Arquivo de Categorias: Atualidade

A crise e o escrutínio

1. É imprudente, e apenas resultado da ambição de poder ou de cegueira política, exigir eleições antecipadas neste momento. João Miguel Tavares, de quem habitualmente divirjo (e muito), explica porquê: o PS detém uma maioria absoluta no Parlamento; existe uma altíssima probabilidade de as próximas eleições virem a produzir uma solução governativa muito mais instável do que a actual; o PRR, com um Governo em gestão e meses de campanha eleitoral, poderá nunca vir a ser executado na totalidade; a TAP e o aeroporto ficarão congelados; a entrada em vigor do Orçamento do Estado será posta em causa; o PS não terá tempo para assimilar o que lhe aconteceu; e o PSD e a comunicação social não terão tempo para escrutinar Luís Montenegro e a sua equipa.

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    Apontamentos, Atualidade, Democracia, Opinião

    António Costa

    Em especial nos tempos mais próximos, discordei de algumas opções políticas e de certas escolhas processuais de António Costa. Penso que essa usura do poder que, em regra, ao fim de um certo tempo vai afastando quem governa de quem é governado, por alguns tomada como inevitável, o foi afetando também. Não esqueço, todavia, o que lhe devo como a pessoa que em primeiro lugar, num gesto de ousadia política, nos libertou do governo de direita Passos-Portas-Troika, e do estado de empobrecimento e de depressão coletiva em que este desgraçado trio tinha mergulhado o país. Perante as circunstâncias – que mais parecem configurar uma espécie ‘sui generis’ de golpe de Estado – compreendo que não tivesse outra solução além daquela que escolheu, mas como não sou ingrato ou esquecido, nesta hora de despedida agradeço-lhe ter-nos devolvido o país. [Originalmente no Facebook]

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      Essa palavra «vingança»

      Não existe palavra mais rude que «vingança». Ela traduz a resposta a uma afronta com outra afronta, mesmo quando não está na nossa índole fazê-lo. Pelo início do século XVII, o filósofo Francis Bacon descreveu-a como «justiça selvagem», capaz de «ofender a lei e atirá-la para a rua». Pode ter uma dimensão pessoal, mas a sua modalidade mais imoderada é a de grupo, pois aqui não é pontual, funcionando por meio de de ciclos longos de desafio e retaliação, realizados por famílias e clãs, ou por tribos e etnias, muitas vezes sob a forma de «vendeta de sangue». Pode também ser lançada por setores animados por doutrinas intransigentes de teor religioso, filosófico ou político, em larga medida dinamizadas pela ira e pelo ódio a quem as procure contrariar. 

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        Atualidade, Democracia, Direitos Humanos

        O tal mapa de 1947

        A propósito do mapa da Palestina que anda por aí a ser reproduzido, datado de 1947, um ano antes da fundação do Estado de Israel, destinado a «provar» que não existia ali nenhum território chamado Israel. Desde já, isto não é verdadeiro, pois a designação existe na região há pelo menos três mil e trezentos anos. O primeiro registo histórico do termo Israel surge na Estela de Merneptá, documento epigráfico que celebra as vitórias militares do faraó Merneptá, datado do final do século XIII a.C. Depois, os judeus nunca deixaram de habitar a região, apesar de terem recomeçado a afluir em maior quantidade sensivelmente a partir de 1850, e mais ainda após o Holocausto. Depois ainda, toda aquela região, no mapa genericamente designada Palestina – na origem «terra dos filisteus» -, é uma manta de retalhos cultural, política, linguística e religiosa, combinada com traços comuns a todos os povos, incluindo judeus e palestinianos. Israel é também plural, apesar dos esforços dos conservadores belicistas e da extrema-direita sionista para o impedir. Finalmente, e para não cansar: imediatamente antes da independência de Israel o território, que havia sido controlado durante séculos pelo Império Otomano, era-o pela Grã-Bretanha. Situação colonial que se vivia na data do tal mapa. Quando não sabemos ou não queremos saber, um direito que nos assiste, o melhor é não falarmos à toa.
        [Originalmente no Facebook]

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          Uma situação editorial incompreensível

          Sou dos que se formaram e viveram grande parte da vida na cultura do livro e do papel, sabendo, todavia, que já se torna difícil, quando não impossível, acompanhar o mundo de hoje de uma forma próxima e atualizada se nos cingirmos a ela. Como sei que para a larga maioria das pessoas mais jovens, sobretudo no mundo industrializado, em boa parte ela já foi totalmente substituída. Porém, apesar de ter vindo nos últimos anos a doar boa parte da minha biblioteca física, ainda tenho perto de 12 mil volumes, sendo, ao mesmo tempo, leitor diário de ebooks e textos em pdf.

