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O espelho mágico

Facebook for two

Tal como aconteceu com milhões de pessoas, só em 2010 transformei realmente em hábito a experiência do Facebook. Tendo servido de batedor na utilização da Internet fora dos centros de computação, usando-a diariamente a partir de 1994, passei por diversas fases, tanto na rotina dos processos técnicos quanto nas vias e expectativas da comunicação partilhada que é a sua essência funcional. Primeiro foi o pequeno grupo de pessoas conhecidas, saído ainda das antigas redes universitárias. Depois um colectivo alargado, com uma dimensão territorialmente ampliada mas com um volume de participantes e de tráfego que assegurava um estilo próprio do grupo reservado. O grande salto veio de seguida, no período das revistas electrónicas – geri uma entre 1996 e 2002 –, com a tentativa de usar uma ferramenta barata para chegar a um grupo ampliado mas ainda identificável. A quarta etapa arrancou por volta de 2004, com a generalização do acesso à rede, a impessoalização de uma grande parte dos contactos e depois o crescimento da opinião partilhada introduzido pelos blogues. Ao longo das quatro etapas resisti sempre a participar nos modos de comunicação em tempo real, como chatrooms, o IRC, o MS Messenger ou, bem mais próximo, o Hi5. Para ser sincero, pareceram-me sempre espaços de conversa que substituíam de maneira bastante artificial a velha e calorosa prosa de café. Com a agravante, dada a ausência de rostos, de desresponsabilizarem as pessoas pelo que escreviam/diziam, dentro de um clima um tanto insalubre, pouco compatível com a reflexão, a reserva, o prazer e a disponibilidade de cada um.

O apelo do Facebook foi diferente. Apesar do carácter egotista e publicitário dos processos usados e de muitos dos conteúdos, apesar do apelo à atitude compulsiva que bastantes vezes projecta, apesar da capacidade para arremessar para o domínio do público aquilo que cada um até agora ciosamente guardava no campo do privado – «Facebook is watching you», avisava há tempos um título da Manière de Voir –, a diversidade de processos que combina tem permitido a construção de pequenas comunidades. Capazes, sobretudo antes de se chegar ao ponto em que o número de «amigos» ultrapassa o razoável transmutando o grupo em multidão, de partilhar experiências, prazeres, informações, ideias e causas. Philippe Rivière chamava-lhe há dias «espelho mágico», mas esta magia contém os mesmos dois flancos magnéticos de todas as magias: a manipulação e o encantamento. No entanto, não vejo no segundo nada de necessariamente negativo, desde que quem se deixe encantar o faça conscientemente e no uso da sua liberdade. Claro que já é mais perigoso e movediço esse lado obscuro dos «amigos» mirones que não escrevem mas registam o que escrevemos, que usam a plataforma como mera tribuna pessoal ou partidária, que ignoram a dimensão lúdica deste instrumento recuando diante da menor frase mais livre ou intimista. Mas nada disto é novo e onde há muita gente a complexidade humana sempre exponencia tanto as suas qualidades quanto os seus defeitos, aproximando, separando e reagrupando. No que me diz respeito, quando o registo informativo e questionador, divertido e cúmplice, deixar de ser possível, trocarei de arquipélago. Até lá, e enquanto o hábito não tolher a liberdade, acredito que me mantenho num caminho transitável. Com alguns recantos acolhedores.

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    Para dar o exemplo

    WikiLeaks

    Já todas as perspectivas concebíveis foram enunciadas a propósito do caso WikiLeaks e dos 250.000 documentos secretos disponibilizados pela organização ao El País, ao Le Monde, à Spiegel, ao Guardian e ao New York Times – curiosamente, o que não tem sido sublinhado, todos eles situados de alguma forma à esquerda do espectro político no panorama editorial dos respectivos países –, que os tratam e vão revelando ao mundo a gonta-gotas, de acordo com critérios e objectivos que só as suas direcções conhecerão. Um dos últimos pontos de vista, e também um dos mais divertidos, é o de Fidel Castro, para quem o episódio «pôs os Estados Unidos de joelhos» mas serve também os interesses de um punhado de meios de comunicação «pró-fascistas» que recorrem a ele «para atacar os países mais revolucionários». Entretanto, as primeiras abordagens foram naturalmente bastante simples e epidérmicas, e admito que um tanto distraidamente partilhei uma delas. Não a que antecipou um certo êxtase em relação à orgia de informação que se anunciava, mas antes aquela que nos primeiros dados avançados não via nada de mais, de particularmente novo ou de excitante. É verdade que senti, e continuo a sentir, alguma desconfiança em relação ao modo demasiado simples como tudo aconteceu e em relação aos interesses das partes envolvidas (incluindo nestas o trajecto e as motivações de Assange), mas admito que talvez tenha reparado mais no fumo do carburador do que nas condições de funcionamento do motor. Regresso pois ao assunto.

