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Porque gosto eu tanto do cinema francês dos anos 60
(de preferência a preto e branco)

«Seria difícil imaginar um realizador americano ou inglês a fazer um filme como Ma Nuit Chez Maud (1969), de Éric Rohmer, em que Jean-Louis Trintignant agoniza durante quase duas horas sobre se deve ou não dormir com Françoise Fabian, invocando, nestas duas horas, tudo, desde a aposta de Pascal sobre a existência de Deus à dialética da revolução leninista. Aqui, como em tantos filmes da altura, é a indecisão, e não a ação, que faz avançar o enredo. Um realizador italiano teria acrescentado sexo. Um realizador alemão teria acrescentado política. Para o francês, bastavam as ideias.» (Tony Judt, O Chalet da Memória)

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=_t9begCwIB0[/youtube]
    Cinema, Olhares, Recortes

    O regabofe

    Annibale Carracci - «O comedor de feijões», 1585

    Uma frase curta com a qual nos têm martelado os ouvidos, como afirmação supostamente mordaz para justificar tudo aquilo que de mau nos está a acontecer, declara que «é preciso acabar com o regabofe». A frase é incómoda e perigosa porque tem sempre um sentido unívoco. Com ela se pretende indicar que ao longo das últimas décadas as pessoas comuns tiveram direitos a mais, uma qualidade de vida que não se justificava, educação e saúde exageradamente acessíveis, transportes ao preço da uva mijona, férias preocupantemente longas, uma estabilidade no trabalho que só lhes fez mal à inteligência e aos músculos. Que passaram demasiado tempo a passear, a comer refeições completas, a tomar banhos de mar, a ler romances, a namorar, a programar futuros melhores para si e para os seus filhos. Porém, aquilo que pretende significar quem se serve da expressão não é que tais práticas fossem intrinsecamente más, indubitavelmente escusadas e fonte incontornável do pecado. É que não foram as pessoas certas a fruí-las. Que o regabofe não deveria ter sido para quem queria, mas apenas para quem podia. Não para todos, mas só para alguns. Não para quem trabalhou mas para quem, no andar de cima, geriu o trabalho dos outros e, supostamente, dessa forma foi «criando riqueza» para gastar consigo próprio. Num merecido e eterno regabofe.

      Apontamentos, Atualidade, Olhares

      O caminho, provavelmente

      Muitos cidadãos dos Estados periféricos da UE, mas também muitos dos que habitam o conforto dos Estados centrais, não gostarão desta ideia. Afetos aos nacionalismos cada vez mais ocos, irracionais e perigosos, temerão o fim das identidades ancestrais. Por motivos históricos e pelo medo de um dia ver emergir uma «Europa dos povos», a direita bater-se-á contra esta solução. Porque teriam de rever toda a sua estratégia de tomada e conservação do poder, os «patriotas de esquerda» farão a mesma coisa. Mas poderá ser este o rumo para evitarmos a derrocada e podermos emergir da crise com alguma segurança e dignidade. E afinal até parece simples de pensar e de dizer. Exista vontade política, respeito pela democracia e uma conjugação de esforços que permita dar, sem equívocos, os primeiros passos neste caminho complexo, difícil, mas provavelmente necessário.

        Apontamentos, Opinião, Recortes

        De Gaulle revisitado

        Duas das mais difundidas fotografias de Charles De Gaulle (1890-1970) ilustram de forma sinóptica o essencial do seu legado como homem público com um lugar central na História da França e da Europa. A primeira foi obtida a 18 de junho de 1940, nos estúdios da BBC, no momento em que a partir de Londres exortava os franceses a resistirem aos ocupantes nazis e aos colaboracionistas de Vichy. A outra apanhou-o em 1970, quase no final da vida, quando já sem qualquer cargo passeava com a mulher, Yvonne, pela propriedade-refúgio de Colombey-les-Deux-Églises. Entre o momento da empolgada coragem e o da retirada amarga e sem glória tinham decorrido apenas três décadas, suficientes, no entanto, para fazerem do general uma figura decisiva do segundo pós-guerra. Escrita por Éric Roussel, jornalista do Figaro, esta biografia evoca no entanto um De Gaulle peculiar, reescrevendo certos momentos do seu trajeto e juntando-lhe outros, por ter sido possível ao autor aceder a arquivos entretanto abertos onde encontrou entrevistas, declarações, citações e confidências menos conhecidas ou de todo ignoradas. (mais…)