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            Atualidade, Cibercultura, Leituras, Olhares, Opinião

            Palestina, Israel e a necessária moderação

            Sobre os terríveis acontecimentos e o cenário de guerra e destruição agora ampliados em Gaza e Israel, cito dois historiadores progressistas israelitas que se lhes acabam de referir. Enquanto para Alon Pauker, «os extremistas, tanto em Israel como em Gaza, alimentam-se uns dos outros e não se preocupam com as vidas das pessoas», para Eli Barnavi «o ataque do Hamas resulta da combinação entre uma organização fanática islamita e a política idiota de Israel.». Estamos, obviamente, perante pessoas moderadas, de uma espécie, se não em vias de extinção, pelo menos com grandes dificuldades de afirmação em Israel. O mesmo acontece, aliás, do lado árabe, onde as palavras sensatas de quem apela à solução política e partilhada do conflito como a única que pode evitar a continuação da opressão e do sofrimento do povo palestiniano são igualmente raras e carecem de grande coragem por parte de quem as profere, considerando a força e os métodos da intolerância, do islamismo radical e do jihadismo.

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              Ativismo, sectarismo e compromisso

              Todos os dias presente nos noticiários – mais recentemente a propósito dos combates pelo clima ou de vertentes da luta feminista – o ativismo é uma prática positiva e crucial da cidadania. No sentido filosófico, o termo aplica-se a uma doutrina ou argumentação que privilegia a transformação da realidade em detrimento de uma abordagem que seja sobretudo especulativa. Já no plano mais objetivamente político, usa-se como sinónimo de protesto continuado ou de militância dedicada em prol de causas ou de combates de interesse e impacto públicos. Por vezes em condições de ultrapassar ou de complementar a mais formal e programática atividade partidária. 

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                Parasitas da democracia

                Quando se faz análise política num espetro largo, ainda que esta se apoie em dados objetivos é sempre possível conviver com uma margem de erro. Sabe-se que todo o humano é complexo, e que no meio dos sinais e das regras que criamos ou encontramos, podemos deparar com a exceção. Além disso, tudo o que neste âmbito se comenta, ainda que fundamentado, é sempre uma aproximação. Por isso, traçar um esboço da psicossociologia da nossa extrema-direita e da repercussão que tem na vida coletiva que nos cabe, jamais significará traçar-lhe um retrato definitivo, pois este está em permanente construção. Todavia, não andará longe da abordagem aqui proposta. 

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                  O tudólogo como inimigo público

                  O corretor ortográfico do programa onde escrevo ainda identifica a palavra «tudólogo» como erro, mas o dicionário Priberam define-a já como aplicável a quem «comenta ou dá opiniões sobre qualquer assunto como se fosse um perito ou especialista de cada um desses assuntos». O termo é hoje usado para identificar negativamente quem tem voz pública nas televisões, jornais ou redes sociais, falando sobre qualquer tema, seja este a política nacional ou a internacional, a situação económica, a obra de um escritor, um acontecimento histórico ou a crise climática, como se sobre todos os assuntos fosse especialista. Incorrendo inevitavelmente em constantes vacuidades e equívocos.

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                    O beijo como agressão e um combate necessário

                    Num dos mais perfeitos filmes de François Truffaut, Baisers Volés (Beijos Roubados), de 1968, estreado entre nós três ou quatro anos depois, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), o protagonista, vive obcecado com a sua incapacidade para perceber se aquilo que sente por Christine (Claude Jade) é amor ou apenas desejo. Muitas das pessoas que na época viram o filme andaram semanas a debater apaixonadamente a compatibilidade parcial ou a incompatibilidade total entre estes dois conceitos. O papel figurado do beijo – o título saiu de um verso da canção «Que reste-t-il de nos amours», de Charles Trenet – é ali fundamental, dado este deter uma qualidade quando é clandestino. de certa forma «roubado», e outra quando é público e consentido. 

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                      «Barbie» em 2023

                      O «Síndrome da Barbie» traduz o desejo de ter uma aparência física e um estilo de vida idêntico ao da boneca, lançada em 1959 pela Mattel. Ao longo de sucessivas gerações, tem sido associado a raparigas pré-adolescentes de origem caucasiana, embora possa ser aplicável a diferentes faixas etárias, géneros ou etnias. A síndrome é vista como uma forma de distúrbio dismórfico corporal e tem imposto determinados modos de parecer, estando associada a graves distúrbios alimentares ou a experiências de elaborada cirurgia estética. Juntamente com o seu «par» Ken, tem vindo também, ao longo de décadas, a servir para tornar hegemónica em muitas crianças uma noção de feminilidade ou de masculinidade profundamente formal, estática e contrária aos avanços no campo da igualdade de género e da diversidade no domínio da sexualidade.