    A maioria dos artigos de jornal e dos posts surgidos em blogues distribui-se simplisticamente por dois grandes campos. O daqueles que vêm no vivaço trintão australiano um novo Che, talvez menos fisicamente atraente mas não menos bravo, e entendem que tudo deve ser dito a toda a gente. Embora alguns dos que defendem este ponto de vista ressalvem a existência de Estados com governantes gloriosamente antiamericanos onde o controlo da informação possa ser legítimo. E, do outro lado, o campo dos que entendem que os governos têm todo o direito de escolher o que é informação sensível e de a furtar aos olhares públicos, punindo quem se arrogue a dar com a língua nos dentes. Contra ambos, vejo antes o que alguns comentaristas avisados também já viram: uma coisa é o direito ao secretismo, que é uma prerrogativa de todos os detentores de alguma forma de poder e que nas questões de política internacional pode em muitos casos tornar-se inevitável, mas outra é o dever de os órgãos de comunicação livre darem a conhecer aos cidadãos as informações que lhes dizem respeito e às quais têm acesso. Por outras palavras: os diplomatas e os espiões devem ter cuidado na transmissão da informação sensível com a qual trabalham, mas se o não tiverem ninguém terá de fazer o seu trabalho por eles. Salvo, naturalmente, em situações extremas, quando a circulação de informação crucial pode colocar vidas em jogo. Não é este no entanto, visivelmente, o caso da larga maioria dos telegramas já conhecidos.

    O problema central, aquele que mais nos deve inquietar, bate justamente nesta tecla. Num artigo do último número da Wired escreve-se que «uma imprensa autenticamente livre, liberta de toda a consideração nacionalista, constitui manifestamente um problema aterrorizador, tanto para os governos eleitos quanto para os tiranos.» Uns e outros, distanciados das sociedades que governam e cada vez mais habituados a mandar por decreto, pouco ou nada atendendo ao valor da opinião pública, dão de barato que a boa governação e a boa diplomacia se fazem nas antecâmaras e nos corredores, não na praça pública, destinada apenas, idealmente, ao circo das grandes consagrações. E por isso tanto os incomoda, como incomoda os seus escribas e porta-vozes, que chegue «à cozinha» uma conversa que deveria ter sido mantida na discrição dos gabinetes. Claro que a WikiLeaks não é sinónimo de transparência, nem o seu rosto mais conhecido é propriamente um mártir da liberdade e da democracia radical, mas o que nos deve inquietar não são os resultados e as ondas de choque das suas iniciativas, para as quais quem tem nas mãos o poder dispõe sempre de boas almofadas. O que preocupa é que exista quem queira silenciá-las. Para que os vulgares cidadãos não se arroguem a meter o nariz onde não são chamados. Para que estes percebam que a liberdade de expressão tem limites, fronteiras determinadas por quem pode fazê-lo que «não devem ser ultrapassadas». E para dar o exemplo.

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      O prémio

      Capitão Haddock

      Nos meses longos e intensos que se seguiram à Revolução dos Cravos, a publicidade paga dos jornais encontrou uma invulgar fonte de receita. Muitos portugueses que por um qualquer motivo se viram acusados de terem sido agentes ou informadores da PIDE resolveram declarar em público a sua putativa boa-fé, atestando perante Deus e a Nação que jamais haviam pertencido à famigerada corporação. Um dos casos com mais impacto na época foi o do «Inspector Varatojo», que por se ter servido deste pseudónimo num programa da RTP sobre literatura policial e criminologia se tornou suspeito, como aconteceu aliás com alguns inspectores, estes dos verdadeiros, da Polícia Judiciária, das Finanças ou do Ministério da Educação, de ser agente da PIDE.

      Evoco este episódio por me ver envolvido numa situação relacionada com a nomeação para «blogger do ano» numa votação promovida pelo programa de televisão Combate de Blogs. Já aqui disse que distingo os presentes dos prémios e que me parece fazerem os segundos algum sentido quando se apoiam num colectivo e exprimem reconhecimento. Como me pareceu ser o caso, não me mexi e até estava a achar alguma piada ao lado puramente lúdico da iniciativa. Não me afligiu sequer a possibilidade longínqua de poder vir a ganhar o referido prémio. A Terceira Noite é um blogue individual, sem comentários – a média de acessos únicos diários desceu aliás quando por motivos de higiene mental acabei com eles –, escrito sem a intenção de falar para toda a gente e mais interessado em estabelecer laços com uma pequena comunidade do que em fazer doutrina e pôr os contadores a girar. Convenci-me por isso de que o número de pessoas que votariam em mim seria sempre residual. Limitei-me a tomar nota e a dormir sobre o assunto, visitando o site uma ou outra vez para acompanhar o jogo para o qual tinha sido convocado.

