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O elétrico vermelho

Num livro sobre o levantamento, o apogeu e o fim da Cortina de Ferro publicado há poucos meses pela Doubleday (Iron Curtain: The Crushing of Eastern Europe), a jornalista e historiadora norte-americana Anne Applebaum, conhecida por ser a autora de uma das mais sérias e completas obras sobre a origem, a organização e o funcionamento do Gulag soviético, conta-nos um episódio extraordinário. Ele ocorreu em Varsóvia já depois de terminada a guerra, num belo dia do verão de 1945. Seguia um funeral por uma das muitas centenas de ruas reduzidas a destroços na altura da retirada pelos nazis quando os seus tristes acompanhantes depararam de repente com uma cena extraordinária: um verdadeiro carro elétrico varsoviano, vermelho como sempre mas o primeiro a cruzar a cidade depois do fim do conflito, fazia o seu percurso tocando a sineta. As pessoas nos passeios estacaram todas, surpreendidas, e muitas desataram a correr atrás dele, enquanto outras batiam palmas e gritavam vivas. E então o funeral parou, os seus enlutados participantes esqueceram por momentos o corpo gélido que conduziam à última morada, e envolvidos na euforia geral viraram-se para aquele elétrico saído das cinzas e começaram, também eles, a bater palmas. Por um instante, uma espantosa vibração de esperança e de vida esmagou, gloriosa, a fixidez da morte.

    Apontamentos, Memória, Olhares

    Uma sombra de medo

    De repente, uma sombra de medo começou a pairar sobre as cabeças de muitos dos nossos políticos de tribuna e comentadores de cátedra. Um medo não declarado, mas certo e percetível. Medo da atual vaga de protestos «antidemocráticos» e não conduzidos – materializados, veja-se a desfaçatez, na propagação pacífica da bela canção de fraternidade que anunciou o fim da ditadura – poder mostrar ao comum dos cidadãos que o exercício da democracia não se limita a depositar o voto na urna e, de seguida, a hibernar durante quatro anos com a consciência tranquila e a boca fechada. Passando uma procuração com plenos poderes aos governantes e aos deputados eleitos, inimputáveis durante toda uma legislatura ainda que já nem se recordem do rosto dos seus eleitores e, sem ponta de vergonha, tenham rasgado o contrato que com eles assinaram. (mais…)

      Apontamentos, Atualidade, Opinião

      Para quem é…

      Os acontecimentos que nos últimos dias envolveram a presença pública de Miguel Relvas e a violenta contestação da qual esta tem sido objeto por parte de alguns grupos de cidadãos mais destemidos, levantam uns pequenos problemas. Não penso que, em democracia, a contestação dos governantes deva passar pelo cerceamento da sua liberdade de opinião e de expressão. Ou pelo insulto público. Existem formas e lugares para a demonstração do descontentamento, mesmo quando esta é muito veemente, e que podem passar por outras iniciativas sem que tal diminua o seu impacto. Porém, no caso deste governante, e do seu trajeto oportunista, obscuro, mercantil e politicamente desprestigiado, exibido com a conivência de um governo empenhado em pôr em causa a própria Constituição da República, justifica-se uma exceção. Perante a desfaçatez, enorme e insultuosa, que é a sua manutenção teimosa, artificial e até imprudente como responsável governamental da mais alta responsabilidade, a soberania pode ser transferida para os governados e estes adquirem todo o direito, desde que o não façam com recurso à violência física – o que jamais aconteceu, diga-se –, de fazerem ouvir a sua voz. Da forma, com a intensidade e nos lugares onde entendam por bem fazê-lo. O protesto e a indignação, para serem eficazes como protesto e indignação, não podem ser bradados em surdina, cantados em becos, mastigados em vãos de escada e exibidos à socapa com punhos de renda. Precisam ser visíveis e sonoros, e, de hoje em dia, de ganhar projeção mediática. Só que cantar o Grândola, Vila Morena em tal situação parece-me um pouco desprestigiante para este grande hino-canção, tão importante para a tradição democrática e a memória coletiva dos portugueses. É que «para quem é bacalhau basta», e por isso, como escrevia alguém com piada e carradas de razão no meu mural do Facebook, mais valia cantar a Relvas A Mula da Cooperativa.

