De vez em quando, escutamos conversas, ou lemos textos, onde encontramos lamentos sobre a «falta de liberdade» determinada pela parafernália eletrónica, ao nível das tecnologias da comunicação e das suas aplicações, que chegou para ficar e se apoderou das nossas vidas. Se é verdade que a quantidade crescente de dispositivos, bem como as diferentes práticas de interação que estes permitem, pode determinar graus de dependência e implica um uso do tempo que vamos retirar a outras atividades – como ler em papel ou ir ao cinema e ao teatro, ou como passear, conviver e trabalhar – também o é que ampliam, muitas vezes bastante, as escolhas, o conhecimento e a interação.
Sou dos que se formaram e viveram grande parte da vida na cultura do livro e do papel, sabendo, todavia, que já se torna difícil, quando não impossível, acompanhar o mundo de hoje de uma forma próxima e atualizada se nos cingirmos a ela. Como sei que para a larga maioria das pessoas mais jovens, sobretudo no mundo industrializado, em boa parte ela já foi totalmente substituída. Porém, apesar de ter vindo nos últimos anos a doar boa parte da minha biblioteca física, ainda tenho perto de 12 mil volumes, sendo, ao mesmo tempo, leitor diário de ebooks e textos em pdf.
Como já aqui escrevi, aprendi a ler, antes ainda da primária, com a ajuda do avô paterno e através dos jornais, sobretudo do Diário de Notícias. Terá sido em 1957, pois no ano seguinte já decifrava a propaganda da campanha de Humberto Delgado. Viciei-me logo em informação e cedo passei a ler sem falha vários títulos diários ou semanários, tendo esse número crescido ao longo do tempo. Só o reduzi quando do governo da troika, pois não conseguia pagar tantos jornais e alguns tornaram-se porta-vozes do governo, deixando de me interessar. Ao mesmo tempo, estreei-me a escrever na imprensa aos 17 e não mais parei, tendo ainda, ao longo da vida, sido amigo de muitos profissionais da informação. Além disso, dei aulas num curso de jornalismo por uma década, tendo sido professor de centenas de profissionais. Isto atestará que não sou contra os jornais ou «contra os jornalistas», como certa vez li aplicado à minha pessoa.
A inovação tecnológica esteve desde sempre associada a correntes de entusiasmo e adesão, mas também de rejeição e de descrédito. Por isso precisa sempre de persistência e tempo para enfrentar a pressão da desconfiança e, principalmente, do medo. Assim aconteceu em momentos como os da invenção e da difusão da imprensa, do surgimento da fotografia e do cinema, da expansão do telefone, da rádio e da televisão, da massificação dos computadores e da Internet, ou da propagação da leitura digital. Em qualquer deles, a tendência inicial foi para a desconfiança e para o boicote, tomando-se a sua recetividade como algo que os profetas da desgraça, em defesa do «status quo», sempre consideraram mero capricho de quem apenas procura a novidade.
Não é possível ignorar – então quem for professor deverá obrigatoriamente conhecer para não ser tomado por lorpa – o «bot de conversação» ChatGPT (https://openai.com/blog/chatgpt/), aberto ao público em 30 de novembro de 2022. Existente em diversas línguas – português do Brasil também, embora em inglês seja mais completo – ele interage com perguntas e problemas colocados por qualquer pessoa, mesmo quando o que se pergunta tenha uma dimensão complexa e/ou abstrata, produzindo automaticamente textos sem erros, essencialmente bem escritos, coerentes, e por vezes até interessantes. Tudo feito por uma máquina. Isto permite, por exemplo, que agora qualquer aluno de 7 na escala de 20, durante um teste facilmente obtenha um 15. É algo assustador, sem dúvida, mas a solução não poderá ser proibir, pois a inteligência artificial, para além de ser uma criação humana, pode sem dúvida ser uma ajuda. Aliás, isto funciona também como um desafio, pois requer novas forma de interagir e também de validar e de avaliar o conhecimento. E este lado é absolutamente fascinante.
A rápida transformação nos processos de comunicação que teve lugar nos últimos trinta anos, associada ao papel dos meios eletrónicos, determinou alterações bruscas e extremas nas diferentes formas de qualquer de nós se relacionar em sociedade. À distinção tradicional entre os que procuravam o reconhecimento pessoal e o das suas ideias, e aqueles que preferiam viver no completo anonimato, juntou-se um campo híbrido intermédio e em constante expansão: o daqueles que, tendo ou não produzido «obras valerosas», podem ser escutados por bom número dos seus semelhantes.
Quando comecei a usar a Internet, nos idos de 1993, e durante uns seis ou sete anos, tudo aqui parecia positivo. Bem, quase tudo: ocasionalmente, muito ocasionalmente, lá surgia alguém mais agressivo ou oportunista a estragar o ambiente em seu proveito, mas essas pessoas compunham apenas uma pequena franja, uma vez que o anonimato era ainda raro, o reconhecimento de quem intervinha possível e, acima de tudo, existia uma ideia, então dominante, sobre o o uso deste meio como um lugar de utopia, onde era possível aprofundar o conhecimento, a criatividade e mesmo a democracia. Nessa altura ainda era impensável que alguém escrevesse algo tão negro – alguns dirão, «realista» – como o que se segue, chegado hoje por email.
A invasão da Ucrânia tem deixado claro que entre nós apenas o PCP e um grupo de pessoas que influencia não rejeitam declaradamente a decisão de Putin. Todavia, quem paute a realidade pelo que se pode ver nas redes sociais fica com uma perspetiva diferente. A este propósito, vale a pena lembrar que durante décadas, em espacial a partir do final da Segunda Guerra Mundial, os partidos comunistas que atuavam dentro das democracias representativas detiveram uma influência sempre bastante superior ao seu real peso eleitoral. Depois do 25 de Abril, em Portugal essa situação também se verificou, em particular depois de 1991, quando o PCP desceu abaixo dos dois dígitos. E mesmo hoje, quando já apenas representa 5% do eleitorado, a sua voz continua a ter um eco muito superior ao peso político e social efetivo. O que se repete na atual situação.
O Público lembra hoje um importante ponto de viragem: «Portugal passou a estar plenamente integrado na Internet há precisamente 30 anos. Foi em Dezembro de 1991, graças a uma ligação entre Lisboa e Amesterdão, e à delegação e controlo do domínio .PT em entidades portuguesas. E foi fruto da persistência de cientistas portugueses que acreditavam que a solução ideal para uma futura rede mundial de computadores passava pela tecnologia IP (Internet Protocol), que nascera nos EUA. Desde então, muita coisa mudou – tanto no país como também na rede.»
Em 1996, Gilberto Gil cantava entusiasta «Eu quero entrar na rede / Pra manter o debate / Juntar via Internet / Um grupo de tietes de Connecticut». E mais adiante: «Quero entrar na rede pra contactar / Os lares do Nepal, os bares do Gabão». Há vinte e cinco anos eram muitos, entre os otimistas e atentos à mudança, aqueles que partilhavam uma relação confiante com a Internet como ferramenta de conhecimento e informação, mas também como veículo de democracia e da luta social. Já em «Anjos Tronchos», tema agora lançado, Caetano Veloso proclama sombrio: «Agora a minha história é um denso algoritmo / Que vende venda a vendedores reais / Neurônios meus ganharam novo outro ritmo /E mais, e mais, e mais, e mais, e mais», lembrando que, «vindo desses que vivem no escuro em plena luz (…) um post vil poderá matar».
Desde que sou capaz de me recordar de interpretar as relações com os outros, sempre detestei que me «dessem conselhos». Ou, em sentido inverso, de ser eu a dá-los. Quando sinto que, por distração, tique ou cansaço, o estou a fazer, tento logo moderar o tom e mostrar que o que digo é apenas uma possibilidade, de modo algum algo de absolutamente certo e definitivo. Isto nada tem a ver com aprender com os outros, com a própria experiência, com a partilha de ideias, com a hipótese de mudar uma posição por influência alheia e com a necessidade de saber sempre mais. Tendo nascido e sido criado durante o Estado Novo, foi tempo demais a receber «conselhos», apresentados, aliás, como normas.
Ao contrário do que ocorre com algumas pessoas que conheço, muitas delas situadas no meu universo profissional, que preferem a prudência da distância e do silêncio a «conspurcarem-se» ou a «darem o flanco» no ambiente da comunicação através da Internet, em particular no das redes sociais, delas se afastando de todo – estão no seu direito, naturalmente – ou nelas se limitando a episódicas intervenções que tenham a ver com o seu trabalho, a minha experiência tem sido, neste domínio, em regra profundamente compensadora. É claro que já me meti por aqui em sarilhos evitáveis, algumas vezes por culpa própria, sendo também verdade que por estes lados me vi, e por vezes ainda vejo, forçado a conviver com pessoas que me causam urticária e que «lá fora» deixaria sempre à distância profilática de vários metros quadrados.
Mas perdi também a conta àquelas que aqui passei a conhecer melhor, que aqui encontrei ou reencontrei, ou com quem comecei a conviver, por vezes até de forma física, através do contacto humano e intelectual que este espaço proporciona. Para não falar daquelas outras com quem, por motivos culturais, geracionais ou de temperamento, a distância se mantém, mas cuja personalidade, tantas vezes rica e solidária, neste espaço estou todos os dias a conhecer melhor. Tenho até um vasto conjunto de amigos e amigas apenas «do Facebook» com quem jamais troquei uma palavra ou mesmo um «like», mas que todos os dias me dão testemunho de conhecimento, de vivência, de compromisso e de humanidade. E a quem, todos os dias também, silenciosamente agradeço a dádiva. Mesmo, o que com regularidade vai acontecendo de modo inevitável, após o seu desaparecimento.
Há dias, ao passar no suplemento literário Babelia, do diário El País, pelos resultados de um inquérito de pergunta única sobre a fase de confinamento, «O que descobriu durante este tempo?», dei com uma resposta da poeta e tradutora andaluza Aurora Luque: «Que é necessário simplificar e procurar a lentidão, o silêncio e o respeito. Que as redes sociais nos dominam e controlam e que nos roubaram o tempo verdadeiramente livre.» Colocadas no plano do senso comum, estas palavras podem parecer um tanto exageradas ou despropositadas. Afinal, o fechamento domiciliar e a redução da vida social e profissional deveriam ter provocado um abrandamento das solicitações do quotidiano, dando lugar, apesar da calamidade, a um tempo mais lento e mais tranquilo. Todavia, este cenário benévolo deve ser relativizado, dado o isolamento obrigatório ter adicionado pesados fatores de tensão e de cansaço, e também porque para muitas pessoas com atividade ligada ao teletrabalho as novas condições e os exigentes deveres profissionais acabaram por impor uma dose adicional de esforço, angústia e fadiga.
Entre Março de 1996 e Outubro de 2002 criei e mantive no ar, com o apoio de alguns amigos, mas a maior parte do tempo inteiramente a solo – daí, aliás, a inevitabilidade do seu fim – a primeira publicação portuguesa inteiramente online. Nenhum jornal o fazia nessa altura, lembro-me bem, e ainda não havia blogues. Chamava-se NON!, e tinha por subtítulo «revista crítica de opinião, ideias e artes». Era totalmente artesanal, montada «à unha» em linguagem HTML. Durante esses anos quase não tive fins de semana, pois passava-os a reunir colaborações, a editar e a melhorar a publicação. Muitos/as dos/as que por aqui me seguem talvez recordem ainda esta aventura – a revista chegou a ter vários milhares de acessos diários – e continuam por aqui. Outros desapareceram já do mundo dos vivos. Outros permanecem amigos para a vida. De um ou outro, meia dúzia, acabei por me distanciar. Não sei o que me levou a pensar hoje neste bocado de passado, mas aqui fica o registo da recordação. Deixo a lista completa dos colaboradores: quem não sabe do que falo aferirá por ela a qualidade da «coisa».
A solução do teletrabalho é, por estes dias de crise, sem dúvida útil e uma boa alternativa para a realização de tarefas urgentes ou necessárias que não podem ser levadas a cabo de forma presencial. Ela permite também testar algumas soluções que podem no futuro ser muito positivas. Levanta, todavia, problemas vários, bastante sérios até, que não podem deixar de ser enunciados e vistos com preocupação. Eis alguns deles:
Em primeiro lugar, o ritmo do trabalho tende a aumentar, dado a prestação telemática requerer maior esforço e mais tempo de preparação. Em segundo, algumas instituições estão a abusar das exigências feitas neste domínio, procurando aproveitar para de forma pública mostrar trabalho e capacidade de inovação e adaptação, o que nem sempre será positivo. Em terceiro, ocorre também um controlo exaustivo e uma vigilância excessiva daquilo que o trabalhador está ou não a fazer, apagando-se a imprescindível normalidade e a autonomia dos tempos mortos. Em quarto lugar, cria-se um espaço de potencial desumanização do trabalho, ao considerar-se que na atividade diária deve ir-se diretamente ao cerne do assunto, não se perdendo tempo com conversas pessoais que passam a ser julgadas supérfluas. E em quinto, ensaia-se um novo mundo do trabalho, que poderá levar a curto ou médio prazo a situações de desemprego ou subemprego, por se provar na maioria dos campos a suposta eficácia superior dos programas de controlo e atividade das máquinas.
Vale a pena pensar nisto, no sentido de se evitarem os abusos e de se procurem desde já vias para humanizar a situação do teletrabalho, não deixando que o provisório ou o auxiliar possa ser transformado em definitivo e em nuclear. Conduzindo-nos a um quadro distópico capaz de se aproximar dos descritos em 1984, de Orwell, ou em Metropolis, o romance de Thea von Harbou passado para o cinema por Fritz Lang. Partidos e sindicatos deveriam ter desde já uma palavra sobre o tema, não correndo depois apenas atrás do prejuízo. O cidadão comum deve também manter-se atento a esta eventual deriva.
Uso com regularidade redes de computadores desde 1992, e a Internet desde 1995, e por isso vi surgir com curiosidade e até algum divertimento o fenómeno dos hackers e o seu mundo muito peculiar. Conheci mesmo alguns, embora todos de pequena dimensão e parcas ambições. Estes, como outros que entretanto se tornaram mundialmente conhecidos – foi o caso de Kevin Mitnick, que em 1979, com 16 anos, andava já a passear-se a partir de sua casa por redes de computadores do sistema de segurança norte-americano – faziam o que faziam sempre pelo puro prazer do jogo e do risco. O surgimento de hackers abertamente criminosos ou ao serviço de Estados autoritários e de grupos terroristas foi um pouco mais tardio, tornando-se muito visível e ganhando impacto global sobretudo a partir da viragem do milénio.
A sua forma de agir, dinamizada pela curiosidade, pelo conhecimento e pela compulsão, tende cada vez mais a ser colocada ao serviço do crime e de formas de poder e de contra-poder que os utilizam em proveito dos seus interesses, causando com frequência prejuízos enormes a governos, a instituições e mesmo a simples cidadãos. Todavia, aqui como na lenda do bom ladrão, que «rouba aos ricos para dar aos pobres», existem também hackers que se servem do seu saber e a sua curiosidade de um modo que pode ser usado nos combates pela justiça e pela verdade. Assim aconteceu, por exemplo, com os casos de Julian Assange, Edward Snowden ou agora talvez Rui Pinto. Não os vejo como grandes e maravilhosos heróis mascarados ou de chapéu emplumado, como o Zorro ou Robin dos Bosques, mas as suas iniciativas podem e devem ser usadas na agilização da luta contra o crime organizado e os regimes autoritários.
Esta crónica ocupa-se de um universo que muitos rejeitam ou consideram irrelevante. Não posso discordar mais desta atitude. Como acontece com o telefone ou a televisão, podemos virar as costas às redes sociais, mas não podemos viver sem elas. Oferecem excelentes possibilidades de aprendizagem, partilha e divulgação, bem como de encontros e reencontros, embora, é verdade, abram também espaço para a mentira, a exposição da ignorância e o ódio, levando a que frequentes vezes nos cruzemos com pessoas que na «vida real» evitaríamos. Só que existem, não irão desaparecer, e de um ou de outro modo influenciam poderosamente as nossas vidas. Por isso, não convém ignorá-las.
O enorme sucesso desta ferramenta de comunicação deve-se à facilidade de acesso, ao baixo custo e também a possibilidade de dar voz pública a quem habitualmente a não tem. Ao mesmo tempo, porém, permite que se escreva e se opine sem se ter o hábito de o fazer, podendo qualquer um afirmar o que deseje sem pensar duas vezes ou com objetivos pouco claros. É esta, aliás, a principal origem do seu perigo, sendo também por isso que muitas pessoas as rejeitam.
O tema desta crónica não é novo, mas justifica uma atenção constante. O neurocientista António Damásio considerou recentemente que as redes sociais são «uma das mais espetaculares razões de declínio da qualidade de vida», afirmando que o acesso rápido e maciço a informação mal pensada representa hoje «um risco extraordinário». A esta declaração junto uma outra, mais conhecida, expressa por Umberto Eco numa das últimas entrevistas, observando que esses espaços de comunicação «dão o direito à palavra a uma legião de imbecis que, antes destas plataformas, apenas discutiam nas tabernas, após um copo de vinho, sem prejudicar a colectividade». Para Eco, «o idiota da aldeia» ganhou assim o direito a ter voz pública, dizendo o que lhe ocorre e passando a «detentor da verdade», misturando os códigos acerca do bem e do mal, do verídico e do falso, do racional e do incoerente.