Através de um artigo que me foi enviado, acabo de tomar conhecimento da edição em França, ocorrida em setembro do último ano, do livro Oublier Camus (Esquecer Camus), da autoria de Olivier Gloag, académico francês que ensina em Ashville, EUA, na Universidade da Carolina do Norte. A sua preocupação central é denegrir a personalidade e a obra de Albert Camus (1913-1960), um dos autores do século XX mais lidos em todo o mundo, e também um daqueles que, pelo seu humanismo e preocupação com a dimensão ética da política, maior e mais duradoura influência tem mantido ao longo do tempo, incluindo até hoje, mais de seis décadas transcorridas após a sua bem trágica e prematura morte.
Ao contrário de muitos provérbios populares que expressam verdades do saber comum, o «gostos não se discutem» não faz grande sentido. Até porque, como já li algures, e tendo a concordar, «a vida é a luta pelo gosto». Refiram-se estes a comida, cores, vestuário e odores, ou a pessoas, atividades, partidos e clubes de futebol, ou ainda a música, livros, filmes, ideologias e religiões. Dada a diversidade de culturas, experiências e do próprio humano, temos o dever de aceitar os gostos dos outros, mas não podemos isentá-los de discussão, ainda que esta jamais chegue a uma conclusão unívoca. De outra forma, tudo teria o mesmo valor e seria, como dizia uma expressão vulgar hoje caída em desuso, «igual ao totobola».
Coimbra vai ter a tranquilidade da sua vida habitual profundamente afetada durante quase uma semana. Ruas centrais cortadas, circulação condicionada ao longo de vários dias, hotéis lotados, bairros inteiros com o acesso limitado a moradores, dezenas de milhares de ruidosos forasteiros na cidade. Ao mesmo tempo, em muitas conversas e na imprensa local o momento é tratado como se de algo de extraordinário para a paróquia se tratasse. O motivo é um conjunto de concertos da banda londrina de rock alternativo Coldplay, em 27 anos de vida com apenas dois álbuns de êxito junto da crítica: «Parachutes», de 2000, e «A Rush of Blood to the Head», de 2002, que repetia já a sonoridade do primeiro.
Em ‘Para que serve a poesia hoje?’, Jean-Claude Pinson tenta responder a uma pergunta atual: «O que pode ainda a poesia, quando as suas ilusões líricas do passado recente (proporcionar uma vista desimpedida para o Absoluto, “mudar a vida”…) foram desacreditadas?» Com uma intensidade ampliada quando na ordem-do-dia se encontra a eliminação por decreto – e por organizado descrédito – do que se revela supérfluo, daquilo que não possui valor de uso nem serve para trocar por papel-moeda ou linha de crédito, não podendo aplicar-se a reduzir défices, a aferir «competências efectivas» ou a cumprir «objectivos estratégicos», importa olhá-la como território da clarividência e de resistência, não meramente onírico ou projetado para a evasão, que jamais deixou de ser, mas deve reassumir.
O músico Roger Waters, um dos fundadores dos antigos Pink Floyd, é claramente uma pessoa com uma orientação política incomum no seu meio. Está no seu pleno direito, e algumas das posições que toma até poderão ser em parte justas. Mas duas delas são obviamente erradas e nocivas, embora ambas coincidentes com as que defende como suas aquela franja, autoproclamada «de esquerda», para a qual tudo o que se oponha aos EUA é por uma boa causa e merece defesa, seja quem for que o faça e a forma como o faz.
Como a maior parte das pessoas sabe, embora nem todas levem esta perceção às últimas consequências, ficção e realidade constituem dimensões diferentes, ainda que sempre se misturem. Seja no domínio dos factos, das representações ou da linguagem. Jamais a ficção pode prescindir da realidade, pois é esta que lhe fornece os códigos básicos de comunicação. E jamais a realidade pode dispensar a ficção, pois sem ela não passaria de um conjunto de ocorrências mecânicas e sem sentido algum. Por isso não é possível deparar com ficção ou com realidade em forma pura.
Na arte, como na política e na vida em geral, o novo requer sempre impulso, ousadia, experimentação, por vezes a árdua capacidade de provocar, de remar contra a corrente ou de saltar sobre ela. Durante duas décadas e meia organizei todos os semestres na minha faculdade, em aulas de disciplinas de história cultural contemporânea, três horas de exposição e debate sobre o nascimento e o papel das vanguardas ocidentais sensivelmente entre 1910 e 1970. As estéticas, as filosóficas, as políticas e as vivenciais. Costumava alertar os alunos, todavia, sobre como sempre foi fácil – e mais ainda no tempo mais próximo – elas serem recuperadas pelo sistema de mercado e pelo pensamento dominante. Ou então transformadas, geralmente por ignorância, em formas de repetição do que se fez há já algumas décadas atrás.
Humanos que somos, todos envelhecemos, todas envelhecemos. Uns muito depressa, outras de uma forma imperceptível. A diferença na era das redes sociais está em que não só o fazemos a céu aberto, mostrando de que modo o tempo vai marcando a nossa existência – embora exista sempre quem jamais torne pública fotografia sua -, como podemos ter à frente, usando-as enquanto termo de comparação, imagens sem rugas que chegam do passado.
Morreu esta sexta-feira, aos 91, o ator Jean-Louis Trintignant. Essencial em tantos filmes que pautaram o universo cinéfilo. Entre as 140 longas-metragens estreadas de 1956 a 2012, destaco, das que pude ver, Les liaisons dangereuses, Un homme et une femme, Z, Il conformista, Il pleut sur Santiago, mais o derradeiro Amour. E, claro, Ma nuit chez Maud, realizado em 1969 por Eric Rohmer, tão importante na construção perturbada de algumas masculinidades, entre elas a minha própria.
No campo da criação artística e literária, ou no das ideias políticas e filosóficas, a intervenção das vanguardas é fundamental para a afirmação do novo que sempre acompanha a abertura de caminhos em direções não experimentadas e fecundas. A palavra vanguarda vem, aliás, da antiga literatura militar, servindo noutros séculos para identificar o pequeno e móvel corpo de batedores que se movia muito à frente dos exércitos, reconhecendo os terrenos por onde seguiria depois o grosso das tropas ou onde se travaria a batalha, e identificando o tamanho, a capacidade e a disposição do inimigo.
Dois anos após ter visto no Canal 2 as primeiras duas temporadas de Barão Negro (Baron Noir), terminei ontem a terceira, agora na HBO. O essencial do argumento permanece: tendo como personagem central Philippe Rickwaert (Kad Merad), desenhado a partir da figura real de um político de bastidores ligado ao Partido Socialista, a série francesa – nesta dimensão, um pouco à escala da dinamarquesa Borgen – sobre os jogos de influência e poder que ao mesmo tempo alimentam e fragilizam os partidos políticos dentro do sistema representativo. Destaca-se nesta temporada a abordagem dos perigos do populismo que o sistema mediático e as redes sociais muito ampliam, bem como os problemas inerentes à dificuldade de contra ele conseguir unir as esquerdas.
Quando se fala da vida de certos artistas ou escritores, mantém-se o costume antigo de embelezar o triste e o deplorável. Vemos marcas dos trajetos desses homens ou mulheres, comuns às de tanta outra gente, por onde passa o abandono, a infelicidade, a miséria, a doença, a depressão, como pagamento de um destino que lhes concede a admiração temporária ou póstuma. Nesses momentos, os traços que em outras pessoas são marca de rejeição, codificam uma maldição que agora as torna admiradas dos comuns e lhes assegura lugar num anel superior.
Nasceu nos ambientes do intenso mundo romântico essa admiração sem freio pela grandeza da infelicidade, observada como destino dos eleitos que habitam húmidas mansardas e morrem cedo. Periodicamente reencontramo-la em documentários, palestras ou suplementos literários, onde, por algum tempo, geralmente bem pouco, as vidas infelizes e solitárias são expostas à admiração do vulgo. É, porém, a sua idealização que conta, não as pessoas reais fora desse foco momentâneo. Por isso me custa sempre olhar as tristes hagiografias escritas post-mortem.
De repente, não sei precisar em que momento, começaram a chegar-me às turmas de história contemporânea na universidade estudantes que traziam na cabeça uma grande léria sobre os «loucos anos 20». Como se a vida de toda uma década do século passado tivesse sido moldada à imagem da fruída pelo grupo diletante de Scott Fitzgerald e Zelda Sayre. Como um reverso elitista, saído da paisagem parisiense e da Riviera, do que aconteceu a milhões de humanos depois do crash bolsista de 1929. Passando para segundo ou terceiro plano aquilo que foi nesses anos a brutal exploração, as duríssimas condições do trabalho, as perseguições de natureza étnica e política e a explosão dos fascismos. Por vezes, para tentar diluir o que trazem na cabeça sobre o brilho ofuscante da vida experimentada apenas por um pequeno setor da população privilegiada de certas capitais, e para abrir espaço a uma mistura de conhecimento com consciência crítica, leio e comento este parágrafo de «A Era dos Extremos», de Eric Hobsbawm:
A frase é conhecida e recorrentemente citada, se bem que a sua origem literária seja, tanto quanto sei, desconhecida: «Por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher». Ela possui em regra uma óbvia e forte tonalidade machista, subentendendo que certos homens estão vocacionados para grandes obras, ou para grandes causas, e para terem tempo de se dedicar a elas deverão ter, na retaguarda, mulheres que arrumem a casa, vão às compras, eduquem os filhos, paguem as contas da água e da luz e lhes confiram a paz de espírito necessária para poderem dedicar-se por inteiro à nobre missão da qual se crêem investidos. Grandes mulheres, para muitas das mentes que produzem aquele juízo, serão estas, e não tanto as que concorrem com os homens por igual ou que não asseguram aos seus a devida supremacia na vida privada e em sociedade. Esta relação desigual é, obviamente, antiga, pois Plutarco, sem tomar como objecto da suas perto de cinquenta biografias uma só mulher, colocou-as sempre como fatores benfazejos ou influentes, imprescindíveis para acalmar a destemperada valentia que julgava caracteristicamente masculina.
Agora já posso escrever isto. O segundo disco de 45 rpm em vinil que comprei foi Love Me Do, dos Beatles, mas o primeiro foi Et Pourtant, de Charles Aznavour. Desde a pré-adolescência, a vida toda, sem abandonar os outros gostos, para mim «o» cantor dos amores démodés, perdidos, impossíveis, finitos, implacáveis, que foram tantas vezes aqueles que efabulei ou talvez tenha vivido. Ao longo de décadas, confesso, fui estranhamente pensando no que aconteceria no dia em que Charles morresse, como sentiria uma espécie de orfandade de alguém que não conheci, mas me ajudou tantas vezes a viver a vida. E fui construindo uma playlist improvável, destinada a esse momento, que trouxe sempre no bolso. Chegou a vez de a pôr a tocar só para mim. [Publicado originalmente no Facebook]
A desastrosa decisão da Direção-Geral das Artes e do Ministério da Cultura, traduzida na negação de apoio material a estruturas indispensáveis no campo do teatro, da música e das artes visuais, desencadeou uma tempestade que se adivinhava desde há algum tempo e poderia ter sido evitada se os critérios de financiamento tivessem sido mais transparentes, justos e realistas. Espera-se agora que a situação possa ser resolvida, pelo menos no que respeita às consequências mais gravosas para a sobrevivência de organismos culturais insubstituíveis, com décadas de experiência profissional, atividade criteriosa e reconhecimento do público e da crítica. (mais…)
Em Novos Ritos, Novos Mitos, saído em 1965, o crítico e filósofo Gillo Dorfles declara a ficção científica, entre as diversas formas de arte para as massas, como aquela que soube englobar um maior número de «constantes de época» e torná-las evidentes. Não sei se, meio século depois, podemos continuar a dizer isto de uma forma tão absoluta, mas parece hoje ainda mais claro, com a voga das grandes sagas para o cinema ou para a televisão, que existe uma dimensão em histórias e personagens de ficção científica, como parte de uma fantasia épica, que entraram nas nossas vidas e dão sentido a um certo lado do nosso imaginário partilhado. Tão saturado de realidade, tão esvaziado de propostas mobilizadoras, e por isso tão carente de um universo paralelo no qual possamos projetar a eterna luta entre o bem e o mal. É isso que faz com que, por exemplo, tantas pessoas estejam a tomar quase como uma perda pessoal a morte inesperada de Carrie Fisher, desde 1977 a Princesa Leia Organa da saga A Guerra das Estrelas. Por cuja libertação das mãos das forças imperiais comandadas por Darth Vader, Luke Skywalker e o capitão Han Solo tanto tiveram de lutar logo no primeiro episódio. Afinal, tratava-se de alguém indispensável para ajudar a restaurar a liberdade e a justiça na galáxia e esta é uma missão que muitos de nós considera essencial no mundo de verdade.
O Ruído do Tempo, último livro de Julian Barnes, é um romance histórico. Incorporando uma componente ficcional, centrada em particular nos diálogos, nos cenários, nos personagens secundários, no enunciar de subjetividades e, naturalmente, na trama narrativa, possui uma espinha dorsal que é o conhecimento histórico das circunstâncias que envolvem os factos mencionados e a biografia das figuras reais que as povoam. Em algumas obras do género a primeira componente é dominante, mas neste caso isso acontece claramente com a segunda. Barnes seguiu aqui, de forma muito próxima, a vida do compositor russo Dmitri Chostakovich, personalidade central da música do século XX, que viveu sempre uma relação tensa e ambígua como o poder soviético. Nas últimas duas páginas, aliás, refere as fontes históricas das quais principalmente se serviu.
Gira em torno de três momentos nos quais essa tensão emergiu de forma particularmente dramática, aproximando o génio criador da pessoa que a todo o instante teme pelo seu bem-estar e pela sua pele. O primeiro ocorreu em 1936, ano do início dos impiedosos Processos de Moscovo, quando a sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk, composta dois anos antes, foi acusada pelo jornal Pravda de se tratar de «chinfrim em vez de música», uma expressão de um inútil formalismo e, por isso, contrária ao dogma artístico do realismo socialista. Incidente que que forçou Chostakovich a uma longa fase de medo físico da prisão ou mesmo da execução, e depois a uma retratação pública que não deixou de o manter ao longo de décadas sob suspeita, cerco e vigilância. (mais…)