Arquivo de Categorias: Atualidade

E agora, Brasil?

Logo no dia após a vitória tangencial de Lula, colunistas e jornalistas de todo o mundo começaram a elaborar listagens dos «problemas» e dos «desafios» que a partir de 1 de janeiro de 2023 terá pela frente a nova presidência do Brasil. Não repito esse esforço, em regra bastante completo, mas anoto os meus oito principais temores e desconfianças em relação ao que aí vem. Acreditando que serão partilhados por bom número de pessoas, muitas delas apoiantes ou votantes do candidato do PT.

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    Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

    Brasil: vislumbre do ódio

    Os portugueses que na noite eleitoral de ontem prestaram atenção aos canais nacionais com reportagens e espaços de comentário sobre as eleições no Brasil puderam ter um rápido e eloquente vislumbre daquilo que, nos últimos anos, brasileiros e brasileiras pacíficos e de bem tiveram de suportar diariamente no seu próprio país, ao ponto até de tantos terem decidido emigrar ou de terem deixado de expressar publicamente os seus pontos de vista. 

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      A China e o espetáculo do poder

      Há alguns dias, perante uma fotografia dos membros do novo Comité Central do Partido Comunista Chinês rigidamente perfilados na tribuna do Congresso destinado a estender e reforçar o mandato de Xi Jinping, senti um frémito de horror. Não é preciso ser semiólogo para ler aquele rebuscado cerimonial, a fixidez dos corpos robotizados, a impassibilidade dos rostos, a coreografia de cores e gestos, incluindo-se nestes a exclusão forçada, diante das câmaras, de Hu Jintao, o anterior presidente caído em desgraça. Mais que traduzir «uma especificidade cultural», como certas boas almas julgarão, eles visam impor internamente a aceitação incontestada da autoridade e, no plano externo, o reconhecimento da força. Se ao cenário juntarmos a quase ausência de mulheres, temos a imagem perfeita de um poder misógino e arbitrário que se celebra a si próprio. 

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        A normalização do plágio

        A definição é retirada literalmente da Wikipédia: «O plágio é o ato de assinar, apresentar e publicar uma obra intelectual de natureza literária, científica ou artística (texto, música, obra pictórica, fotografia, obra audiovisual, entre outras), em partes ou na íntegra, cuja autoria pertença a outra pessoa, sem que haja a permissão do autor, no caso de obras com direito reservado, ou reconhecimento da fonte, no caso de obras públicas. Portanto, comete plágio quem se apropria indevidamente da obra intelectual de outra pessoa, assumindo a autoria.» Trata-se de um gesto miserável, não apenas porque supostamente confere a quem o pratica conhecimentos e aptidões que na realidade não possui, como omite e deprecia o esforço e a criatividade detidos por outros, bem como o seu trabalho.

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          Devemos continuar a falar da Ucrânia?

          Este é um olhar sobre os efeitos na opinião pública da guerra na Ucrânia, não «apenas mais um artigo» sobre esta. O conflito, que de início comentadores e especialistas militares acreditaram terminar em uma ou duas semanas, está a completar oito meses sem que se vislumbre um quadro de paz. De facto, o aparente desequilíbrio inicial, fundado na força bélica da Rússia, foi rapidamente contrariado por dois fatores: de um lado, a ajuda dos Estados Unidos, da NATO e da União Europeia ao governo de Kiev; do outro, a preparação dos militares da Ucrânia e a valentia do seu povo, que contam com a enorme vantagem moral de conhecerem o terreno e se oporem a um invasor. Ao mesmo tempo, a capacidade militar de Putin revelou-se bem mais frágil do que se supunha, compensando a debilidade com a ameaça do potencial nuclear e a mobilização de reservistas.

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            Sobre o falso pacifismo

            Contava um meu professor que certo aluno, ao qual durante uma aula pedira que dissesse o que pensava sobre a função da guerra, teria afirmado odiá-la, pois sem ela não haveria história e não se veria forçado a estudar uma disciplina que detestava. Apresentado de forma ingénua, o que afirmou esse aluno vai no sentido da conhecida afirmação de Engels, deixada no seu Anti-Dühring, sobre ter sido a violência da guerra «a parteira da história». Isto é, a força dinâmica indispensável e decisiva no longo trajeto das sociedades humanas. A ideia não traduz, por parte do amigo e colaborador de Marx, uma vontade de glorificação do papel da guerra, mas tão só a constatação de uma realidade: goste-se ou não dela, os avanços e os recuos da história das sociedades humanas tiveram a guerra como constante cenário e decisivo fator de transformação.