          Biografias, História

          Dinâmicas do fascismo

          Mussolini

          Autor de diversos trabalhos no campo da teoria social e da sociologia histórica, Michael Mann serviu-se dessa experiência para abordar o fascismo de uma forma pouco habitual. Desde logo, fazendo uma aproximação sistémica e comparativa a situações e a movimentos mais habitualmente estudados experiência a experiência, país a país. Depois, dando uma importância maior às circunstâncias, em detrimento da centralidade normalmente atribuída aos factos de natureza política. E, por fim, como resultado desses dois primeiros aspetos, insistindo no lugar decisivo das pessoas, das suas aspirações e das suas propostas. Deixando, ao mesmo tempo, a dimensão mais propriamente orgânica e institucional num segundo plano. O que lhe importa é, afinal, menos a conservação do poder do que a preparação da sua conquista, sendo esta que em Fascistas (Edições 70) se propôs observar, compreender e revelar-nos. A estrutura da obra, saída originalmente em 2004, é entretanto razoavelmente simples: um capítulo de natureza metodológica no qual se justificam as escolhas e se passa em revista a produção académica e a teoria geral do fascismo; outro sobre a emergência dos movimentos fascistas no seu contexto histórico, aproveitando para construir uma tipologia das correntes europeias de natureza autoritária; e mais sete dedicados a seis Estados no interior dos quais a corrente pôde impor-se como dominante, tomando e conservando o poder (Itália, Alemanha, Áustria, Hungria, Roménia e Espanha). (mais…)

            História

            O clube dos rapazes solitários

            «Nunca ficava tão feliz como quando ia a algum lado sozinho, e quanto mais tempo demorasse a lá chegar, melhor. Caminhar era agradável, andar de bicicleta era aprazível, as viagens de autocarro divertidas. Mas o comboio era o céu. Nunca me dei ao trabalho de explicar isto aos meus pais e amigos, e por isso via-me obrigado a fingir objetivos: lugares que queria visitar, pessoas que queria ver, coisas que precisava de fazer. Tudo mentiras.» (Tony Judt, O Chalet da Memória)

            À medida que fui avançando na leitura da última obra de Tony Judt, num comovente registo autobiográfico procurado quando a vida já lhe fugia, fui ampliando a impressão que me surgiu há mais ou menos dez anos, quando o li pela primeira vez. Estava ali, naquelas páginas, o rasto de uma pessoa que eu nunca vira, com quem jamais falara, com uma origem social, um trajeto geográfico e uma formação tão diferentes dos meus, e que, no entanto, «pensava como eu», interessando-se recorrentemente por muitos dos assuntos, tradições e linguagens com os quais me importo. O Chalet da Memória veio pois reforçar essa impressão, mas ao mesmo tempo introduzir-lhe uma nuance que me parece importante. Sim, é provável que partilhássemos temas ou preocupações, que tivéssemos opiniões bastante ou relativamente próximas – virá daí a sensação de perda que observei com a sua morte precoce; vem daí também, seguramente, a razão pela qual o recomendo vivamente aos alunos que ainda leem – mas existe algo mais, e que será comum a muito mais pessoas do que a Tony e mim próprio, a criar esse estado de proximidade. Este «algo mais» observo-o a dois planos.

