Arquivo de Categorias: Apontamentos

Causas justas e sectarismo

É inaceitável, para além de completamente inútil, manter como forma de lutar por uma causa – ainda que esta seja a mais justa e a mais urgente das causas – o ataque e o insulto. Não apenas dirigido a quem é seu declarado inimigo, mas também, e por vezes até com maior empenho, a todas as pessoas que, apesar de próximas nos objetivos, não sentem, não pensam, não vivem ou não agem exatamente como quem se serve desses processos. Sem uma vírgula a mais ou um travessão a menos. É verdade que se trata de uma prática sectária apenas presente em pequeníssimas franjas do ativismo, mas ela causa ruído bastante e em regra apenas serve para espalhar a confusão, afastando mesmo potenciais apoiantes de muitas das propostas que esses setores declaram defender. Não é preciso procurar muito para encontrar situações destas: chega-se lá pelo alarido. Elas não têm a ver com «radicalismo» ou com coragem, mas sim com ignorância da história e infantilismo político. Certas vezes, com burrice também.

Publicado originalmente no Facebook
    Apontamentos, Democracia, Opinião

    O alerta da desconfiança

    Não me custa reconhecê-lo: sou viciado em informação. Talvez isso se deva em boa parte a ter aprendido a ler pelo jornal, ao colo do meu avô, nessa época correspondente local do Diário de Notícias e leitor aos fins de semana d’O Primeiro de Janeiro, ou por o meu pai ter o hábito de trazer para casa dois diários, por vezes três. Gosto de pensar que assim é também por escolha pessoal: graças a ter crescido num lugar onde não se passava nada e era preciso levantar o pescoço para espreitar o que acontecia mais além. A generalização da televisão, mesmo a censurada, ajudou bastante a ampliar esse olhar. Depois, o telejornal da noite tornou-se horário sagrado nas casas que fui habitando. A rádio, de início em onda média ou curta, ajudava também. Mais tarde, quando passava férias longe de algum quiosque, todos os dias conduzia vinte ou trinta quilómetros, sem pestanejar, só para poder comprar o jornal. E fui praticamente pioneiro da Internet, que comecei a usar regularmente logo em 1993.

    (mais…)
      Apontamentos, Atualidade, Jornalismo, Olhares

      Raios de sol

      Todos conhecemos a expressão recorrente, aplicada a alguém que reencontramos e desejamos elogiar, que diz ser essa pessoa «como o vinho do Porto, quanto mais velho, melhor». Ou seja, que nos parece estar muito bem, talvez melhor do que esperávamos. Quem percebe de vinhos sabe que a qualidade do Porto não depende necessariamente (ou apenas) da idade que tem; a ideia que a frase incorpora, todavia, aplica-se a muitos casos reais. Homens e mulheres a quem os anos foram, de forma visível, apesar das rugas e dos cabelos brancos, melhorando a inteligência, o discurso, a forma de estar, o saber, a sageza política, a tolerância, por vezes até a beleza ou a capacidade de sedução. Todos conhecemos casos destes, felizmente. Gente que um dia vimos baça, tímida, sem voz, e que hoje brilha pelo que é ou pelo que faz.

      (mais…)
        Apontamentos, Devaneios, Olhares

        «Conselheiros» que não aprendem

        Desde que sou capaz de me recordar de interpretar as relações com os outros, sempre detestei que me «dessem conselhos». Ou, em sentido inverso, de ser eu a dá-los. Quando sinto que, por distração, tique ou cansaço, o estou a fazer, tento logo moderar o tom e mostrar que o que digo é apenas uma possibilidade, de modo algum algo de absolutamente certo e definitivo. Isto nada tem a ver com aprender com os outros, com a própria experiência, com a partilha de ideias, com a hipótese de mudar uma posição por influência alheia e com a necessidade de saber sempre mais. Tendo nascido e sido criado durante o Estado Novo, foi tempo demais a receber «conselhos», apresentados, aliás, como normas.

        (mais…)
          Apontamentos, Cibercultura, Olhares

          Alusão e cultura geral

          Como sabe quem escreve com regularidade textos que contêm uma dimensão literária – sobretudo se estes forem de opinião ou de ficção, seja no romance ou na poesia –, uma das técnicas a que recorre muitas vezes é a alusão. Falo do recurso estilístico pelo qual se faz referência direta ou indireta a uma pessoa, a uma situação, a um livro, uma peça musical ou um filme, contendo uma carga simbólica ou representativa que se pressupõe seja do conhecimento do leitor e por este percebida. Faço isto muitas vezes e posso dar como exemplo uma linha de comentário publicado há pouco a acompanhar uma fotografia de ocasião. Quando nela escrevi «finalmente sábado» estava, como muitos e muitas notaram, a aludir a Finalmente Domingo (Vivement dimanche), o título do último filme de François Truffaut, estreado em 1983. E também ao próprio filme.

