O alpinista do Kremlin
Não estando por esse motivo impedido de compreender o enredo, talvez o leitor comum não tenha uma perceção completa do imenso trabalho da urdidura dos factos – e da verosimilhança das falas às quais recorrem os personagens – que antecedeu a escrita de O Epigrama de Estaline, o romance de Robert Littell, saído em 2009, que a Civilização acaba de editar. Mas quem conheça de perto a história da União Soviética nas primeiras quatro décadas da sua existência não pode deixar de sentir-se impressionado com o conhecimento que o autor demonstra desse tempo, desse universo humano e até do modo de falar (e, diria, de pensar) das personagens, espelhos de pessoas com uma existência comprovada, que são os narradores deste romance. Falo dos poetas Osip Mandelstam e Anna Akhmatova, de Nadezhda, a mulher de Osip, de Zinaida, amante ocasional, de um vacilante Boris Pasternak, de Nikolai Vlasik, guarda-costas pessoal de Estaline, e de Fikrit Shotman, um antigo campeão de levantamento de pesos. E, acima de todos eles, como um espetro omnipresente, do bigode desse «alpinista do Kremlin» que Mandesltam parodiou num poema clandestino, o epigrama mencionado no título, assim assinando o seu destino de prisão, tortura, desterro e morte. Littell é, de facto, um profundo conhecedor da realidade e do passado da Rússia, e só isso lhe permitiu, apesar de nascido em Brooklyn, transformar este romance num quase-documento sobre a coação e o medo, e também a presença da traição, que comprovadamente percorreram a terra soviética nesses anos trinta espoliados e enegrecidos pelo Grande Terror. Triturando, inevitavelmente, Osip. Afinal o que seria de esperar do destino de quem, em pleno ano de 37, escreveu: «Se as pessoas não falarem comigo, / (…)Se me tratarem como a um animal, / Se me atirarem o comer pró chão –, / A dor não amordaço, não me calo (…)». Sim, este é um excelente e inquietante romance.