            O primeiro tem a ver com o tempo em que chegámos a este mundo. Judt era um pouco mais velho do que eu, mas ambos nascemos e crescemos numa Europa na qual, se apurássemos os sentidos, ainda era possível escutar o estrondo da artilharia pesada e sentir os ecos da guerra contra Hitler. Partilhando um tempo no qual a miséria e a esperança, o trauma e o alívio, competiam ainda de forma muito evidente. Já o segundo plano será mais de ordem temperamental: o historiador fazia parte, e jamais deixou de o fazer, daquela estirpe de rapazes um tanto introvertidos e que se viam a sim próprios como inequívocos rebeldes – ser rapaz era aqui importante, pois implicava uma intimidade não-partilhada que a maioria das raparigas podia então ultrapassar nos seus gineceus –, comprazendo-se numa observação do mundo atenta, individualista e forçosamente solitária. Leio o passo transcrito no início e sou capaz de revisitar memórias contíguas com uma boa sensação de cumplicidade. Mas também com uma tomada de consciência daquela mesma espécie de perda da qual, nos últimos anos, Judt vinha dando conta: a dessa esperança juvenil, reconfortante e incitadora, que agora a todos começa a ser difícil manter. O que não significa que se preveja o desaparecimento para breve dos sócios do clube dos rapazes solitários. Nem pensem.

              Apontamentos, Biografias, Olhares

              A Lição de Estaline

              A Lição

              Um quadro de A Lição de Salazar para turistas britânicos de passagem pelo Hotel Palácio do Estoril pelos inícios dos anos cinquenta? Não, não, trata-se antes de uma página de um manual de aprendizagem de inglês – oficial, naturalmente, como o eram todos também por aquelas bandas – publicado na União Soviética pela mesma época. Mais informação e imagens aqui.

                Apontamentos, História, Olhares

                Papéis Roubados #10

                Henri Cartier-Bresson - «Roma» (1957)

                Logo no início de O Chalet da Memória, acabado de sair nas Edições 70, Tony Judt evoca as formas e os ritmos da austeridade vivida na Inglaterra do imediato pós-Segunda Grande Guerra. Aqui fica, no original em inglês, o capítulo «Austerity», mencionado no post anterior – que procura situar historicamente a defesa de uma certa frugalidade não consumista defendida por Judt – e publicado num número da New York Review of Books saído em Maio de 2010. A atualidade do tema, e logo o seu interesse, parecem evidentes.

                My wife earnestly instructs Chinese restaurants to deliver in cardboard cartons. My children are depressingly knowledgeable about climate change. Ours is an environmental family: by their standards, I am a prelapsarian relic from the age of ecological innocence. But who traipses through the apartment switching off lights and checking for leaking faucets? Who favors make-do-and-mend in an era of instant replacement? Who recycles leftovers and carefully preserves old wrapping paper? My sons nudge their friends: Dad grew up in poverty. Not at all, I correct them: I grew up in austerity.

                After the war everything was in short supply. Churchill had mortgaged Great Britain and bankrupted the Treasury in order to defeat Hitler. Clothes were rationed until 1949, cheap and simple “utility furniture” until 1952, food until 1954. The rules were briefly suspended for the coronation of Elizabeth, in June 1953: everyone was allowed one extra pound of sugar and four ounces of margarine. But this exercise in supererogatory generosity served only to underscore the dreary regime of daily life.

                To a child, rationing was part of the natural order. Indeed, long after the practice ceased, my mother convinced me that “sweets” (candy) were still restricted. When I protested that school friends appeared to have unlimited access to the stuff, she explained disapprovingly that their parents must be on the black market. Her story was all the more credible because the legacy of war was ever-present. London was pockmarked with bomb sites: where once there had been houses, streets, railway yards, or warehouses there were now large roped-off areas of dirt, usually with a dip in the middle where the bomb had fallen. By the early 1950s unexploded ordnance had been mostly cleared and bomb sites—though off-limits—were no longer dangerous. But these impromptu play spaces were irresistible for small boys. (mais…)