          (mais…)
            Apontamentos, Etc., Olhares

            Antifascismo e violência

            Com o fascismo, tenha ele o rosto que tiver, não existe diálogo possível. Não se pode dialogar com quem o faz apenas para combater os direitos fundamentais e destruir a democracia. E muito menos, pelo mesmo motivo, reconhecer-lhe direitos democráticos irrestritos. Mas também não podem existir contemplações, compreensão, moderação: o fascismo não se observa, não se lamenta, enfrenta-se, e se necessário, como já aconteceu no passado, através da violência. Inclusive a física. A mãe de todas as guerras antifascistas, a Segunda Grande Guerra, não se venceu com flores ou palavras doces, nem com o encolher dos ombros ou o silêncio, mas com dureza e determinação, nos trilhos da resistência ou no fragor do campo de batalha.

            (mais…)
              Apontamentos, Democracia, Opinião

              A linha vermelha

              Já fui, e não foi por pouco tempo, bastante intransigente no que diz respeito à forma de estar, aos valores assumidos, à partilha e à defesa de convicções pessoais. Um tanto intolerante, mesmo, sem dúvida, apesar de desde cedo ser contrário a crenças assentes em absolutos. Nessa época, como acontecia com muitos daqueles e daquelas com quem partilhava percursos e projetos de futuro, para nós e também para a humanidade inteira, incompatibilizei-me mesmo com algumas pessoas, por vezes com razões que ainda hoje considero inteiramente legítimas, embora outras por puro sectarismo e, à época, uma ainda frágil e incompleta compreensão da diversidade, da complexidade e da fragilidade do humano. 

              (mais…)
                Apontamentos, Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                A guerra contra a Covid-19 e os partidos

                Começo por uma citação um pouco longa retirada do editorial do Público desta sexta-feira, assinado por Manuel Carvalho, com o qual concordo quase por inteiro: «Tudo o que se tentou evitar até agora está a acontecer. Chegámos ao limite e, se formos muito para lá do ponto em que estamos, corremos o risco de agravar os danos da pandemia com a perda da estabilidade política e social e da auto-estima que sustenta o nervo de um país. Se o confinamento falhar, o preço será altíssimo. Cada um de nós e todos enquanto comunidade temos muitos interesses em jogo nesta ameaça. (…) Resta uma só solução: levar o confinamento muito a sério. Olhar, como pediu o primeiro-ministro, para as regras e não para as excepções. Perceber que a decisão de cada um conta, seja a de um caixa de supermercado ou de um empregado dos serviços que pode trabalhar a partir de casa. Relativizar o perigo é exponenciá-lo. Virar-lhe as costas, por fadiga ou impaciência, por descrença nos políticos ou por dúvidas sobre as prescrições dos especialistas, é fugir à responsabilidade. Ficar em casa é mais do que uma opção individual: é um acto político, uma prova de empenho cívico, um gesto de resistência em favor do bem comum.»

                (mais…)
                  Apontamentos, Atualidade, Democracia, Opinião

                  Banalidades necessárias

                  Mais uns quantas banalidades. Banalidades necessárias, porém, dado corresponderem a evidências que, justamente por o serem, com frequência acabam esquecidas. O uso da expressão «isso já se sabe», tantas vezes escutada sempre que alguém procura lembrar ao cidadão comum alguns princípios, verdades e lógicas que convirá não esquecer, corresponde sempre a uma combinação de arrogância e de descaso. De arrogância quando exprime uma rejeição do senso comum, sempre indispensável à vida coletiva, embora tantas vezes esquecido. E de descaso quando traduz o encerramento de quem a expressa na sua pequena bolha. A dos que «já sabem» e preferem não tocar no assunto porque isso os aproxima de uma vulgaridade que abominam.

                  Isto vem a propósito de uma experiência constantemente partilhada no contacto com os outros, em particular com quem assume posições públicas, seja a que escala for. A experiência de quem prega a justiça, a ética e a coerência, mas apenas em abstrato, jamais as aplicando à sua própria vida, à relação empática com os outros, ou à apreciação do comportamento objetivo do seu grupo ou da sua família política. Encontra-se por todo o lado, bem sei, mas na direita, estruturalmente assente na defesa do individualismo, da ordem e da desigualdade, acaba por ser uma contradição «natural». Nela bem menos chocante, afinal, do que quando ocorre entre pessoas situadas no espectro da esquerda, que é, ou deverá ser, tendencialmente solidária, igualitária e justa.

