado muitas vezes à obra maior de Tolstoi, o escritor retrata de forma realista, mas inegavelmente distante do cânone estético e político oficial, a vida durante a Segunda Guerra Mundial, com particular ênfase na ofensiva alemã, e na defesa e contraofensiva soviéticas, que culminaram com a libertação de Estalinegrado e dos territórios ocupados pelos nazis. Episódios que o autor, aliás, diretamente viveu como correspondente de guerra ao serviço do Exército Vermelho, para o qual se havia voluntariado como soldado raso.
Estabelece-se ali, e terá sido com toda a certeza essa a razão principal da desgraça do romance e do seu criador, uma incómoda analogia entre os processos de controlo político usados pelos sistemas totalitários nazi e soviético, sobressaindo o antissemitismo estrutural que, com diferentes cambiantes, de facto partilhavam. No centro da trama, a vida atribulada de uma família de «classe média», seja lá o que isso pudesse ter significado na era estalinista, dramaticamente dispersa entre a Alemanha e a Sibéria pelas circunstâncias da guerra e das suas sequelas. Após o poeta Lipkine, o físico Sakharov e o escritor Voïnovitch terem conseguido fazer sair da União Soviética um microfilme feito a partir de dois manuscritos entretanto recuperados, o texto será impresso em russo em 1980, numa pequena tiragem da responsabilidade de um editor suíço, antes de começar a ser traduzido em numerosas línguas. Em 1988, no auge da perestroika, foi finalmente editado em Moscovo. No entanto, na Rússia, e ao contrário do que tem acontecido mais a ocidente, o reconhecimento público da dimensão desta obra imensa e de leitura imersiva, bem como o do percurso pessoal e intelectual do próprio Grossman, gradualmente distanciado do regime soviético, têm sido claramente exíguos. Como, citado pela revista francesa Books, escreveu o encenador Lev Dodine no semanário Itogui, tal não pode deixar de acontecer numa sociedade que «emprega o essencial da sua energia a renegar o próprio passado».
Vassili Grossman, Vida e Destino. Trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra. Dom Quixote. 856 págs.
Está neste momento a circular pelas redes sociais uma fotografia particularmente perturbante que funciona como eloquente sinal do Estado de guerra social total no qual se encontra a Grécia. Nessa imagem (que pode ver aqui; a que ilustra este post é diferente) observa-se a polícia a tentar manietar Manolis Glezos, de 90 anos, um antigo herói da resistência ao nazismo e um experiente político de esquerda que chegou a ser deputado europeu, sem o menor respeito pelas razões, pela idade e pelo papel na história do país do símbolo que tinham pela frente. Um péssimo exemplo da vaga de desprezo pelos direitos democráticos e sociais mais elementares que começa a varrer a Europa.
Adenda – As imagens foram-me transmitidas como se fossem de agora. Acabo de saber que são de 2010. No entanto, Manolis Glezos esteve nos protestos de ontem e terá sido hospitalizado.
«Fashion is not frivolous. It is a part of being alive today.» Mary Quant perfez ontem, 11 de Fevereiro, 78 anos. Sem ela a nossa vida teria sido um tanto diferente. E com toda a certeza bastante mais monótona.
Um fragmento da crónica de José Pacheco Pereira saída hoje no Público. Prosa pedagógica, útil, sobre o valor, o papel e o lugar do conhecimento histórico. Que deve interessar a toda a gente: do cidadão comum, bombardeado sem dó ou piedade por uma informação que tende a desvalorizar o exemplo e as lições do passado, ao vasto naipe de políticos no ativo, geralmente mais interessados em servirem-se da História de maneira oportunista do que em compreendê-la para dialogarem com ela.
(…) Estamos, como já referi, perante uma nova forma de luta de classes: a que opõe «descomplexados competitivos» a «preguiçosos autocentrados». Pelos vistos, uma característica destes últimos é que se interessam por História.
É verdade que saber História vale muito pouco no mercado de trabalho, mas também é verdade que saber Matemática pura, Física Teórica, Astronomia, Biologia Molecular, já para não falar de Filosofia, Sociologia, Geografia, Grego Clássico e Latim, Literatura Portuguesa, também não valem muito mais. E, by the way, os milhares de licenciados em Marketing, Economia, Jornalismo, ou como se diz agora «Ciências de Comunicação», Artes Performativas, Arquitectura, Composição, os pianistas, violoncelistas, violinistas, também não vão muito longe. Seguindo o critério do nosso mago do «empreendedorismo», não é muito difícil, e no meu caso gratuito, aconselhar cursos seguros e certos. Eu costumo aconselhar maltês, uma língua de que há enorme escassez de tradutores e intérpretes na UE, e o turco, russo, chinês e árabe também podem fazer parte do currículo dos candidatos a «descomplexados competitivos». Mandarim ou cantonês de certeza que têm futuro, assim como «beber a água do Bengo», na exacta composição químico-financeira corrente para esses lados. (mais…)
MCK – O governo de Luanda não gosta dele. Mas em Janeiro, em Angola, 10.000 cópias de «Proibido Ouvir Isto» voaram em quatro horas. Dizem que «não toca na rádio mas chega a todo o cubículo».
