Arquivo de Categorias: Atualidade

Sectarismo, fanatismo e combate cultural

O tema desta crónica ganha relevância nos tempos que correm, quando os dois grandes campos do combate político global dos últimos dois séculos, o da democracia e o do autoritarismo, se defrontam como não se via desde o final da Segunda Guerra Mundial. Como formas próprios de relacionamento de cada indivíduo com os seus semelhantes, o sectarismo e o fanatismo expandem-se como flagelos que cruzam a história e, no mundo atual, tendem a toldar a lucidez e a reforçar os projetos que sustentam ou preparam tiranias. Para serem contrariados, importa observar como funcionam, mas também de que modo se instalam no nosso dia a dia e no universo do combate político. 

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    E agora, América? (cinco notas soltas)

    1 – O que aconteceu ontem, dia 5 de novembro de 2024 – fixemos a data, pois ela será marcante e traumática – nas eleições presidenciais dos Estados Unidos da América, foi bem além daquilo que a generalidade dos observadores e comentadores tinham previsto. A vitória de Donald Trump não foi sequer tangencial, contrariando a generalidade das sondagens e das expetativas de quem, dentro e fora da nação fundadora da democracia moderna, jamais previu pelo menos uma folga destas. Ela coloca aos norte-americanos, e também a todo o planeta, problemas associados ao que se antevê ser uma viragem abrupta no entendimento da democracia liberal, no equilíbrio entre os Estados, nas dinâmicas da cidadania e na vida das pessoas comuns.

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      Israel, os EUA e os problemas de visão

      É totalmente incompreensível alguém coerente e simultaneamente democrata e de esquerda não preferir, nas eleições presidenciais nos EUA deste dia 5, que Kamala Harris derrote Trump apenas porque ela não tem a posição sobre Israel e a Palestina que gostariam que tivesse (e eu também provavelmente gostaria). Vamos ser claros: Kamala, na senda de Joe Biden, não tem uma posição coerente e clara sobre o tema, condenando abertamente Israel e afirmando claramente que defende a independência da Palestina. Mas mostra uma abertura ao diálogo sobre o mesmo, e uma condenação formal da política de genocídio, que Trump, já apoiado formalmente por Netanyahu, de todo exclui, preferindo estar do lado dos falcões israelitas. Além disso, torna-se evidente que, se a candidata democrata exibisse uma posição inflexível de imediata rutura com Tel Aviv, nem precisaria ir a votos, pois seria esmagada nas urnas pelos eleitores. Custa muito compreendê-lo? Fazer política com alcance e visão jamais é mover peças num simples tabuleiro de jogo de damas.

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        A América também é aqui

        Há cerca de vinte anos, quando passei a ter nas aulas muitos estudantes brasileiros, reparei no grande desconforto que sentiam de cada vez que me referia aos Estados Unidos apenas como «a América». É um velho hábito europeu que ecoa um costume dos norte-americanos, transformando a palavra em conceito gerador de uma identidade transversal a ambos os lados do Atlântico. Como surgiu referido, em sentidos diversos vinculados a esse referente único, em Mon oncle d’Amérique, o filme de Alain Resnais, na canção pessimista This is not America, de David Bowie e Pat Metheny, ou sobretudo em God Bless America, o conhecido hino composto em 1918 por Irving Berlin, usado pela propaganda patriótica americana durante e após a Segunda Guerra Mundial. 

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          Ainda a necessidade e o perigo das vanguardas

          A palavra vanguarda é usada no vocabulário comum como metáfora de origem militar que alude ao destacamento especial dos exércitos destinado, durante as campanhas, a seguir muito à sua frente, tendo por objetivo reconhecer os caminhos que deveriam percorrer, observar melhor as forças do inimigo e realizar pequenas incursões destinadas a feri-lo ou a testá-lo. Atualmente a designação é associada a indivíduos, a experiências e a movimentos que, nos planos vivencial, estético, filosófico ou político, se mostram bem à frente das sociedades de onde emergem, propondo, ensaiando e materializando vias e dimensões caraterizadas pela ousadia, pela raridade e pelo pioneirismo.

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            O partido da triste figura

            Tenho escutado isto menos, mas durante décadas o Partido Ecologista Os Verdes foi entre nós sistematicamente apelidado de partido-melancia. Como esta, verde por fora e vermelho por dentro. Na verdade, tratou-se sempre, praticamente desde a sua fundação em 1982, e mais acentuadamente nos últimos anos, de um agrupamento satélite criatura do PCP, com a utilidade prática de agregar uns poucos votos de pessoas sensíveis à temática ecologista – pessoas com dificuldade em reparar que existem partidos, como o Livre, o PAN ou mesmo o BE, mais consequentes e ativos neste domínio – e sobretudo de justificar a formação de uma frente eleitoral designada «unitária», colocando nos boletins eleitorais, ao lado da foice e do martelo, um belíssimo girassol estilizado.

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              O 7 de outubro

              A 7 de outubro, quando se comemora o primeiro dia da era judaica, iniciada a 3761 AEC, completou-se um ano sobre o ataque do Hamas, lançado principalmente sobre alguns kibbutzim próximos da faixa de Gaza, aldeias comuns limítrofes e um festival de música para jovens, dele resultando de imediato o assassinato de cerca de mil israelitas, o rapto de perto de 250, muitos idosos e crianças, a violação de dezenas de mulheres, e um grande número de civis feridos. Teresa de Sousa chama-lhe «o maior massacre de judeus desde o Holocausto».

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                Embuste e menosprezo do saber contra a democracia 

                Apesar dos seus riscos e defeitos, uso com regularidade as redes sociais. São múltiplos os motivos: manter um contacto regular com algumas pessoas, divulgar ou saber de iniciativas, difundir artigos de opinião, saber de livros, séries e filmes, chegar na hora a notícias importantes, conhecer mais e de uma forma mais plural, e sobretudo tomar o pulso ao mundo em perpétua e rápida mudança. Elas podem ainda aproximar-nos de universos novos ou que geralmente desconhecemos. Por isso, digo a quem não as utiliza ou as abandonou, devido sobretudo ao excessivo ruído e à ocasional violência, que fazem mal e talvez delas não se tenham servido de um modo eficaz e necessariamente seletivo. 

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                  O beijo na face como pecado venial 

                  Pertenço à geração que recuperou, naturalizou e tomou como sua a prática convivial do beijo na face, fazendo dela uma forma habitual e partilhada de saudação ou uma expressão de amizade. Apesar de, devido aos interditos impostos por um padrão de masculinidade, dominante no ocidente, fora da família ele se mantivesse muito menos comum entre os homens, a partir dos anos sessenta do século XX passou a representar uma conquista no processo em aberto de aproximação entre corpos que anteriormente pouco se tocavam em público ou o faziam de uma forma por regra cerimonial. Associado à nova cultura urbana e libertária triunfante no pós-Segunda Guerra Mundial, o beijo na face, como também o uso mais público daquele dado na boca, transformou-se num emblema de informalidade democrática.

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                    Por Olivença, «marchar, marchar»?

                    Há bastantes anos, conheci um rapaz que durante algum tempo insistiu em que eu me inscrevesse como fiel «Amigo de Olivença». Isto é, que me tornasse militante da causa dos que pretendem repor a soberania portuguesa e alentejana sobre aquela cidade raiana da Estremadura espanhola. Apesar de reconhecer a legitimidade do retorno de um território que, após a assinatura pela Espanha, em 1817, do tratado de Viena, esta reconheceu como português, não me pareceu causa sequer longinquamente prioritária, pelo que recusei aquela aproximação, passando até a referir privadamente o episódio como piada.

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                      O mito das criancinhas e Trump

                      Ao longo de décadas, um dos mais utilizados mitos usados por governos e partidos de orientação anticomunista foi a divulgação – a par de lendas sobre imaginárias injeções letais atrás da orelha impostas aos idosos – de que sob os regimes controlados pelos comunistas estes, por mera perversão, «comiam criancinhas ao pequeno almoço». A influência do mito foi tão forte e de tal modo transversal que ainda por volta de 1977 estive em debates em aulas onde alunos universitários, meus colegas à época, defendiam a veracidade desta ideia mirabolante.

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                        Excesso de presente e usos da história

                        O historiador François Hartog chamou «presentismo» a uma forma de encarar o tempo que desvaloriza o passado e despreza o futuro como dimensões da experiência humana, valorizando apenas o presente. Para quem a assume, esquece-se o que ficou para trás e apagam-se as utopias abertas ao futuro, visto como mera repetição da realidade atual, instalando-se a descrença na hipótese de mudanças substantivas. Resta então o presente como modo de orientação no tempo, tomando-se o anteriormente vivido como uma névoa ou uma sombra, e encarando-se o que virá sem réstia de esperança. Os «presentistas» habitam, pois, um eterno presente, que julgam o único lugar do possível. Uma perceção que não cai do céu, mas resulta da conjugação de cinco fatores. 

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                          Cegueira política e eleições nos EUA

                          Li ontem, no Público, um artigo de opinião Alexandra Lucas Coelho sobre a convenção dos democratas norte-americanos, pejorativamente intitulado «Kamalas, Obamas, Tonys & Tims: o espetáculo da América que arma a guerra», que é claro sinal de um posicionamento desastroso e irrealista face à política norte-americana e aos seus reflexos no mundo. Lamento dizê-lo, pois, apesar de com frequência pautado pelo viés do sempre restritivo «wokismo», gosto geralmente daquilo que, em diferentes géneros, a autora escreve.

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                            Kamala e a América

                            A noite passada, madrugada aqui em Portugal, o discurso de aceitação de Kamala Harris, perante a Convenção do Partido Democrata, como candidata à presidência dos EUA, foi, como seria de esperar, um excelente exercício de determinação e de retórica, recebido no centro de congressos de Chicago com um enorme entusiasmo e de forma triunfal. Se tivesse, como um certo presidente da República, a incumbência de atribuir notas de 0 a 20 no domínio da oratória, se a Barack e Michelle Obama teria atribuído, sem pestanejar, a ambos um 20, a Kamala dou sem qualquer dúvida um 19. Mas os Obama são, de certa forma, seres de outro planeta no campo da capacidade de comunicação, enquanto a afirmativa candidata democrata ainda pertence ao domínio do humano.

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                              As vidas, as obras e a complexidade de tudo

                              De tempos a tempos, quando por alguma razão – seja uma polémica, um prémio recebido ou o seu desaparecimento físico – se destacam nos jornais ou nas redes sociais figuras com um recorte público, é fácil surgirem arrebatados testemunhos, sejam os de quem apenas as elogia ou, no lado oposto, aproveita o momento para as denegrir. Umas e outras tendem a desvalorizar a complexidade do humano e o facto, sem exceções, de jamais alguém ter apenas realizado coisas formidáveis ou só cometido erros, oferecido unicamente beleza ou defendido ideias detestáveis. E, todavia, um grande número de pessoas tende a olhar as demais, sobretudo aquelas que se destacam da mediania, apenas sob uma perspetiva unívoca, dividindo-as de forma, singelamente dualista, apenas em indiscutivelmente «boas» e inequivocamente «más». 

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                                O drama venezuelano e nós

                                Ontem, chegadas as notícias sobre a «vitória» de Maduro, por 51% dos votos – que este afirmou ter sido «por KO» – reparei nos primeiros países a reconhecê-la: Nicarágua, Cuba e Rússia. Onde, como se sabe, as eleições são apenas plebiscitos controlados. Calculei que a posição fosse secundada pelo PCP e fui procurá-la, mas por duas horas acreditei que um vento de bom senso teria introduzido alguma ponderação. Ao início da tarde, porém, saiu o previsível comunicado, na habitual língua de madeira: «O PCP saúda a eleição de Nicolás Maduro como Presidente da República Bolivariana da Venezuela, bem como o conjunto das forças progressistas, democráticas e patriotas venezuelanas. O PCP (…) condena a reacção do Governo português, alinhada com a política de ingerência dos EUA e da UE e quantos procuram animar a campanha promovida pela extrema-direita golpista.»

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                                  Americanismo, antiamericanismo e eleições nos EUA

                                  Born in The U.S.A. não é, nem de perto para o meu gosto, a melhor canção de Bruce Springsteen, mas sirvo-me de uma estrofe sua. Nela proclama o músico de New Jersey: «À sombra da penitenciária / Junto às chamas da refinaria / Há dez anos a arder na estrada / Sem lugar para onde ir ou fugir». O registo é habitual numa importante tradição da cultura popular norte-americana que celebra o indivíduo comum, a quem nada é oferecido e que, numa sociedade selvagem, jamais pode dar por seguro o dia de amanhã. Resta-lhe continuar o caminho e a sua luta diária. Muitos rapazes de várias gerações e diferentes continentes (e algumas raparigas, também), cedo conviveram com esta lírica do desespero que, «nascida na América», alimentava um imaginário de aventura, feito de travessias entre lugares inóspitos e conflitos fatais, em busca de um mundo mais justo. 

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                                    Um mapa «da Palestina» negativo e danoso

                                    Está a circular profusamente pelo Facebook e outras redes sociais, deixado inclusive por pessoas que muito prezo ou de quem sou amigo, e que acredito terem sobre o tema posições mais equilibradas e racionais, e não apenas emotivas e epidérmicas, um suposto mapa «da Palestina», legendado em árabe e na perspetiva do Hamas, destinado a celebrar o combate do povo palestiniano pela sua independência. A causa é, sem qualquer dúvida, justíssima, para mais nesta altura tão dramática para a população de Gaza, e essa lembrança é adequada. O mapa em causa, todavia, além de estar manifestamente errado, por muito incompleto, parte de um pressuposto político, vindo de determinado grupo, que é negativo e danoso para a própria causa palestiniana.

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