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Cegueira «pela paz»

A ideia peregrina, partilhada pelos ditadores Trump e Putin, ambos referendados em eleições manipuladas – no segundo caso, realizadas também sob forte repressão dos opositores – de colocar como condição para a paz na Ucrânia a realização de «eleições democráticas» é assombrosa. Obviamente, em plena situação de guerra, com territórios ocupados, sem condições para a afirmação de todas as correntes, dada a necessária proibição de partidos que são quintas-colunas do Kremlin, como o PC ucraniano, dessas eleições resultaria a definitiva divisão do país, com as áreas ainda controladas militarmente pelos russos a ficarem legitimadas. Seria também uma humilhação e um gesto de traição em relação às dezenas de milhares de homens e de mulheres que se bateram e morreram pela liberdade do seu país.

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    Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

    Isto não é a América

    Existe uma tendência, alojada num setor do complexo campo da esquerda – ao qual pertenço, «apesar de mim, apesar dela», como sobre esta pertença escreveu Camus –, pautada por uma rejeição cultural, política e vivencial de quase tudo o que chega dos Estados Unidos. Um antiamericanismo visceral e persistente que possui uma razão de ser. Esta começa pela ambição imperial dos EUA, responsável por uma política externa tantas vezes agressiva, violadora dos direitos dos povos e apoiante de ditaduras, e termina na articulação dessa avidez com formas selvagens de liberalismo económico. Ajustando ao tempo o pensamento de Marx, Lenine, que por vezes acertava nas observações, classificou mesmo o imperialismo norte-americano como a «etapa superior do capitalismo», fundada no poderio do setor financeiro.

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      Cartola «coimbrinha»

      A cartola foi um chapéu masculino de aba estreita e copa alta, usado durante décadas, na segunda metade do século XIX e inícios do seguinte, como um sinal de estatuto social e económico. Porém, cedo começou também a ser bastante caricaturada, seja pela propaganda anticapitalista, que nela via um símbolo da opressão, quer pelas formas de sátira social, que a chamavam de «chaminé» e nela viam, crescentemente, um sinal de estúpida sobranceria e uma marca de desigualdade tantas vezes de todo inadequada ao figurão, ou à figurinha, que a utilizava no parecer.

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        Direito à diferença e dever de partilha

        Tomo como princípio jamais comentar de forma pública declarações desta ou daquela personagem sem primeiramente as escutar/ler e as situar em contexto. Livro-me assim de cair em apriorismos, determinados pela simpatia ou pela desconfiança, e sobretudo de ser injusto, contribuindo ao mesmo tempo para a vaga, hoje crescente e avassaladora, de desinformação. Vem isto a propósito das declarações de Pedro Nuno Santos ao semanário Expresso, logo usadas, inclusivamente por militantes socialistas, para o acusar de «cedências ao Chega» na questão da imigração. Lido agora, finalmente, aquilo que o secretário-geral do PS disse, no meio de muitas outras coisas, nada tenho a questionar neste particular. Afirmar «Quem procura Portugal para viver e trabalhar tem de perceber que há uma partilha de um modo de vida, uma cultura que deve ser respeitada», no contexto, não exclui o respeito pela diversidade, apenas colocando esse respeito de ambos os lados do binómio no qual ela se põe. Só não vê isto quem por cegueira não quer, quem fala sem saber de quê ou quem considera que a diferença é um valor «em si», respeitável mesmo que contraria direitos básicos que são necessariamente partilha de todos.

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          A nova oligarquia e o imperativo de lhe resistir 

          A propósito da tomada de posse de Donald Trump, escreveu a jornalista Teresa de Sousa a dado passo: «O mais significativo foi, sem dúvida, a presença em lugar de destaque dos três homens mais ricos do mundo, que são também os donos de gigantes tecnológicas – Egon Musk, Mark Zuckerberg e Jeff Bezos. A nova “oligarquia tecnológica” de que falava Joe Biden no seu discurso de despedida. Também é justo lembrar que representam empresas extraordinariamente inovadoras que, por alguma razão, nasceram todas nos Estados Unidos. Na Europa os mais ricos ainda estão na anterior revolução tecnológica, dos automóveis ou dos aviões.» Uma aproximação, inevitavelmente simplificada, a uma nova dimensão da realidade mundial com a qual temos de conviver.

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            Não, não é «tudo igual»

            Bastou um dia de presidência Trump para começarem a ser revolvidos na América, de alto a baixo, os fundamentos do Estado de direito e das relações com o resto do mundo. Não é preciso mostrar aqui o rol das medidas, chegando uma consulta aos títulos sonantes dos jornais. Uma situação calamitosa que, ao mesmo tempo e infelizmente, desmascara quem, associado a uma franja estreita e bem identificada do nosso sistema político, dita «progressista», considera que por ali «é tudo igual», tudo fazendo para não distinguir as duas Américas, e os dois mundos, que estão abertamente em confronto. Mais, considera até, na sua cegueira sectária, que a atual situação «engana menos». Visível em certos blogues e em algumas páginas de redes sociais, é gente que dificilmente se encontra em condições de integrar a imprescindível frente mundial anti-Trump e anti-Musk, ou, na sua interpretação arcaica e rígida da história e do mundo atual, o decide fazer sem aliados fortes e do lado errado. Amarrados a uma verdade revelada ou à sua caricatura, não aprendem e não querem aprender.

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              Maldição e necessidade de opinar de forma pública

              Este artigo contém uma vertente autobiográfica. Tem como tema a experiência da crónica como género literário, com o qual, na páginas deste jornal e em outros espaços públicos, regularmente evoco determinados temas ou discuto problemas da atualidade. Como forma necessariamente abreviada e efémera de comunicação, a crónica é geralmente uma narração curta, com um objetivo pré-determinado da parte de quem a escreve, ligando-se sempre à realidade do quotidiano e apresentando uma visão tão informada quanto pessoal e subjetiva dos assuntos que aborda. Atravessou séculos como simples relato de acontecimentos dispostos em ordem cronológica, mas no século XIX, com o progresso das ideias democráticas e a expansão da imprensa, evoluiu no registo, que passou do meramente descritivo e informativo para o opinativo e crítico, entre nós já usado n’As Farpas de Eça e de Ramalho.

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                O «espírito do tempo» e a utopia contra o pessimismo

                Na passagem de cada ano para o seguinte tornou-se um hábito realizar balanços do que finda e anunciar planos, desejos ou previsões para o que vai começar. Neles se misturam dados objetivos, impressões ou simples anseios, sejam estes coletivos ou mais pessoais, em registos que se distinguem consoante quem os enuncia e partilha, conforme a sociedade onde vive, ou, de uma forma decisiva, de acordo com o «espírito do tempo» em que os formula. Sirvo-me aqui dessa expressão, surgida com Herder e os românticos alemães, e particularmente pensada e divulgada por Hegel na Fenomenologia do Espírito, de 1807, usada para identificar e dar consistência ao clima político, sociológico e cultural que, em escala ampla e dinâmica, domina e determina uma dada época. 

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                  O papel das claques no futebol e na política

                  Nas últimas décadas, as claques de futebol, originalmente concebidas como grupos organizados de apoiantes que iam aos jogos do seu clube favorito apenas para o apoiarem, para conviverem e para se divertirem, transformaram-se em fatores de preocupação e de sobressalto público. As ligadas às agremiações mais populares e antigas são geralmente as mais perigosas, pois não só são maiores como incorporam modos de cultura tribal, associados a práticas, símbolos e padrões de discurso que lhes são próprios, agora claramente pautados pela violência. Legalizadas ou não, nelas se afirmam cada vez mais, a par daquela dimensão lúdica e festiva, formas de coação sobre outros, além de processos orgânicos que têm transformado algumas, ou pelo menos os seus setores «ultras», em instrumentos do crime organizado.

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                    Olhares sobre a Síria

                    Existem muitas dúvidas sobre o que acontecerá de seguida na Síria, com o país ainda a permanecer a manta de retalhos que já era sob Al-Assad. Não é difícil prever uma situação caótica, como a que ocorreu no Iraque e na Líbia. E pouco se espera de alguns setores até agora rebeldes. Para já, todavia, compreende-se o júbilo dos refugiados sírios no exílio, forçados a fugir, aos milhões, pelas forças governamentais ajudadas pela Rússia e pelo Irão. E só pode ser positiva a libertação das dezenas de milhares de presos políticos, saídos das prisões mais inumanas que é possível conhecer. Não reconhecer isto, como já pode ler-se por aí, em especial nas redes sociais, não diz grande coisa de quem o faz. Sobre aquilo que virá, veremos na altura própria.

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                      Não, em política os extremos não se equivalem

                      Integra a argumentação de pessoas pouco conhecedoras da história contemporânea, ou de setores moderados, em especial os mais conservadores, a noção de que os grupos e movimentos radicalizados, situem-se estes à esquerda ou à direita, se equivalem na rejeição da democracia e na defesa da força e do conflitos como instrumentos decisivos da vivência coletiva. Esta ideia tem provocado, em diferentes momentos e lugares, equívocos muito grandes a propósito da forma, apontada como «análoga», que esses setores, apesar de situados em campos diametralmente opostos, exibem dentro de sociedades plurais e democráticas onde procuram afirmar-se. Trata-se de um juízo errado e perigoso.

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                        Sectarismo, fanatismo e combate cultural

                        O tema desta crónica ganha relevância nos tempos que correm, quando os dois grandes campos do combate político global dos últimos dois séculos, o da democracia e o do autoritarismo, se defrontam como não se via desde o final da Segunda Guerra Mundial. Como formas próprios de relacionamento de cada indivíduo com os seus semelhantes, o sectarismo e o fanatismo expandem-se como flagelos que cruzam a história e, no mundo atual, tendem a toldar a lucidez e a reforçar os projetos que sustentam ou preparam tiranias. Para serem contrariados, importa observar como funcionam, mas também de que modo se instalam no nosso dia a dia e no universo do combate político. 

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                          E agora, América? (cinco notas soltas)

                          1 – O que aconteceu ontem, dia 5 de novembro de 2024 – fixemos a data, pois ela será marcante e traumática – nas eleições presidenciais dos Estados Unidos da América, foi bem além daquilo que a generalidade dos observadores e comentadores tinham previsto. A vitória de Donald Trump não foi sequer tangencial, contrariando a generalidade das sondagens e das expetativas de quem, dentro e fora da nação fundadora da democracia moderna, jamais previu pelo menos uma folga destas. Ela coloca aos norte-americanos, e também a todo o planeta, problemas associados ao que se antevê ser uma viragem abrupta no entendimento da democracia liberal, no equilíbrio entre os Estados, nas dinâmicas da cidadania e na vida das pessoas comuns.

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                            Israel, os EUA e os problemas de visão

                            É totalmente incompreensível alguém coerente e simultaneamente democrata e de esquerda não preferir, nas eleições presidenciais nos EUA deste dia 5, que Kamala Harris derrote Trump apenas porque ela não tem a posição sobre Israel e a Palestina que gostariam que tivesse (e eu também provavelmente gostaria). Vamos ser claros: Kamala, na senda de Joe Biden, não tem uma posição coerente e clara sobre o tema, condenando abertamente Israel e afirmando claramente que defende a independência da Palestina. Mas mostra uma abertura ao diálogo sobre o mesmo, e uma condenação formal da política de genocídio, que Trump, já apoiado formalmente por Netanyahu, de todo exclui, preferindo estar do lado dos falcões israelitas. Além disso, torna-se evidente que, se a candidata democrata exibisse uma posição inflexível de imediata rutura com Tel Aviv, nem precisaria ir a votos, pois seria esmagada nas urnas pelos eleitores. Custa muito compreendê-lo? Fazer política com alcance e visão jamais é mover peças num simples tabuleiro de jogo de damas.

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                              A América também é aqui

                              Há cerca de vinte anos, quando passei a ter nas aulas muitos estudantes brasileiros, reparei no grande desconforto que sentiam de cada vez que me referia aos Estados Unidos apenas como «a América». É um velho hábito europeu que ecoa um costume dos norte-americanos, transformando a palavra em conceito gerador de uma identidade transversal a ambos os lados do Atlântico. Como surgiu referido, em sentidos diversos vinculados a esse referente único, em Mon oncle d’Amérique, o filme de Alain Resnais, na canção pessimista This is not America, de David Bowie e Pat Metheny, ou sobretudo em God Bless America, o conhecido hino composto em 1918 por Irving Berlin, usado pela propaganda patriótica americana durante e após a Segunda Guerra Mundial. 

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                                Ainda a necessidade e o perigo das vanguardas

                                A palavra vanguarda é usada no vocabulário comum como metáfora de origem militar que alude ao destacamento especial dos exércitos destinado, durante as campanhas, a seguir muito à sua frente, tendo por objetivo reconhecer os caminhos que deveriam percorrer, observar melhor as forças do inimigo e realizar pequenas incursões destinadas a feri-lo ou a testá-lo. Atualmente a designação é associada a indivíduos, a experiências e a movimentos que, nos planos vivencial, estético, filosófico ou político, se mostram bem à frente das sociedades de onde emergem, propondo, ensaiando e materializando vias e dimensões caraterizadas pela ousadia, pela raridade e pelo pioneirismo.

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                                  O partido da triste figura

                                  Tenho escutado isto menos, mas durante décadas o Partido Ecologista Os Verdes foi entre nós sistematicamente apelidado de partido-melancia. Como esta, verde por fora e vermelho por dentro. Na verdade, tratou-se sempre, praticamente desde a sua fundação em 1982, e mais acentuadamente nos últimos anos, de um agrupamento satélite criatura do PCP, com a utilidade prática de agregar uns poucos votos de pessoas sensíveis à temática ecologista – pessoas com dificuldade em reparar que existem partidos, como o Livre, o PAN ou mesmo o BE, mais consequentes e ativos neste domínio – e sobretudo de justificar a formação de uma frente eleitoral designada «unitária», colocando nos boletins eleitorais, ao lado da foice e do martelo, um belíssimo girassol estilizado.

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                                    A 7 de outubro, quando se comemora o primeiro dia da era judaica, iniciada a 3761 AEC, completou-se um ano sobre o ataque do Hamas, lançado principalmente sobre alguns kibbutzim próximos da faixa de Gaza, aldeias comuns limítrofes e um festival de música para jovens, dele resultando de imediato o assassinato de cerca de mil israelitas, o rapto de perto de 250, muitos idosos e crianças, a violação de dezenas de mulheres, e um grande número de civis feridos. Teresa de Sousa chama-lhe «o maior massacre de judeus desde o Holocausto».

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