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        As faturas e a apoteose do ridículo

        Contou-me certa vez um amigo açoriano que a imagem do medo da sua mais recuada memória de infância associava três elementos: a proximidade de hipotéticos navios russos, a intervenção certa e segura do diabo e a convicção de que, por onde quer que passeasse na sua ilha, existiriam fiscais do isqueiro para o autuarem por falta de licença de uso daquela ferramenta manual de ignição, imprescindível para os fumadores, como ele era na altura. Este terceiro medo era afinal o único que tinha razão de ser: a necessidade de porte de licença para uso de acendedores e isqueiros antes de 1974 não é uma invenção de pessoas com imaginação e prova-nos de que forma, naquela época, a vigilância policial dos cidadãos combinava por vezes a rigidez do controlo com a intervenção do ridículo. O aviso, feito agora pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, de que, onde quer que se transacionem bens, poderão ser realizadas ações de fiscalização «que incidam sobre a obrigação de exigir a emissão de fatura por parte dos consumidores finais», ações que «podem ser realizadas à saída dos estabelecimentos comerciais para garantir que os consumidores exigem efetivamente as faturas pelas compras realizadas», reconduz-nos perigosamente a esse tempo. Pondo portugueses a vigiarem portugueses, de livro de autos na mão, inclusive à porta de capoeiras nas quais se possam transacionar clandestinos galináceos, ou encostados às carroças dos assadores de castanhas, como «medida de combate eficaz à economia paralela, à evasão fiscal e às situações de subfaturação». Para reequilibrar as contas do Estado, naturalmente. De volta pois à apoteose do ridículo.

          Apontamentos, Atualidade, Memória, Olhares

          Kapuściński e o socialismo

          Quase a concluir a leitura da biografia do jornalista e escritor polaco Ryszard Kapuściński (1932-2007), da autoria do também jornalista e seu antigo colaborador Artur Domosławski. Um livro que justifica um post autónomo, dados os problemas que expõe, as informações que faculta, as dúvidas que levanta sobre as duas faces, a mais conhecida e a obscura, de uma das mais importantes, e das mais eloquentes, testemunhas da evolução do mundo na segunda metade do século XX. O que hoje aqui fica é apenas um extrato de um texto escrito por Kapuściński quando, após longos anos de trabalho como correspondente da imprensa polaca na América Latina, regressou ao seu país. Na Polónia vivia-se na altura a fase de transição que mais tarde determinaria o fim do regime «socialista», e Kapuściński, velho militante comunista mas homem que conhecia muito bem outras realidades, questiona-se nele sobre a diferença entre o idealismo e a entrega dos combatentes socialistas que conhecera na América Latina, e o panorama de laxismo e ausência de convicção com as quais deparava agora no seu próprio país:

          «Ali: Devido à sua crença no socialismo, os jovens idealistas acabam muitas vezes na prisão, são torturados, são forçados a organizar-se na selva, e são por via de regra ignorados por aqueles que deveriam ser até os destinatários da sua luta. Aqui: Devido à sua crença no socialismo, os jovens carreiristas são os primeiros a conseguir um andar, um carro ou um lugar numa estância de férias. Ali: grandes ideais, o ruído metálico das espingardas; aqui: dinheiro fácil, viver indolentemente a ver televisão, passar a vida em bailes. Ali: rebelião, inconformismo, adrenalina; aqui: sorrisos falsos, mostrando apenas as caras que as autoridades querem ver. Se ali é o socialismo, aqui será o socialismo também?»

            Apontamentos, História, Olhares

            Galão escuro

            Não sou propriamente um admirador do estilo e do discurso pessoal, a meu ver um tanto obreirista, despojado de jogo de cintura e de léxico geracionalmente datado, de Arménio Carlos. E menos ainda o sou, apesar de lhe respeitar o lastro de dedicação e luta, da forma como a política sindical do seu partido tem orientado a atividade da CGTP. Mas estou inteiramente do lado de Arménio quanto a esta «questão do escurinho». Refiro-me à forma como o secretário-geral da central sindical se referiu publicamente a Abebe Selassié, o etíope que qualificou como o «terceiro rei mago» desta Troika alienígena que nos governa e empurra para o precipício. A obsessão do politicamente correto faz destas coisas: vigia até os pequenos detalhes, desvia-se do que é realmente importante, e erra o alvo com inábeis tiros de pólvora seca. Será preferível, para quem se entreteve a dissecar esta liberdade verbal, o discurso cinzento, permanentemente examinado e autovigiado, que retira humanidade ao combate político e faz de quem assume responsabilidades públicas um cidadão permanente acossado? Ou ficarão os críticos neste particular de Arménio Carlos menos perturbados com as sobrevivências dessa previsível «língua de madeira» que contamina tantas vezes, e em momentos decisivos, o seu discurso? Quando ressurgem estes fantasmas lembro-me sempre de um amigo que conheceu o antigo presidente moçambicano Samora Machel – nos anos que se seguiram ao 25 de Abril objeto regular de piadas racistas, bastante acintosas, que a generalidade dos portugueses de esquerda e de direita contava no meio de grande galhofa – e me garantiu terem sido as mais engraçadas de todas as que ouviu aquelas saídas da boca do próprio Samora. O antirracismo pratica-se e combate-se em muitas frentes, mas o policiamento severo, maníaco e por vezes demagógico da linguagem – sobretudo quando aplicado a pessoas insuspeitas de partilharem essa detestável atitude social – não será seguramente uma delas.

              Apontamentos, Atualidade, Olhares

              Delinquente

              Fotografia de eda Pan
              Fotografia de eda Pan

              «Traficava droga, assaltava lojas e esfaqueava rivais. Mas continuava a esconder o cigarrito sempre que passava por um dos amigos do pai.»

              De Galáxia de Berlindes, volume de «textos ultrabreves» de Pedro Monteiro; à venda ao excelentíssimo público em algumas das melhores livrarias.

                Apontamentos, Ficção, Olhares, Recortes

                A Voz da rádio

                No velho Programa 1 da Emissora Nacional, do tempo pré-Abril, existia uma rubrica, típica da Guerra Fria, que continha essencialmente propaganda anticomunista e se destinava a reforçar o semblante psicologicamente atemorizador da «Cortina de Ferro». Encerrava sempre o arrazoado em tom autoritário com a mesma frase, bradada por voz masculina, que dava até o título ao programa: «A verdade é só uma, Rádio Moscovo não fala verdade.» A verdade a que os portugueses tinham direito era então determinada pelo controlo ou pela vigilância das quatro estações de rádio em onda média, curta ou FM permitidas pelo regime. Do outro lado do continente, pela mesma época, para a imensa maioria dos cidadãos a questão punha-se de uma forma muito idêntica: apenas podiam ouvir rádio, em casa, nas lojas, nas cantinas ou nos locais de trabalho, através de aparelhos como este, construídos sem sintonizador, com um só botão para ligar/desligar e para aumentar ou diminuir o volume. Desta forma forçados a ouvir sempre a mesma voz. Como aquela que se podia ouvir deste lado, apresentada como certa, segura e rigorosamente indiscutível. A pesada Voz da Verdade.

                  Apontamentos, Etc., Memória

                  Oshima e a educação sexual

                  Morreu ontem aos 80 o realizador japonês Nagisa Oshima, a quem, no obituário, o Público chama com justiça «um dos mais importantes cineastas do corpo». Todavia, em Portugal, para muitas pessoas o cinema de Oshima permaneceu na memória devido apenas à exibição pela RTP, numa noite de 1991, do seu O Império dos Sentidos. O erotismo do filme, focado na relação obsessiva entre a prostituta Sada e Kichizo, o dono do bordel, gerou algum escândalo e teve destaque de primeira página, com o arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueira, a insurgir-se contra a inclusão da obra na grelha do canal público. Ficou para o futuro a sua frase sobre o que vira: «Aprendi mais em dez minutos deste filme do que no resto da minha vida». À volta da exibição de O Império dos Sentidos, tenho aliás para contar uma história igualmente curiosa, ainda que um pouco mais antiga. O filme foi estreado em Portugal em 1976, o ano de produção, e vi-o no meio de um tumulto. Dado o erotismo patente nos fotogramas que acompanhavam a sua divulgação, no cinema onde o pude ver – o velho Avenida, de Coimbra – o público era composto por uma estranha mescla de pessoas interessadas em «cinema de autor» e outras, menos dadas às artes e desinteressadas da crítica, que acreditavam tratar-se simplesmente de mais um filme pornográfico. Como não era obviamente o caso e as cenas se arrastavam sem qualquer exibição de sexo explícito, gerou-se rapidamente um tumulto, com os amantes do hardcore a manifestarem a sua indignação, abandonando a sala e exigindo aos berros a devolução do dinheiro do bilhete. Nunca soube em que ficou o episódio, uma vez que fui dos que permaneceram sentados e viram o filme até ao fim. Ainda que sem o proveito pedagógico que teria mais tarde o arcebispo de Braga.

                    Apontamentos, Cinema, Memória

                    Alien e Toninho

                    Estão a ver aquela criatura alienígena, altamente agressiva, que persegue e mata a tripulação de uma nave espacial no filme Alien, o 8º Passageiro, dirigido em 1979 por Ridley Scott? No enredo, a única forma de lhe sobreviver é destruí-la, já que na sua matriz estão uma agressividade congénita e uma vontade de morder, de matar, impossíveis de controlar, só saciadas do sangue e da carne de um ser humano se encontrarem outro a quem decepar, trucidar, mastigar e sorver. Agora imaginem que o realizador do citado filme de ficção científica era português e chamara Toninho ao monstro intergaláctico. Seria inevitável que em relação a um eventual desejo de vingança pelos crimes que este cometera se contrapusesse, entre os espetadores, um sentimento de culpa por num certo momento lhe quererem mal. Para mais sabendo-se, como se sabe, como quase todos os rapazes maus homónimos, os Toninhos humanos deste mundo, são recuperáveis, desde que se lhes dê, independentemente de serem ou não psicopatas, a dose certa de carinho e mais uma oportunidade. (mais…)

                      Apontamentos, Devaneios, Opinião

                      A responsabilidade da Samsung

                      Volto ao caso público do vídeo da Samsung que se tornou viral e inflamou uma parte do país nas últimas 24 horas. Em verdade digo, a quem nunca teve desejos fúteis e fetiches por objetos, que atire a primeira pedra à jovem Filipa «Pépa» Xavier por esta ter revelado como maior desejo para 2013 a aquisição de uma mala. Não uma mala qualquer, claro, mas uma daquelas pretas da Chanel, modelo Timeless Classic, que, para além de medonha (gostos não se discutem) e pouco prática, ascende a um custo, consoante o tamanho, que ronda entre os 2990 e os 3750 euros. Se volto a este episódio completamente banal é por me parecer terem os jornalistas e comentadores que o abordaram interpretado a partir do lado errado a onda de gozo e indignação que rapidamente o envolveu. Não, estão enganados, aquilo que caiu mal a muitas pessoas não foi o facto de a moça ter uma certa «gana de mala», que a própria, aliás, reconheceu logo como algo consumista. Nem sequer o ter proclamado publicamente tal raça de apetite num tempo em que a maioria dos portugueses faz contas, ou começa a fazê-las, ao dinheiro para pagar as necessidades mais elementares. Caiu mal e tornou-se confrangedor, sem dúvida, aquela exibição obscena, pretensamente estilosa, de tolice e de falsa politesse, mas o que aconteceu de realmente grave tem passado ao lado dos comentários. Apesar de ser tão simples detetá-lo. Grave e inaceitável foi antes, foi mesmo, o facto de uma empresa como a Samsung apresentar como modelo de um certo charme e como instrumento de apelo à compra dos seus produtos a exibição despudorada de uma total ausência de sensibilidade social.