É sempre possível encontrar esperança no desespero. Romper a partir da desventura o caminho para a sorte que se deseja. Em «La République du Silence», um artigo publicado em setembro de 1944 na resistente Les Lettres Françaises, Sartre escrevia: «Jamais fomos tão livres como debaixo da ocupação alemã». Para logo de seguida alegar em defesa dessa estranha ideia: «Perdemos todos os direitos, a começar pelo de falar; insultam-nos a cada dia e temos de conter-nos; deportam-nos em massa como trabalhadores, como judeus, como presos políticos; por todo o lado, nos muros, nos jornais, no ecrã, deparamos com a imagem imunda que os opressores querem que tenhamos de nós mesmos: mas é precisamente por isso que somos livres.» É quando se alcança o limite da humilhação e da desumanidade que se percebe como só das nossas mãos, libertas pela necessidade e pela opressão de toda a hipótese do medo, pode renascer o fulgor da liberdade.
Não foi Cristo, Marx ou sequer o Zorro. Esses foram importantes mas chegaram em alturas menos decisivas. Foi Charles Dickens quem, pela mão de Oliver Twist e numa edição pobre mas digna da Romano Torres, no momento certo fez de mim uma pessoa de esquerda.
Não podemos se não ter um enorme respeito pelo trajeto das pessoas, ou de gerações inteiras, que deram o melhor de si, que lutaram e sofreram, por causas que consideraram justas, urgentes e imprescindíveis. Mesmo quando neste ou naquele momento, como é próprio do humano, se equivocaram nas decisões. Mas muitos dos que na época estiveram ou podiam ter estado com essas causas olham agora de uma forma algo distanciada, quando não profundamente crítica, certas tentativas para evitar a sua adaptação ao novos e, aparentemente, não menos difíceis tempos que se aproximam. Os gestos, como as ideias, os programas e as convicções, têm o seu tempo e começam a perder o pé quando deixam de se questionar e se repetem como numa litania, quando se fixam numa imagem do real menos complexa e móvel do que aquela que realmente vivem, quando envelhecem sem de tal se aperceberem.
Por isso, se deve manter-se o sentimento de gratidão pelo combate passado dos comunistas pelo estabelecimento da democracia e dos sindicalistas da mesma ou análoga tendência pelo alargamento e a defesa dos direitos dos trabalhadores, já não o devemos conservar quando notamos, em muitos dos que pretendem prosseguir o seu legado, uma grande dificuldade para se adaptarem ao mundo tal qual ele agora é, às tarefas e políticas de alianças que, numa fase dramática como a que vivemos, exigem tanto de coragem como de capacidade para ser-se maleável, antisectário e inventivo. Por isso também não posso deixar de estar de acordo com José Medeiros Ferreira quando este, em crónica recente, comenta, a propósito do primeiro e ríspido discurso de Arménio Carlos, o novo líder da CGTP e membro do Comité Central do PCP, que nos conflitos que se avizinham «a sociedade portuguesa só dará a vitória a quem for mais abrangente na resposta aos problemas do momento, e não a quem for mais sectário.» A força do combate contra este «fascismo morno» que nos está a envolver estará necessariamente na capacidade para mobilizar com base num denominador comum e numa retórica aberta, não na exibição de um discurso pré-apocalíptico e de estratégias de uma «luta de classes» cega que tendem a desunir.
A entrada na adolescência de François Truffaut foi semelhante à do pequeno Antoine Doinel de Os 400 Golpes: sem um núcleo familiar estável, viu-se entregue a si próprio no mundo perturbado e hostil dos anos da Paris da Ocupação alemã e da Libertação, passando rapidamente da condição de bom aluno para a de um miúdo ansioso, fingido, ladrão e mentiroso. Expulso da escola aos 14 anos, segue a partir daí um destino de autodidata, refugiando-se por sua conta e risco na literatura e no cinema, e percorrendo um trajeto no qual o romanesco e o íntimo permaneceram unidos e como constantes. Foi este mundo intimamente penoso, de uma realidade imaginada a partir da consciência singular do narrador ou do personagem que não pretende ser exemplo de nada ou para alguém, que Truffaut foi construindo, com raras exceções, o seu modo próprio de filmar e de se aproximar dos espetadores encerrados na sala escura para lhe verem as artimanhas.
Ao longo das décadas de 1960-1970 foram muitos – eu fui um deles, para que conste, apesar de já só ter podido ver os seus primeiros filmes em sessões de reprise num velho cinema de cadeiras desconjuntadas e a cheirar exageradamente a encerado – os que foram projetando as certezas e as dúvidas sobre o seu próprio amadurecimento através do crescimento atormentado e problemático do inconstante Doinel (desde o citado filme, estreado em 1959, até Amor em Fuga, de 1979, passando por Antoine e Colette, de 1962, Beijos Roubados, de 1968, e Domicílio Conjugal, de 1970). Ou aqueles, homens principalmente, que foram perscrutando no ecrã pela mão do eterno menino parisiense as suas próprias fantasias (Jules e Jim, 1962; O Homem que Gostava das Mulheres, 1977; A Mulher do Lado, 1981). Truffaut nasceu em 6 de fevereiro de 1932 e se não lhe tivesse acontecido o pior em 1984 faria hoje 80 anos. Ter-nos-ia dado muito jeito que por cá se tivesse podido manter.