                    Apontamentos, Democracia, Etc., Olhares

                    Liberdade, crime e castigo

                    Quem conhece aquilo que é verdadeiramente combater pela liberdade contra a opressão, e sobretudo quem, pela sua origem, geração, etnia, género, convicção ou escolha, vive ou viveu essa luta na própria pele, não pode deixar de sentir o maior desprezo e a máxima indignação pelas pessoas que em regimes democráticos falam de «falta de liberdade», ou mesmo de «ditadura», quando se referem a tomadas de decisão coletivas que implicam simplesmente a aceitação de direitos e de deveres partilhados. A conhecida frase, da autoria de Herbert Spencer (1820-1903), a recordar que «a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro», não determina formas de censura, mas sim indispensáveis e partilhados modos de responsabilidade e de respeito pelo semelhante. Imprescindivel em sociedades onde o grau de independência, de autonomia, de liberdade, de escolha de cada um de modo algum pode validar o prejuízo dos demais e o do todo. Assim acontece por estes dias de continuada e triste clausura associada às dolorosas limitações relacionadas com a pandemia em curso. Cumpri-las não é autoprivação da liberdade, mas uma obrigação para com os demais e para com o futuro que pertence a toda a gente. Um gesto de proteção pessoal, mas de igual modo de cidadania. E por isso também, combatê-las é grave crime antissocial, no limite merecedor de castigo.

                      Apontamentos, Atualidade, Direitos Humanos, Opinião

                      Dois postais de bom ano | 2º Postal

                      Não faço a menor ideia do que pode levar cada pessoa a usar as redes sociais como lugar de comunicação frequente, ou mesmo, em certos momentos, aquele que mais utiliza. Provavelmente, em tantos milhões de humanos que vivem parte dos seus dias ligados a estas máquinas ligadas a outras máquinas, poucos existirão cujas razões repliquem exatamente as dos demais. A mesma coisa no que diz respeito à forma mais ou menos ativa, ou mais ou menos passiva, como as usam, ao que delas esperam, às experiências que têm, às expectativas que podem (ou não) manter ou ir perdendo. Trata-se de um meio difícil, como muito bem sabe quem antes da introdução do digital e do uso das redes se habituara a escrever, a falar, a fotografar, a criar ou a contar com um objetivo de partilha, mas agora o faz sob condições inteiramente renovadas. Este meio dispõe de possibilidades imensas, mas também de armadilhas e de alçapões que dificultam o caminho, podendo levar a tropeções e a quedas. Mais caminhos, já se sabe, implicam inevitavelmente mais hipóteses de os cruzarmos, sempre com as inerentes vantagens e perigos.

                      (mais…)
                        Apontamentos, Devaneios, Olhares

                        Dois postais de bom ano | 1º Postal

                        No último dia de 2013 publicava aqui um postal, a acompanhar os habituais votos de bom-ano, onde se misturavam em dose desequilibrada a esperança e o desânimo. Nessa altura, estávamos no pico da atuação do governo PSD/CDS. Aquele, convém não esquecer, que então respondeu à crise global do capitalismo e dos mercados reduzindo dramaticamente as condições de vida dos trabalhadores – em particular os da função pública e os aposentados -, diminuindo-lhes ou retirando-lhe direitos com décadas de conquista, cortando feriados, forçando muitos milhares de jovens com formação elevada a sair de Portugal, submetendo-se a todos os ditames dos agentes do neoliberalismo que regiam os destinos da União Europeia, colocando o país de mão-estendida perante os outros. Ao mesmo tempo que prometia um crescimento económico assente principalmente na redução do consumo e na exploração do trabalho.

                        (mais…)
                          Apontamentos, Devaneios, Etc., Olhares

                          Um Natal sem fé

                          Perdi a fé – falo dessa forma de adesão incondicional a uma verdade não demonstrável considerada inquestionável e estabelecida para todo o sempre – por duas vezes na vida. Sou capaz de datar os momentos em que isso aconteceu, mas prefiro indicar a idade que tinha nessa altura.

                          A primeira vez acabava de fazer catorze e tratou-se da perda de fé nos dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana, na sua doutrina e nas suas liturgias. Uma perda que chegou com as minhas primeiras dúvidas sobre o caráter indiscutível de todas as certezas e foi fechada quando tudo aquilo que escutava nas cerimónias religiosas passou a afigurar-se um conjunto de monótonas vacuidades sem qualquer beleza ou capacidade de mobilização. Com essa perda veio também, algum tempo depois, uma outra, que foi a da crença na existência provável de um Deus único e superior, capaz de sobrepor a sua vontade à dos seres humanos.