                        Apontamentos, Devaneios, Etc.

                        Nós, albaneses

                        Apesar de já ter sido mais usada, a palavra «albanização» continua a fazer o seu curso no vocabulário político ordinário. Originalmente, reportava-se a uma vinculação às características do Estado albanês nos tempos da República Popular, proclamada no final da Segunda Guerra Mundial e governada com pulso de ferro por Enver Hoxha e o seu Partido do Trabalho. O território da Albânia, outrora local de um trânsito, nem sempre pacífico mas ruidoso e constante de povos muito diversos, servira de base de apoio nos Balcãs aos fascistas italianos e depois aos nazis. Expulsos estes, passou, após curto período de conflito civil que levou os comunistas ao poder, a fechar-se completamente ao exterior. Uma situação ampliada a partir de 1948 com a rutura completa com a Jugoslávia, à qual se seguiria, em 1961, o corte de relações com a União Soviética, e depois, em 1978, o distanciamento da China. A «albanização» tomou então dois rostos complementares: exprimiu, por um lado, a dimensão de um «Estado-pária», fechado sobre si próprio e que procurou viver de forma autossuficiente, na ignorância das mudanças que ocorriam à sua volta; e por outro, em consequência desses limites e do caráter totalitário do regime, marcou também a instauração de uma política interna de rígida contenção do desenvolvimento económico, cultural e social e de efetivo limite dos direitos individuais. (mais…)

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                          Os novos bárbaros

                          A palavra «bárbaro» deriva, como é sabido, do grego βάρβαρος, significando «não grego». Era dessa forma que os antigos helenos classificavam os estrangeiros e todos os povos cuja língua não era a sua. Começou por ser uma alusão aos persas, cujo idioma de toada gutural entendiam como um estranho e indecifrável «bar-bar-bar». Por extensão, também os romanos foram por eles designados como bárbaros. Depois, já sob o Império Romano, a expressão passou a ser utilizada com a conotação de «não-romano» ou de «incivilizado», aplicada em primeiro lugar aos hunos, aos celtas e aos diferentes povos germânicos, cujo comportamento, reputado como brutal e cruel, era inexplicável e totalmente fora dos parâmetros da sua matriz cultural, parecendo bastante ameaçador. A palavra foi-se mantendo entretanto, ao longo dos séculos, no léxico ocidental. Apesar de contestável na sua dimensão etnocêntrica, o seu uso superou em algumas significações este limite, para se vincular negativamente à classificação de todos aqueles que se opunham, recorrendo à violência ou pela força da ignorância, ao que parecia serem as conquistas partilhadas da humanidade. Ajustado, sucessivamente, a todos os que se afastavam de um ideal de paz, de bem-estar, de saber, de liberdade, de igualdade, de proteção dos mais fracos, de supremacia do interesse da comunidade ou coletivo, de defesa do indivíduo frente ao pensamento único e a todas as modalidades de opressão, de desrespeito das minorias, dos excluídos, dos mais pobres e mais fracos. (mais…)

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                            Depardieu já não mora ali

                            Com aquele perfil de Napoleão Bonaparte aquilino, sorridente e bem nutrido, visivelmente menos dado a cavalgadas e a batalhas que o original, Gérard Depardieu, 64 anos, grande ator, realizador episódico e agora empresário de sucesso, oferecia-nos, até há pouco tempo, uma excelente representação visual do «verdadeiro francês». No ecrã, foi o Conde de Monte-Cristo. Foi D’Artagnan. Foi Porthos. Foi Mazarino. Foi Cyrano de Bérgerac. Foi Jean Valjean. Foi até o gaulês Obélix. E ficou para sempre, já do lado meridional dos Alpes, como o inesquecível Olmo Dalco, protagonista pobre do 1900, de Bertollucci. Durante anos viveu também como um homem de causas, tendo apoiado em 1987 a reeleição de François Mitterrand, que lhe aplicou na lapela o emblema da Legião de Honra.

                            Entretanto engordou bastante, tornou-se empresário vinhateiro e hoteleiro de sucesso, investiu empenhadamente na bolsa, e, em 2007, passou-se para o outro lado da História, apoiando a eleição, e depois a frustrada reeleição, de Nicolas Sarkozy. Pelo meio foi-se tornando um Olmo bem-sucedido na vida, arrivista e colérico, e de tal forma podre de rico que foi um dos alvos da lei Hollande destinada a taxar poderosamente os franceses que juntam muito mais dinheiro do que aquele que conseguem contar. Por isso se mudou para a Bélgica, onde a intervenção fiscal do Estado é consabidamente mais branda. E agora acaba de, apenas em duas semanas, obter de Vladimir Putin a nacionalidade russa. Pode ser que, nas suas queixas de contribuinte, tenha até algumas justificadas razões de queixa. Mas da imagem futura de egoísta, vira-casacas e oportunista já não se livrará mais. E no nosso imaginário partilhado deixou para sempre de representar uma certa «França francesa», heróica, democrática e combativa. Dá pena mas a escolha foi dele.

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                              O ódio

                              Fragmento de uma das novelas-testemunho mais terríveis que alguma vez li: O Tchekista, de Vladimir Zazúbrin, editado pela Antígona com tradução de António Pescada. O livro, depois de cortado e emendado por imposições do censor, foi originalmente publicado em 1923. Acompanhado de um prefácio saído da pena de um tal Valerian Pravdúkhin, no qual se declarava que a obra «ajudará os verdadeiros revolucionários a cauterizarem definitivamente em si mesmo os “espinhos” herdados do passado histórico, para se tornarem intrépidos engenheiros da transformação inevitável do seu ser». Enquanto «os pequenos-burgueses se assustarão» inevitavelmente «diante deste desenho de traços carregados», pois «não foi para eles que a revolução abriu as suas amplas estradas verdes para os longes radiosos, para o oceano da sociedade sem classes». Zazúbrin, nasceu em Pensa, a sudeste de Moscovo, no ano de 1895, ajudou a preparar a revolução bolchevique, foi o primeiro presidente da União Siberiana de Escritores e, apesar dos elogios que no início da carreira literária o próprio Lenine lhe fizera como escritor «de um novo tipo», terminou fuzilado em 6 de Dezembro de 1938, no auge do Grande Terror estalinista.

                                Apontamentos, Democracia, História

                                Imaginem lá

                                Lembro-me bem de todas as meias-noites da mudança de ano. Mesmo nos momentos difíceis, ou naqueles mais tristes, sem presságio de futuro ou com morte próxima, elas aconteceram em ambientes partilhados de bem-estar e de esperança. Até aquela, irrepetível, passada enregelado e à luz de uma vela, na casa clandestina, a comer fatias de um bolo-rei minorca misturadas com cerveja choca. Quando a televisão mudou os hábitos e, no tempo do regime velho, se passou a mostrar ao povo o réveillon dos ricos, de fato completo ou vestido de noite – exibindo alegria de circunstância entre cornetas de plástico, serpentinas, chapéus cónicos, pandeiretas e línguas de sogra –, havia ainda assim uns minutos para sair à rua e olhar os artifícios de fogo lá no alto, no céu. E para ouvir os cláxones dos carros, as pancadas nos tachos e nas panelas, os votos gritados de bom ano, os estampidos secos das rolhas, sob o clarão festivo da luz pública.

                                Este ano, porém, e pela primeira vez, fui à varanda para dar de caras com um quase silêncio, a rua quase deserta, as janelas com as cortinas corridas, uns petardos pobres, isolados e sem graça alguma, a fazer de conta que assinalavam um momento especial. Engoli então a minha dose de passas com uma sensação de perda. Aquilo que estamos a viver faz-nos assim, mais tristes e semi-mudos, menos esperançosos, mais pobres e inevitavelmente inseguros, enquanto escutamos aqueles que escolhemos para organizarem a esperança de todos a prometerem-nos o pior. Se não para todo o sempre, dizem eles de olhos no chão, seguramente até ao fim das nossas vidas. E das vidas dos que vierem depois. Expiando, porque merecemos, o pecado de termos um dia confiado em que a cada trânsito do calendário se seguia um futuro. Um futuro melhor, mais feliz, imaginem lá. Imagine-se lá.