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                        Contradições e incoerência

                        As opções políticas, se feitas de uma forma honesta e de acordo com escolhas que, não podendo ser iAs escolhas políticas, se feitas de uma forma honesta e de acordo com escolhas que, não podendo ser imutáveis, devem necessariamente ser coerentes, não podem passar por tomar uma posição se o alvo tem um rosto, e outra, inteiramente oposta, se a sua cara é diferente. Não pode, por exemplo, defender-se a democracia em Portugal, no Brasil ou na Ucrânia, e, ao mesmo tempo, aceitar-se a autocracia na Rússia ou a ditadura na China e em Cuba. Como não pode, em processos de justiça seletiva, denunciar-se em alguns casos a guerra, o genocídio, a prisão e a tortura, omitindo-as em outras situações. Como não pode também julgar-se uma determinada reflexão pública – no campo do ensaio ou da crónica política, por exemplo – em função apenas do seu autor: boa, justa e para divulgar se vier de uma figura grada para determinado quadrante político, mas péssima e de rebater ou silenciar se vier de alguém de quem não se gosta, às vezes até por motivos pessoais. Isto para não falar, na linha da crónica de José Pacheco Pereira saída no Público deste sábado, de quem se diz defensor da nossa Constituição saída de Abril, mas ao mesmo tempo fecha os olhos, apenas porque pontualmente lhe convém, às intromissões do Presidente da República em matérias que não são da sua competência constitucional. Ainda que sobre alguns dos temas possa ter razão na parte ou no todo.

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                          Formatados (à volta da JMJ2023)

                          Esta manhã cruzei-me com milhares de jovens de passagem para a Jornada Mundial da Juventude, organizada em Lisboa, com trajetos regionais, pela Igreja católica. Nada contra a sua forma de manifestar fé ou de se divertirem e conviverem, embora julgue inaceitáveis os gastos com uma exibição de luxo e de suposta grandeza por parte da organização do evento, o que não é culpa deles.

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                            Eleições em Espanha: quatro sinais positivos

                            Os resultados das eleições legislativas em Espanha abriram uma crise política sem uma solução para já à vista. Todavia, por certo que ela surgirá, seja sob a forma de uma grande coligação de partidos orientados basicamente à esquerda – com concessões a algumas pretensões autonomistas -, ou então apontando, o que seria basicamente negativo por introduzir um inevitável extremar de posições, para novas eleições. Seja como for, dos seus resultados, em boa parte inesperados, saíram diversos sinais essencialmente positivos. Para já, anoto quatro.

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                              «Antigamente é que era bom»

                              Todos conhecemos a frase-feita que proclama «antigamente é que era bom». Todavia, o conhecimento histórico mostra que o princípio subjacente ao seu repetido uso e ao erro de perspetiva que impõe – perspetivando um passado considerado melhor que o presente – é tão antigo quanto a existência humana. Sabe-se que as grandes caçadas representadas nas pinturas rupestres correspondiam a uma idealização da abundância colocada num passado ao qual se desejaria regressar. A idealização do tempo cíclico, que antes da vitória da ideia de progresso acompanhou a maior parte do trajeto das sociedades humanas, reflete essa perspetiva, sempre ligada a um desejo de regresso ao que se cria outrora magnífico.

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                                Vento que sopra de Espanha

                                Uma vez mais, as eleições no país que nos coube na sorte da história e da geografia ter aqui mesmo ao lado parecem pouco ter a ver connosco. A atenção da comunicação social portuguesa é reduzida, e a ocorrência do tema na opinião pública – se procurarmos ver, por exemplo, a sua presença nas redes sociais ou em debates na televisão e na rádio – é residual. E, no entanto, algo teríamos a ganhar se usássemos alguma da sua experiência como possível exemplo, ou como ponto de partida para olhar num plano comparativo a nossa própria vida comum. Assim aconteceria se, por exemplo, tivéssemos reparado no comportamento dos partidos que participaram na noite de ontem, quarta-feira, no último debate entre os principais candidatos a primeiro-ministro organizado pela RTVE.

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                                  O desastre estratégico de Putin

                                  Quem observar a realidade mundial pós-invasão putiniana da Ucrânia perceberá que os objetivos do seu mentor – reduzir a área de influência dos EUA e assegurar a continuidade de uma estratégia de expansão e domínio não menos imperialista – perceberá que eles se traduziram num rotundo falhanço. Não só a Europa, apesar das suas diferenças, se aproximou mais política e militarmente, como a NATO viu reforçados o seu poder e a sua retórica de legitimidade.

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                                    O tema deste artigo foi-me sugerido pela leitura de uma entrevista feita ao autor colombiano Héctor Faciolince, saída no diário Público, onde este relata a sua terrível experiência quando há alguns dias um míssil russo caiu na pizzaria em Kramatorsk, no Leste da Ucrânia, onde se encontrava. A explosão provocou 13 mortos, entre eles a escritora ucraniana Victoria Amelina, com quem estava a almoçar: «de repente estávamos no inferno», relata, ainda perturbado e a recuperar dos ferimentos. Lembra, aliás, que o ataque não foi um «dano colateral» da guerra, mas uma escolha deliberada e cirúrgica, associada ao facto do Ria Lounge ser «o restaurante onde todos os correspondentes de guerra na Ucrânia vão quando estão na cidade».

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