                  Memória, Recortes

                  Um ideal abandonado

                  Thomas MannÉ provável que passe despercebida nas livrarias, ou que apenas congregue o interesse de um pequeníssimo número leitores, uma obra de Rob Riemen chamada Nobreza de Espírito, um ideal esquecido (ed. Bizâncio). O título faz ressoar a defesa de um conceito presumivelmente gasto e fora de moda. O que até nem será de admirar se tivermos em conta que este ensaísta e filósofo holandês define como assumida inspiração para o seu trabalho a vida e a obra de Thomas Mann. E em 1955, quando desapareceu, Mann era já um homem de «outra época», que na derradeira palestra pública, «Os Anos da Minha Vida», decidira, contra a tendência que já se formava no horizonte, falar do ser humano como criatura una na diversidade, capaz de moldar o tempo e viver a vida cultivando-os, de forma autónoma, num sentido globalmente comum e forçosamente partilhado.

                  Mas ainda que possa corresponder a um ideal abandonado, seja o que for que possamos tomar por «nobreza de espírito» trata-se de algo, de uma escolha, de uma experiência, que apenas está ao alcance dos humanos. Irremediavelmente associada à fidelidade tenaz, necessariamente difícil porque requer coragem, a fatores que «nobilitam» – como verdade, liberdade, justiça e razão enunciados sem aspas – e, por isso mesmo, posta em causa sempre que se considera que valor algum tem uma dimensão universal, podendo caber, ainda que naturalmente adaptado a diferentes circunstâncias e distintas realidades, em qualquer tempo ou lugar. A relativização de todos os princípios e de todos os códigos, hoje imperante em muitas áreas do pensamento político, do saber científico, das práticas sociais ou do relacionamento entre os povos, tem feito desaparecer a afirmação de princípios gerais de entendimento, capazes de dotarem o humano de um sentido partilhado, solidário, que todos possam reconhecer e que a todos possa aproximar. Promovendo, de forma subtil mas contínua, um retorno histórico à sensibilidade pré-humanista, autárcica e anti-universalista que mergulha fundo na obscuridade medieval. Um ar do tempo que, no entanto, pode ser contrariado. O primeiro passo para o conseguir passará por uma compreensão das potencialidades da alternativa. Uma tarefa na qual, com este livro a contracorrente, Riemen procura participar.

                  Versão revista de um texto publicado na revista LER de Outubro de 2011.

                    Atualidade, Olhares

                    O (mau) exemplo dos seniores

                    A utilidade das movimentações de caráter desordenado, por vezes politicamente pueril, sem objetivos precisos ou uma capacidade de mobilização sustentada, é infinitamente superior à inação dos que se limitam ao lamento. Dos que esperam em vão que do céu caia uma dose de bom senso capaz de afetar quem realmente decide. Ou dos que só pensam agir quando «todas as condições» estiverem reunidas. Do editorial de João Garcia no último número da edição portuguesa do Courrier International.

                    Os «à rasca», os «indignados», os «99%» são movimentos confusos e difíceis de perceber – é verdade. Tanto repudiam os grandes patrões como homenageiam Steve Jobs. Como bem refere Heinz Bude, do Die Zeit, nas críticas ao sistema não vão mais longe do que proclamar que «o sistema é bom, mas perdeu significado: a economia tem de estar ao serviço das pessoas e não da finança». Mas reduzi-los a rebeldes urbanos, desprezar estes movimentos por falta de objetivos e ideologia é, uma vez mais, olhar para a árvore e não querer ver a floresta. Afinal, se os seniores não sabem para onde levam o mundo, o que se pode pedir aos juniores?

                      Atualidade, Recortes

                      Uma fotocopiadora, uma cela

                      Um estudo a correr no ISCTE, do qual acabam de ser reveladas algumas conclusões preliminares, aponta para a existência em Portugal de 500 postos de venda de livros fotocopiados. Refere-se apenas, muito provavelmente, a unidades comerciais que admitem como normal este tipo de prática, uma vez que serão em muito maior número as fotocopiadoras privadas ou em funcionamento em instituições de investigação e de ensino que, sem o admitirem, fazem diariamente cópias de livros, artigos ou capítulos de obras. Um dos responsáveis pelo estudo fala entretanto de um «efeito pernicioso no mercado». O resultado previsível da sua publicitação será com toda a probabilidade o reforço das medidas policiais e penais aplicadas em reprimir este género de prática. Mas as consequências sociais e culturais desta atitude serão devastadoras para a expansão do conhecimento e para a sustentação dos hábitos de leitura.

                      Mesmo entre aqueles portugueses que deveriam fazer da leitura o centro da sua vida ativa, sabe-se que ler não será uma prioridade para um grande número, mas a verdade é que a falta de investimento na aquisição de títulos pela maioria das bibliotecas, levando muitas vezes à inexistência sistemática de edições recentes e à presença de um só exemplar de cada título – ao que pode juntar-se a inexistência de uma política de stocks e de preços acessíveis nas livrarias – faz com que sem o recurso à fotocópia se torne rigorosamente impossível para a maioria aceder a obras indispensáveis para o padrão de atividade a que se dedicam. Os principais afetados serão, naturalmente, os estudantes, os professores e os investigadores. Ou os amantes de obras e de leituras raras. Dito de outra forma: sem livros fotocopiados, não existirão livros atualizados disponíveis para as necessidades. A solução que tenha em conta os interesses de editores, autores, livreiros e consumidores só pode passar por medidas equilibradas que atendam às necessidades de todos e por uma política do livro ágil, justa e democrática. Não pelo policiamento das fotocopiadoras e pelo decretar da miséria dos leitores.

                        Apontamentos, Atualidade

                        How I Learned to Stop Worrying

                        Peter Sellers

                        Um grupo de técnicos de uma unidade industrial de Amarillo, Texas, dependente da National Nuclear Security Administration, acaba de concluir o desmantelamento daquele que o governo norte-americano afirma ter sido o último exemplar da B-53. O objeto não era de todo inofensivo, uma vez que continuava a ser considerado a bomba termonuclear mais poderosa do mundo, seiscentas vezes mais potente do que a lançada sobre Hiroxima em 1945. Esta arma assustadora fora um produto demencial da fase mais quente da Guerra Fria, e tinha sido concluído de forma acelerada, no início dos anos sessenta, na altura da Crise dos Mísseis de Cuba. A B-53, carinhosamente apelidada de Big Dog pelos militares que a haviam concebido com o objetivo de exterminar parte da humanidade, destinara-se a ser lançada de bombardeiros estratégicos de longo alcance B-52. Era capaz de rebentar com bunkers e de enviar ondas de energia através do solo semelhantes às dos sismos, fazendo desaparecer grupos de cidades ou países inteiros, e desimpedindo de vez o uso dos botões vermelhos da Casa Branca e do Kremlin. Despoletando então a batalha final, o dia antes do «day after», o fim dos tempos, esse Armagedão que, com forte sentido de realismo, Stanley Kubrick desenhou em 1964 na sequência derradeira do filme Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (em Portugal Dr. Estranho Amor ou: Como Aprender A Deixar De Me Preocupar E A Amar A Bomba). No entanto, este gesto simbólico da administração americana não parece suscitar agora qualquer sentimento de alegria, alívio ou segurança, surgindo nas notícias como uma simples curiosidade. Na realidade, todos sabemos que a indústria da guerra foi entretanto inventando outros meios menos espetaculares, menos definitivos, mas mais insidiosos e eficazes de gestão do medo e do poder. Por isso este objeto estrondoso pode muito bem ser abatido sem danos de maior para a atual ordem do mundo.

                          Apontamentos, Cinema, Memória, Olhares

                          Trabalho de casa

                          Há alguns dias deixei no meu mural do Facebook uma ligação para um post de J. Rentes de Carvalho publicado no Tempo Contado. A propósito da atual crise e da necessidade de muitos portugueses de classe média cortarem nas despesas correntes, referia-se aí o recurso imoderado aos serviços das chamadas mulheres-a-dias como sinal de um certo desperdício e de menosprezo pelo trabalho manual recorrente entre muitos de nós. A partir desse texto, abriu-se então uma conversa que divergiu em algumas direções: a necessidade ou o direito a fruir de trabalho manual pago, a relação entre esse tipo de serviço e o complexo horário de trabalho de quem a ele recorre, ou o modo como ele é importante para a economia doméstica das pessoas que dele fazem o seu meio de vida. No entanto, talvez tenha passado um pouco ao lado da discussão aquela que me pareceu ser a intenção do autor e a razão pela qual chamei a atenção para o que ele escrevera no seu blogue. Sublinho: a desvalorização do trabalho manual que afasta do horizonte de muita gente a simples possibilidade de sacudir uma passadeira, de cozinhar o seu próprio almoço ou de limpar o quarto de banho que sujou.

                          O tema é tanto mais pertinente quanto se sabe que no norte da Europa – objetivamente mais rico, com mais pessoas de vida desafogada – esse tipo de serviço é usado apenas em situações especiais, não diria raríssimas mas bastante limitadas. Além disso, trata-se por ali de um serviço muito bem pago. No seu post, o escritor invocava o caso holandês e a influência da ética calvinista, que conhece diretamente, mas poderíamos alargá-lo a outros exemplos e tradições. Ao seu comentário, que não será indiscutível mas no essencial faz para mim todo o sentido, posso entretanto juntar um outro. O costume da casa burguesa arrumada todos os dias, com tudo no seu lugar, os metais a brilhar e o ambiente a cheirar a limpeza recente, é típico das classes média e alta do sul da Europa. Um estudo sociológico recente que me foi relatado – não tenho a referência completa mas a pessoa que me falou dele merece confiança – refere a forma como essa obsessão cultural pela limpeza irrepreensível é responsável até pelo agravamento, em alguns países, das condições de trabalho das chamadas donas de casa, por sua causa forçadas a uma sobrecarga de trabalho. É possível cartografar esta situação: Portugal, a Espanha, o sul de França, a Itália. A ética católica será aqui irrelevante, uma vez que a Irlanda não participa deste culto do detergente e do espanador. No norte, de facto, ninguém se incomoda tanto em ter de tirar uma pilha de papéis de cima de uma cadeira para se sentar ou receber as visitas. Ou de ter os brinquedos dos miúdos espalhados pela casa. Ou de reparar em que está um pouco mais de pó sobre o parapeito. Não sei se não teremos de nos adaptar rapidamente a tais hábitos.

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                            Dois novos romances

                            Dois novos romances no mercado português, e por estes lados em fila de leitura, que tomam como argumento, a partir de circunstâncias geográficas e históricas muito diferentes, e com uma dimensão literária também ela desigual, o mesmo tema e o mesmo cenário da transformação do poder despótico, exercido em nome de «grandes causas», num fator incontrolável de horror e de arbitrariedade sobre as pessoas das quais se vai servindo e que vai triturando. Comissão das Lágrimas, de António Lobo Antunes (Dom Quixote), referindo os acontecimentos vividos numa Angola pós-independência em redor do golpe (e do contragolpe) de 27 de maio de 1977, e O Epigrama de Estaline, de Robert Littell (Civilização; original de 2009), sobre o combate sem futuro e o fim trágico do poeta e ensaísta russo Osip Mandesltam, merecem ambos a maior atenção. Nos episódios e circunstâncias históricas mencionados, omnipresente a sombra da cumplicidade e da cobardia dos intelectuais que se traíram a si próprios compactuando com a violência e servindo a tirania. Para desta receberem o respetivo prémio ensopado em sangue.

                              Atualidade, Democracia