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              Putin e o regresso ao passado

              O principal responsável pela política ditatorial e agressiva da Rússia, a par da China um imperialismo em franca e rápida ascensão – contra o norte-americano, que obviamente não se evaporou -, acaba de justificar, neste 30 de setembro, a anexação de parte de um país soberano que agrediu e procurou destruir com base num «referendo» completamente ilegítimo e manipulado e em nome de um suposto «anticolonialismo». Que é de facto, e acima de tudo, um combate contra as sociedades democráticas e os direitos dos povos, incluindo nestes o russo, à autodeterminação, à paz e à liberdade. Sei de muita gente que estará a delirar com as suas palavras, antevendo já o regresso a um passado pelo qual sentem uma nostalgia sem limites e a que pensam poder um dia poder regressar. Por certo já hoje assobiaram, pelo menos mentalmente, a Kalinka e os Barqueiros do Volga.

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                Temos um grande problema

                A generalidade dos comentadores de política internacional concorda em que o último discurso de Putin representa um evidente sinal do desespero de quem se viu com todas as suas previsões belicistas trocadas e se confronta agora com o espectro de uma derrota militar na Ucrânia. Depois da sua intervenção, a situação piorou ainda, com alguns sinais bem visíveis, como a fuga de pessoas da Rússia perante a ameaça de uma mobilização forçada para a guerra, o regresso das manifestações de rua, logo reprimidas pela polícia, o imediato reforço da ajuda militar ocidental a Kiev e as posições da China e da Índia, agora nitidamente desconfortáveis com o belicismo desvairado, na forma de fuga para a frente, do seu aliado e, mais recentemente, untuoso cortejador. 

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                  Sete «novidades» que chegam do Kremlin

                  Na sua cegueira, amigos e cúmplices de Vladimir Putin terão exultado com a sua última declaração. Principalmente por sete motivos, perante os quais é fácil contra-argumentar, mas que estes setores jamais questionam, ficcionando a sua própria visão da situação. Em primeiro lugar, porque assumiu formalmente que a Rússia está em guerra, deixando claro que antes andou a enganar os seus próprios concidadãos. Em segundo, porque decidiu o lançamento da mobilização de 300.000 reservistas, o que apenas confirma as notícias sobre o desastre militar que tem sido a sua iniciativa na Ucrânia. Em terceiro, porque acusa o ocidente de «chantagem nuclear», embora todos os jornais mostrem há meses as sucessivas ameaças feitas neste preciso sentido por ele e por Lavrov. 

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                    O Mar Negro, lá longe e aqui ao lado

                    Por causa de um longo artigo a publicar em breve, passei perto de três semanas a ler e a escrever sobre a história do Mar Negro. Esse «lago asiático» – como se lhe referia em 1765 a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert – que, devido à presente guerra de invasão da Ucrânia pela Rússia, subitamente passou de lugar distante, quase ignorado ou mesmo recôndito para a larga maioria dos europeus, a espaço que nos habituámos a reconhecer como próximo e em condições de afetar o nosso modo de vida. Todavia, por muitos séculos este papel foi inexistente, ocupadas que estavam as suas margens apenas por pequenos poderes e por comunidades isoladas e autossuficientes. 

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                      Conformismo, proselitismo e inconformismo

                      A pessoa conformista aceita sem reagir situações que lhe são impostas e intimamente deveria rejeitar ou contrariar. A disposição que melhor a define é a passividade, temendo sempre que qualquer gesto ou palavra que possa afirmar lhe perturbe o modo de vida. Alinha as suas perceções, crenças e condutas pelas dos outros: encomenda a mesma bebida, adota os mesmos códigos de vestuário ou adere cegamente às escolhas que dominam o grupo a que pertence. O psicólogo social Solomon Asch mostrou que pessoas com este comportamento preferem até dar cobardemente respostas erradas, ou contrariar a sua consciência – como acontece com o triste personagem interpretado por Jean-Louis Trintignant no filme Il Conformista, de Bernardo Bertolucci –, a arriscar a reprovação social, que entendem como via para uma fatal exclusão. 

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                        Na morte de Mikhail Gorbachev

                        Apesar de estar completamente afastado do poder há cerca de 31 anos, quando por discordar de um modo frontal da dissolução da União Soviética – bem ao contrário do que por aí se escreve e diz – se demitiu bruscamente da presidência, a morte, ontem ocorrida, de Mikhail Gorbatchev (1931-2022), também Prémio Nobel da Paz de 1990, não deixa de representar a de alguém com um papel decisivo no complexo curso do mundo contemporâneo. Apesar de já existirem muitas e detalhadas obras, tanto no campo da biografia como no do ensaio, publicadas a propósito da sua vida e do seu trajeto político e influência, a sua personalidade e a sua intervenção permanecem de uma interpretação bastante complexa, que talvez só venha a poder ser melhor clarificada no seu próprio país no dia em que este puder despertar do pesadelo putiniano e conhecer melhor tudo o que ali aconteceu nos últimos cinquenta anos.

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                          Um livro tão útil quanto perturbante

                          Editado originalmente em 2016 e traduzido agora pela Zigurate, Quanto menos soubermos, melhor dormimos, do jornalista e historiador David Satter, possui um subtítulo bastante esclarecedor: «Do terror à ditadura na Rússia sob Ieltsin e Putin». Escrito por um destacado analista da realidade russa desde o período soviético, que viveu décadas em Moscovo até ser expulso em 2013, é livro de leitura compulsiva que de modo algum deixa indiferente quem o leia. Serve também de importante auxiliar para quem pretenda compreender o tipo de gente criminosa que governa a hoje terceira potência militar do planeta – depois dos EUA e da China – e a partir dela procura lançar um novo projeto imperial, ficando também a conhecer os seus métodos, simultaneamente tenebrosos e impensáveis num Estado de direito.

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                            Guerra de mundos: democracia versus autoritarismo

                            Ao contrário do que se ouve e lê com bastante frequência, os conceitos de esquerda e direita, nascidos, como é sabido, do conflito de fações que teve lugar durante a Revolução Francesa, e depois determinados pela evolução simultânea do capitalismo, do nacionalismo e dos projetos republicano e socialista, não se encontram «mortos» ou «ultrapassados». Ainda que instáveis, complexos e pautados por contradições, ambos continuam a expor a eterna luta entre, de um lado, um ideal de justiça, igualdade e felicidade coletiva fundado no progresso e nos direitos sociais, e, do outro, uma perspetiva do mundo alicerçada no individualismo, no fétiche do lucro, no conservadorismo e numa ordem social baseada sobretudo em deveres. Anunciar o seu fim faz parte, aliás, do arsenal argumentativo da direita.

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                              O eurocentrismo e a doença da eurofobia

                              As Cartas Persas, escritas entre 1711 e 1720 e publicadas anonimamente no ano seguinte pelo barão de Montesquieu, são essenciais para compreender a primeira grande mutação no modo dos europeus olharem os que o não são. Nelas, dois fictícios amigos persas escrevem para o país de origem com impressões de uma viagem na França de Luís XIV onde questionam os seus costumes e leis. Para o leitor de hoje a sua crítica encontra-se muito desatualizada, mas o mais importante da obra é a forma como os valores de uma civilização são ali relativizados, mas não rejeitados, por comparação com os de outra. Este método abre caminho para uma das caraterísticas essenciais e mais avançadas do pensamento iluminista: produzir uma visão do mundo que, apesar de agora se reconhecer como eurocêntrica, se esforçava então por compreender as formas de pensar, agir e acreditar de outros povos. Uma perspetiva cosmopolita, até então desconhecida na história e na geografia da humanidade, europeia ou não, que emergiu como instrumento de valorização da diversidade do humano.

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                                Sendo uma verdade que a história jamais se repete, pode ter alguma utilidade, na tentativa de compreender momentos complexos da vida dos povos e das nações, ensaiar comparações entre situações históricas situadas em diferentes tempos e lugares. Ao procurar refutar o filósofo Hegel por este ter afirmado que todos os factos e personagens de importância na história mundial ocorriam duas vezes, Marx escreveu no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, terminado em 1852, que «ele esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa». Vejamos se isto pode ser aplicado a um arriscado exercício de comparação entre o Portugal do século XVII e a atual Ucrânia.

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                                  Sempre vi como um tanto despropositado o título O Acossado atribuído em Portugal a À Bout de Souffle, a primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard, com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, estreada em 1960 e um dos filmes basilares da Nouvelle Vague. Porque o personagem principal, Michel Poiccard, apesar de perseguido permanentemente pela polícia, é um homem livre, sobretudo à procura de uma vida em lugar distante onde tudo para ele possa recomeçar. Já o adjetivo «acossado» refere-se de forma muito objetiva a alguém perseguido ou atacado, que vive atormentado por essa condição e reage a ela envolvendo-se ainda mais no quadro de vida que lhe é constantemente imposto.

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