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                                  Olha, é Natal

                                  Porque já fiz o mesmo, estou à vontade para olhar agora como sintoma de uma qualquer doença, eventualmente infantil, o esforço de alguns, incréus ou intransigentes, para evitarem referir-se ao Natal como data primordial do nosso calendário. Escrevem então «natal» com minúscula, evitam desejá-lo «Bom» aos outros, preferindo falar de felizes «Festas», consideram a Consoada coisa para idosos semiadormecidos e a parafernália do presépio cristão como uma brincadeira de crianças, de ociosos ou de retardados. Para mim, um ateu graças a Deus convicto, o Natal, enquanto episódio simbólico fundador do cristianismo, conserva um lugar central na agenda da vida coletiva, na organização dos afetos partilhados, e, acima de tudo, na construção da identidade cultural desse Ocidente que escreveu a sua própria história e a sua tradição. Bem sei, como Roger Garaudy um dia escreveu, que ele, o Ocidente, «é um acidente», mas este deu-se, aconteceu, e agora estamos todos envolvidos nas suas peripécias e consequências. Por isso, é com pena e também com preocupação que vejo as nossas cidades e vilas quase sem as mágicas e habituais iluminações da época, as paredes exteriores das casas ainda mais nuas e frias, sem «Pais Natal» anafados e vemelhuscos a tentarem desesperadamente escalá-las, as lojas de prendas semivazias ou com produtos de saldo. E que encontro muitos milhares de compatriotas, tantos deles agora desempregados, sem o suplemento de esperança e de breve bem-estar que nesta altura lhes oferecia o magro mas quase sempre merecido e seguro… subsídio de Natal.

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                                    Les artistes

                                    Praticamente ninguém fala deles, embora não sejam invisíveis. A não ser quando falam deles próprios, em monólogo. Ou então para os seus. É fácil perceber o porquê desse silêncio e desse insulamento: a sua voz sem valor acrescentado, «inútil», é depreciada pelo discurso dominante, particularmente nestes tempos de «salve-se quem puder» que acompanham o naufrágio coletivo. É também ignorada por quem passa ao lado do universo infinito mas peculiar que habitam. Não «produzem valor», não são «competitivos», não lutam como lobos por um lugar ao sol, não têm como mola vital o desejo animal de sucesso e riqueza a qualquer preço. Não vivendo do ar, o reconhecimento de que precisam é principalmente o dos espetadores, o dos leitores, o do público que entra e sai. Porque, como cantava Ferré, Léo Ferré, «ce sont des gens d’ailleurs». Gente de outro lugar.

                                    São os que vivem da criação e das artes. Que apenas precisam de tempo e meios essenciais para escrever, para representar, tocar, montar espetáculos, pensar. Muitos sacrificaram «carreiras de sucesso», empregos estáveis, bem-estar material, até pequenas heranças, para habitarem, quase sempre com pouco dinheiro mas amor pelo que fazem, nesse universo que vive de e para a imaginação e a representação do mundo. Mas preferiram viver assim, sabendo que jamais seriam ricos, para fazerem aquilo de que gostavam. Viviam no entanto remediados pois, apesar de se alimentarem de trabalhos ocasionais e precários, sabiam que depois de um viria outro. Com tudo à sua volta a desabar, sem apoios para a sua arte, com menos público, ficaram agora mais sós e desamparados que nunca. Sem segurança material, reserva para a velhice, uma noção de futuro. Sujeitos a fazer qualquer coisa, menos aquilo que foi da sua escolha, para terem o pedaço de pão que lhes cabe. Num país para todos ainda mais triste e sem luz. Até que…

                                    Adenda: Já depois de escrito este post fui recuperar este.

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