                          (mais…)
                            Apontamentos, Olhares

                            Nem sacerdote, nem anjo

                            Como historiador profissional que ao mesmo tempo tem uma intervenção pública regular enquanto cidadão e não separa com um cordão electrificado as duas qualidades, de tempos a tempos encontro sempre alguém que, ao discordar de uma opinião que possa ter expresso, justifica essa discordância associando, a razões ou desacordos inteiramente legítimos, uma frase que integra um juízo de valor inaceitável: «parece impossível um historiador escrever isto». Não porque eventualmente tenha expresso algo de errado ou de impreciso do ponto de vista do conhecimento do passado, mas porque a pessoa que emite esse juízo chama à colação uma certa ideia de historiador que o desqualifica se ousar sujar as mãos na realidade do mundo em que vive. Como se fosse um sacerdote, um etéreo oficiante do passado, que teria o dever de se desvincular inteiramente do presente, ainda que muitas das opiniões que neste campo emita o possam ser na sua qualidade de cidadão, não de profissional do «métier».

                            (mais…)
                              Apontamentos, Etc., História, Olhares

                              Pio IX e a Imaculada Conceição

                              Foi em 8 de dezembro de 1854 – há 166 anos, e não «há sete séculos», como hoje pude ler, embora na altura tenham sido invocadas referências bíblicas e dos primeiros textos da Patrística como justificativas para a decisão – que na bula Ineffabilis Deus o papa Pio IX proclamou o dogma da Imaculada Conceição. Basicamente, este dogma considera a concepção da Virgem Maria, «cheia de Graça», como ocorrida sem a mácula do pecado original, na qualidade de um sinal da intervenção da providência divina e de precaução para preparar, através de uma linhagem que fosse pura, a vinda de Cristo.

                              (mais…)
                                Apontamentos, Etc., História, Olhares

                                Três memórias de Sá Carneiro

                                1. Aconteceu ao início daquela noite de 4 de dezembro de 1980. Estava no último ano do curso de História e vivia em Coimbra num quarto arrendado em moradia cuja proprietária, uma professora de piano já de idade avançada, fazia questão de se mostrar todos os dias assumida herdeira de uma família de republicanos, laicos e maçons. Daquela vez entrou quarto adentro sem bater à porta e num riso quase incontido deu-me a notícia da morte, no trágico acidente de aviação que tinha acabado de ocorrer, de Francisco Sá Carneiro, Snu Abecassis e Adelino Amaro da Costa. Não me parece hoje motivo de risota, e nem tal me pareceu naquela altura, mas o facto de ter acontecido o que aconteceu, como aconteceram outros sinais análogos perante o sucedido, pode hoje compreender-se se recuperarmos a memória de um tempo no qual Sá Carneiro era ainda, por muitos cidadãos, tomado como o mais perigoso líder da direita portuguesa.

                                (mais…)
                                  Apontamentos, Biografias, Democracia, Memória, Olhares

                                  25 de Novembro: o fim da festa

                                  A esta distância de 45 anos vemos de forma mais completa e compreensiva os acontecimentos de 25 de novembro de 1975. Sabemos que foi um momento intensamente dramático, integrado no processo de transição democrática que só terminaria com a ratificação, no 25 de abril seguinte, da nova Constituição da República, e com a realização, neste mesmo dia, das eleições legislativas de onde sairia o I Governo Constitucional. Para quem viveu intensamente o Processo Revolucionário foi isso, mas foi também muito mais: o dia que marcou o fim da bela utopia de igualdade e de fraternidade que deveria ser alcançada a pulso e rapidamente. Na manhã de 26 recordo-me de ter saído à rua – e de me ter cruzado com tantas pessoas em idêntico estado de tristeza – com uma amarga sensação de perda, de pesadelo e de fim de festa.

                                    Apontamentos, Democracia, Memória

                                    Porque há tanta gente desta?

                                    Vença quem venha a vencer, os resultados das eleições presidenciais norte-americanas têm suscitado uma dúvida legitima, mas que exprime alguma ingenuidade política. Quem a exprime parte do princípio segundo o qual os Estados Unidos da América são uma sociedade «civilizada», no sentido tradicional do termo, que deveria por isso excluir práticas e valores como os exibidos por Donald Trump e os seus numerosos apoiantes. Surge então a dúvida natural: «Como pode tanta gente defender um homem assim? Como pode ela ser tão cega após quatro anos de governação desta personagem egocêntrica, mentirosa, agressiva e tão primária?» O mesmo problema coloca-se na abordagem da situação vivida em Estados europeus, questionando o apoio hoje dado a posições políticas conflitivas e irracionais que questionam os princípios mais básicos do convívio democrático e da solidariedade humana. Olhemos, porém, o caso americano.

                                    (mais…)
                                      Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião