A 26 de novembro completaram-se 120 anos sobre o nascimento de Mao Tsé-Tung. A data foi lembrada em muitos lugares e em diferentes suportes, sobretudo em blogues e murais do Facebook, ou nas primeiras páginas das edições online de respeitáveis diários, mas só lhe atribuiu um destaque maior que o habitualmente concedido a uma vulgar efeméride – como a data da morte de um político ou o dia exato de uma descoberta científica – quem ainda seja capaz de reconhecer alguma coisa de positivo na intervenção pública e no legado histórico do antigo dirigente comunista chinês. (mais…)
Condenado à morte por haver conspirado contra o czar, e após ter visto a pena ser comutada para prisão e degredo quando já se encontrava perante o pelotão de fuzilamento, Dostoievski acabaria por ser deportado para a Sibéria, onde seria mantido em regime de trabalhos forçados entre 1849 e 1854. Como se tal não tivesse bastado, avaliações posteriores iriam, na terra que fora a sua, condená-lo a um novo exílio. Assim, até 1953 os manuais de história e de literatura em vigor na União Soviética repudiaram a sua obra como «expressão da ideologia reacionária burguesa individualista». O fundamento desta acusação e da condenação liminar dos seus romances não se encontrava tanto nos enredos ou na evocação neles contida de valores considerados caducos, próprios de um tempo que a revolução de Outubro pretendera vencer, mas na tipologia dos seus heróis, preocupados acima de tudo com a fidelidade aos princípios e aos objetivos morais, mesmo quando, momentaneamente, as circunstâncias («o social», como alguns diriam) os podiam, ou deveriam, fazer vacilar. (mais…)
Dostoievski declarou certa vez que as suas maiores angústias derivavam de «uma doença incurável chamada consciência». Não padecem de tal doença os moralistas de direita, insaciáveis na sua sanha de se baterem contra todas as iniciativas que têm como objetivo a expressão concreta, vivida, da solidariedade humana – não, não conta para este campeonato a sua preocupação natalícia com a caridade – quando vertem lágrimas de crocodilo pela morte de Nelson Mandela. Bem os vi, a eles ou aos paizinhos deles, muito calados e quietos enquanto o herói ocupava a cela com número 466/64 na prisão da Ilha Robben.
Álvaro Cunhal completaria hoje 100 anos. Nos últimos meses têm-se multiplicado as iniciativas destinadas a celebrar a data, evocando a vida, a intervenção e o legado daquela que foi uma das figuras centrais do século XX português. E que foi também uma das vozes mais respeitadas dentro dos setores, hegemónicos no território da esquerda e no interior do movimento comunista internacional, que pautaram a sua ação pelo «exemplo de Lenine» e pelo modelo de construção do socialismo levado a cabo a partir de 1917 na antiga União Soviética. Tais iniciativas têm assumido diferentes formas: desde uma reedição anotada dos seus escritos a livros de pendor mais ou menos biográfico, passando por estudos sobre as muitas vertentes da sua intervenção pública, dossiês nos jornais, colóquios, debates, exposições, álbuns fotográficos, filmes ou programas de televisão. (mais…)
À medida que vamos avançando no nosso próprio roteiro, cresce o número dos que vão morrendo e com eles levam uma parte de nós. Não acontece só com os familiares mais chegados, os amigos queridos, as ex-namoradas, os colegas de todos os dias, os rancores mal resolvidos, aqueles que foram parte mais ou menos sólida do nosso universo. Acontece também com os que, à distância, sem o verem, sem o suspeitarem, ajudaram a alimentar a fábula da nossa existência. De cada vez que partem, já se sabe, levam sem devolução possível alguma coisa nossa. Sem Lou Reed, a minha perfeição dos dias jamais será a mesma.
«Não sou um filósofo, só sei falar daquilo que vivi», escreveu o autor de A Peste no terceiro volume dos Cahiers. A afirmação condensa um dos dois argumentos nucleares de A Felicidade em Albert Camus, de Marcello Duarte Mathias, primeiramente editado em 1975, do qual saiu há pouco tempo uma 3ª edição revista, acrescida de um prefácio atualizado e de três novos textos. Na verdade, e tal como se empenha em demonstrar o escritor e embaixador, «raros casos terá havido de uma tão completa osmose entre um autor e uma obra e de uma tão íntima associação entre os dois e o seu tempo». Se a leitura deste ensaio explica de um modo inequívoco essa interligação, mantida por Camus em tudo aquilo que escreveu, mostra também que ela teve consequências «para o bem e para o mal, como se diz». De facto, a imposição da coerência entre a vida e a obra, forçando atitudes de independência, determinou –sobretudo no confronto com os rígidos ambientes da esquerda filo-marxista do pós-guerra que o escritor frequentou – polémicas e ruturas dolorosas com aqueles com quem percorrera parte importante do seu caminho literário, filosófico e político. O resultado foi uma proscrição que só muitos anos após a sua morte começou a ser anulada. O obituário saído no Times em janeiro de 1960 intitulava-se com propriedade «A man who walked alone». (mais…)
I thought of walking round and round a space
Utterly empty, utterly a source
Where the decked chestnut tree had lost its place
In our front hedge above the wallflowers.
The white chips jumped and jumped and skited high.
I heard the hatchet’s differentiated
Accurate cut, the crack, the sigh
And collapse of what luxuriated
Through the shocked tips and wreckage of it all.
Deep planted and long gone, my coeval
Chestnut from a jam jar in a hole,
Its heft and hush become a bright nowhere,
A soul ramifying and forever
Silent, beyond silence listened for.
…
Imaginei-me a andar sempre em redor de um espaço
Totalmente vazio, totalmente origem,
Onde o castanheiro em flor perdera o seu lugar
Na sebe em frente à casa, entre os goivos.
Lascas brancas saltaram, ressaltaram alto.
Ouvi os golpes certeiros mas diversos
Do machado, o estalo, o suspiro e o colapso
De tudo o que fora florescente e belo
Entre os ramos em choque e a ruína final.
Plantado num frasco, bem fundo, e há muito
Abatido, o castanheiro meu coetâneo
Torna-se, com a sua pujança e quietude,
Um não-lugar brilhante, alma que ramifica
P’ra sempre silente, p’ra lá do silêncio que se escute.
S.H. – De Clearances / Clareiras (Trad. Rui Carvalho Homem)
As minhas primeiras biografias eram hagiografias. Retratavam invariavelmente os biografados como santos, seres incomuns, grandiosos e perfeitos, dotados de uma vontade indómita que ninguém sabia de onde vinha. Eram quase sempre histórias de vida muito simples, condensadas para leitores principiantes e escritas de forma cândida, em boa parte influenciadas pela conceção romântica de heroísmo, que destacava os biografados como modelos de bronze diante dos quais o leitor não podia ter outra atitude que não fosse a da admiração mais incondicional. Recordo sobretudo histórias de vida de compositores, como Mozart, Beethoven, Schubert, Chopin ou Mahler, desenhadas sobre o modelo de Sísifo, o humano rebelde castigado por Zeus ao qual foi imposto o dever de cumprir até à eternidade a tarefa sempre inacabada de carregar um bloco de mármore até ao topo de uma montanha. Também eles se mostravam exímios, na vida pessoal como na sua arte, a cumprir o duro destino que no entanto, contrariamente ao que acontecera com o filho de Éolo, lhes traria a imortalidade. (mais…)
O falso conde Alessandro di Cagliostro (1743-95), Giuseppe Balsamo de seu verdadeiro nome, foi um distinto impostor, mágico e aventureiro. Filho de pobres, nascido e criado nas ruas de Palermo, viu-se forçado a fugir da Sicília após ser dado como culpado de uma série de pequenos crimes. Viajou então pela Grécia, Egipto, Pérsia, Arábia e Rodes, tendo aproveitado o périplo para estudar alquimia e a Cabala. Em 1768 encontrava-se em Roma onde casou com a (diz-se) bela Lorenza Feliciani, Serafina de petit nom. Cagliostro deambulava nessa época por muitas das maiores cidades europeias, vendendo elixires e afrodisíacos, praticando episodicamente como alquimista, fazendo-se passar por adivinho, medium e curandeiro. Nos anos que imediatamente antecederam a Revolução, era visita assídua nos palácios da alta aristocracia parisiense. A queda começou com o seu envolvimento ocasional na venda fraudulenta do diamante Necklace, tendo por esse motivo passado nove meses na Bastilha. Pouco tempo depois, em Roma, foi de novo preso, acusado por Serafina de ser herético, mágico, conspirador e impenitente maçon. Condenado à morte, viu a pena comutada em prisão perpétua no castelo de Sant’Angelo. Após uma tentativa de fuga, foi enviado para a fortaleza de San Leo, nos Apeninos, onde, praticamente esquecido, terminou os seus dias.
Henry David Thoreau (1817-1862), o poeta, o naturalista e o filósofo de Concord, Massachussetts – no tempo em que o Massachussetts era o cu do mundo e ainda por ali se mantinham visíveis e transitáveis as antigas pistas índias –, foi professor e explicador, depois fabricante de lápis, preceptor, jardineiro e agrimensor. Gostava porém, de uma forma irónica e profundamente poética, de se apresentar publicamente como «inspector das tempestades».
George Orwell conviveu toda a vida – porque a percorreu na fase mais crítica da inquietante «era dos extremos» que preencheu a parte maior do século vinte – com a hostil incompreensão sempre dirigida aos que pensam de forma pessoal, definindo um padrão de comportamento ético avesso às absolutas certezas, à ditadura das maiorias ocasionais ou à orientação mecânica dos cata-ventos. Por isso a sua ação, as suas convicções e a sua memória foram sempre, tanto durante os anos de intensa atividade como jornalista e escritor quanto (e talvez sobretudo) após a sua morte, acompanhadas de difamações e de equívocos, certas vezes de rancores completamente insanos. Embora o tenham sido também de paixões profundas por parte de quem se foi aproximando dos ideais libertários, do amor pela humanidade do mundo e do direito ao testemunho que Orwell sempre reivindicou. Mas a semente do mal foi permanecendo: os conservadores e a direita julgaram-no e julgam-no como perigoso esquerdista, enquanto a esquerda estalinista e os «idiotas úteis», subservientes do velho Kremlin, bem como os seus esparsos herdeiros contemporâneos, o consideraram um «espião», um divisionista e um snob. (mais…)
Ao mesmo tempo que a vida de Abraham Lincoln tem sido objeto de um interesse frequentemente imerso em estranhas lendas e narrativas muito diversas, o seu assassínio tem-se debatido, como parte da mitografia americana, com um sem-fim de teorias da conspiração. Talvez por isso, no recente Lincoln, filmado por Steven Spielberg e protagonizado por Daniel Day-Lewis, o episódio tenha sido omitido, dele aparecendo apenas, e mesmo no final, uma mera referência. E no entanto, se fosse intenção do realizador atribuir ao crime consumado no Teatro Ford, em Washington, um lugar central, bem mais intrincada seria a trama e a complexidade dos personagens envolvidos. O Assassínio de Lincoln, um livro que anda por aí nas livrarias, escrito como um policial mas recheado de informação fidedigna, cumpre pois o papel de catalisador de informação, não tendo sido por um acaso que durante mais de um ano ocupou o primeiro lugar da tabela de vendas do New York Times na área da não-ficção. (mais…)
Jamais possuiu corpo físico, dado ter preenchido a sua inusitada vida como herói dos romances de Maurice Lablanc (1864-1941). Mas Arsène Lupin, fora-da-lei com lugar cativo nos camarotes da Opéra, na Wagons-Lits ou nos melhores hotéis de Paris, Londres e Veneza, teve uma existência intensa. Elegante e sedutor, adepto do vegetarianismo (e no princípio do século passado!), dos banhos turcos e dos pijamas em seda, amigo de Diaghilev, Poincaré e Caruso, evidenciou sempre um sentido de humor que associava sem peso ou medida ao lado pueril que tem sempre o desafio. A inteligência, a destreza e a coragem, essas usava-as para perturbar a ordem da distribuição da propriedade, espoliando os ricos para ajudar aqueles que considerava «perseguidos e inocentes». Tem, por isso, um lugar reservado no estranho panteão dos anarquistas aristocráticos. E também por isso conquistou vida própria.
A partir deste sábado Lisboa passa a contar, junto da Quinta das Conchas, ao Lumiar, com uma Avenida Álvaro Cunhal. Têm-se multiplicado as palavras de aprovação ou de impugnação perante esta iniciativa, numa lógica de frágil debate e de forçada comparação que perde o sentido se observarmos a grande variedade das referências toponímicas a cidadãos que foram políticos e estiveram associados a diferentes convicções, o que é próprio de um país com história e que vive em democracia. Não atribuindo demasiada importância a este tipo de querela sobre o passado comum, concordo em absoluto com esta escolha aprovada formalmente pela Câmara lisboeta. A meu ver, ela justificaria até uma artéria ou uma praça mais central, na qual a designação e a memória do evocado se pudessem tornar mais visíveis e marcantes. Uma rua ou uma praça que percorressem regularmente muitos milhares de lisboetas e forasteiros, por onde pudesse passar a Volta a Portugal em Bicicleta, onde fosse possível marcar encontros amorosos e expressar em alta voz a vontade ou o protesto coletivo dos cidadãos. (mais…)
Do fundo do baú deste blogue, irei recuperar alguns dos posts da série-catálogo «Vidas Exemplares». Estamos todos a precisar de modelos.
Pelos finais do século XIX, Alexandre Marius Jacob (1879-1954), o autoproclamado «ilegalista pacifista», resolveu dedicar-se a tirar «aos que não produzem nada mas têm tudo» para dar «aos que produzem tudo e não possuem nada». A sua vida de assaltante, iniciada em 1894 com a formação do bando «Os Trabalhadores da Noite», destinado a espoliar os «parasitas sociais», jamais foi a do simples criminoso, pois sempre anunciou que as suas acções se voltavam contra a classe dominante e contra «o mais iníquo de todos os roubos», a propriedade individual. Uma percentagem do dinheiro roubado era destinada à causa anarquista e aos camaradas em dificuldades. «O roubo é a restituição», escreveu uma vez no jornal libertário Germinal, parodiando a conhecida frase de Proudhon que equipara a propriedade ao roubo. Com grande sentido de humor e eterno porte de cavalheiro, virá a tornar-se em 1907, para Maurice Leblanc, no modelo ficcional de Arséne Lupin, o gentleman-cambrioleur que fazia questão de troçar da polícia e dos poderosos. (mais…)
Um dos fatores determinantes para a conservação da imagem pública positiva deixada por Santiago Carrillo (1915-2012), o antigo secretário-geral do PC espanhol, é-nos descrito com todos os detalhes por Javier Cercas na sua Anatomia de um Instante (Dom Quixote). Quando, em 23 de fevereiro de 1981, como parte de uma conjura militar contra os avanços da «transição democrática», um destacamento da Guardia Civil espanhola comandado pelo teatral tenente-coronel Tejero Molina ocupou pelas armas o Congresso dos Deputados, em Madrid, apenas três homens presentes no hemiciclo resistiram às ordens dos insurrectos para se deitarem no chão e permanecerem quietos: o primeiro foi o velho general Gutiérrez Mellado, o então ministro da Defesa, antigo militar franquista olhado pelos sublevados como um traidor, que resistiu com coragem e dignidade às ordens de Molina; o segundo foi Adolfo Suárez, primeiro-ministro em exercício, um ex-falangista com comportamento de señorito também convertido ao processo de democratização. E o terceiro foi Carrillo, como chefe dos comunistas o alvo natural dos militares golpistas, que assumiu uma atitude heroica ao resistir também às suas imposições, deixando-se ficar sentado e aparentemente imperturbável a fumar o seu cigarro. Uma atitude que lhe valeria depois o respeito de muitos adversários e contribuiria para ampliar o destaque que teve como figura central da estabilização, no pós-franquismo, da Espanha democrática. Como um simpático idoso, democrata de sete costados, que apenas uma minoria se atrevia a questionar. (mais…)
Num tempo em que os rostos mais ativos e reconhecidos da coisa pública, em particular aqueles que integram os partidos do chamado arco da governação, pertencem já a uma geração que cresceu e se formou politicamente em democracia – não tendo vivido o risco da perseguição pessoal ou da privação da liberdade devido às suas opiniões ou escolhas políticas – é bom ter à mão uma obra como esta biografia de Jorge Sampaio, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira. O primeiro grossíssimo volume, dos dois previstos, foi lançado em novembro passado. A justificação mais imediata do seu interesse, associada a esse défice geracional de memória, não é difícil de determinar: ecoa aqui o percurso pessoal e político de um homem independente, embora sempre alinhado à esquerda, iniciado numa altura, a da fase final do Estado Novo, na qual adotar essa escolha política requeria coragem, e prosseguido depois num tempo, imediatamente posterior à instauração do novo regime em 25 de Abril, em que a instabilidade da governação e a difícil aprendizagem da democracia exigiam uma entrega muito grande, permanente, a quem se envolvesse na luta partidária e no funcionamento das novas instituições. (mais…)
Antes ainda de ser vertida para o inglês, Ryszard Kapuściński: A Life, a biografia do jornalista e escritor polaco nascido Pinsk, na Bielorrússia, em 1932, e falecido em Varsóvia no ano de 2007, escrita por Artur Domosławski, seu antigo colaborador e também jornalista, tinha já algum impacto mundial. Não é difícil perceber os motivos desse rápido eco. Ryszard Kapuściński foi um jornalista experiente e respeitado, conhecido por ter entrevistado centenas de atores políticos de primeira linha e calcorreado este mundo e o outro. Traduzido em muitas línguas sempre com apreciáveis tiragens, tinha e conserva a reputação de homem corajoso, aventureiro, sedutor e inteligente, e que ainda por cima escrevia muito, muito bem, de uma forma literária, assumidamente poética, rara no seu meio profissional. Mas do qual, talvez devido à nacionalidade e à língua periféricas, bem como aos longos anos de relativa discrição, pouco se sabia. Por isso, poder saber-se mais, e logo num grosso volume atulhado de episódios e de revelações, transformou-se rapidamente em fator de interesse. (mais…)