      Ora acontece que estando de início num honroso mas modesto lugar a meio da tabela, saltei de repente para um destacado primeiro lugar. Não pulei de alegria pois sabia que ninguém me iria dar um cheque com muitos zeros em caso de vitória. Bem pelo contrário, fiquei ligeiramente preocupado quando constatei que a esmagadora maioria dos votos tinha entrado de forma maciça algures entre as 4 e as 7 da manhã, hora na qual todos os gatos são pardos e, em Portugal, a maioria das pessoas sã de corpo e de espírito se dedica a pôr o seu sono em dia. Daí a correrem suspeitas públicas de se terem instalado «rotativas de IPs» (é quase certo, aliás) ou de eu me dedicar a pressionar cidadãos eleitores maiores e vacinados, foi um passo. Claro que tudo isto vale dois caracóis, mas admito que não gosto de ver-me envolvido em eventuais fraudes para alcançar um qualquer galardão.

      Como é evidente, as pessoas que estão na origem da votação nada têm a ver com os contornos deste episódio lamentável. Acredito por isso que compreendam ser legítimo que eu mantenha algumas suspeitas – se elas forem infundadas, tanto melhor, mas estou convencido de que o não são – e não goste de me ver atascado em terrenos pantanosos dos quais quero distância. Como diria o Almirante Pinheiro de Azevedo, nosso Capitão Haddock de carne e osso: «É uma coisa que me chateia, pá!»

      Adenda em 1/1/2011 – Espero não ter de voltar a escrever sobre este assunto (triste, embora não insignificante, dada a sua relativa visibilidade). Relato apenas um episódio que deixo à consideração de quem aqui chegar por causa dos ecos. Nas últimas horas da votação choveram mais umas chapeladas, tendo a última decorrido a segundos da meia-noite, quando seria suposto estar toda a gente a festejar a passagem do ano: nessa altura entraram mais de 200 votos, fazendo com que o meu nome cortasse a meta em primeiro e ao sprint. Como qualquer pessoa inteligente entenderá, só alguém completamente estúpido cometeria uma falcatrua tão óbvia em causa própria. Quanto aos objectivos de outrem, desconheço-os.

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        Seinfeld e o Facebook

        Seinfeld

        No mundo antigo, organizado à volta das relações de parentesco e dos laços dinásticos, as afinidades electivas, as amizades, eram excepcionais, aparecendo muitas vezes, justamente por isso, como subversivas. O cristianismo tentará eclipsar este tipo de ligação ao colocar como modelo a relação individual com Deus. Por isso também, as comunidades monásticas afastaram a amizade das regras do seu quotidiano: as ligações privadas representavam uma ameaça para a coesão do grupo e para a fé. Os humanistas, porém, retomaram-nas, construindo a primeira rede pan-europeia assente na fidelidade pessoal e numa aproximação de valores e de sensibilidades, que mantinham recorrendo principalmente à correspondência privada. Já a Revolução Francesa emancipou o valor da aproximação pessoal ao colocar a fraternidade como uma das suas divisas nucleares. A cultura da amizade de grupo chegaria décadas mais tarde, associada em parte à extensão do sistema escolar e ao serviço militar obrigatório e universal, criadores de espaços e de tempos de aproximação. Terá atingido o seu zénite nos anos sessenta, permanecendo como um vestígio ainda atraente por volta de 1989, quando arranca a série televisiva Seinfeld. A coesão do grupo dependia aí, em primeiro lugar, das cumplicidades assentes no relacionamento diário, directo e pessoal, entre aqueles que o compunham.

        Não sei se existe ou não uma linha de continuidade, nesta narrativa flash da amizade, com o universo dos «amigos» que todos os dias fazemos entre os mais de 520 milhões de habitantes – a larga maioria composta por mulheres, vá lá o Diabo explicar o porquê – que povoam o mundo-rede do Facebook. Parece que a média por pessoa é de 130 afectuosos companheiros e amorosas parceiras, o que só por si nos remete para esse conceito de «salto qualitativo» utilizado nos catecismos do materialismo dialéctico para significar uma alteração efectiva do estado das coisas. Significará esta multiplicação de «amigos» o futuro da amizade? Por mim, admito que a maioria dos quase 500 que tenho me aparece como um vulto. Simpático muitas vezes, sobretudo quando salta da penumbra e lhe oiço a voz, mas um vulto. Isto se excluir a quantidade de voyeurs e exibicionistas que passa no horizonte, muitos deles mais empenhados em multiplicar audiências do que em agregar empatias. Mas há mesmo, por ali, pessoas que não conhecemos em pele e osso e de quem, até prova em contrário determinada pelo feitio, o penteado ou o mau hálito, gostamos ou acreditamos que gostamos. Com elas, e com algumas das outras, vamos cruzando gostos e cumplicidades, defendendo causas de outro modo perdidas, trocando informações úteis e frases calorosas que só ali nos saem do tinteiro. Será isto «amizade»? Ou apenas, nesta sociedade atomizada, com as referências vindo e partindo em perpétuo movimento, «uma tentativa de encontrar um sentimento de pertença a um colectivo», como escreve a socióloga Stéphane Hugon? Assistimos ali à construção de relações de proximidade que partem do colectivo para o indivíduo e não o contrário? Pode ser esta a chave para entender a mudança? Se for assim, não será mau de todo. Basta adaptarmo-nos. E ir aproveitando os restos do mundo arcaico feito de afectos conquistados com a epiderme. Afinal Jerry Seinfeld, George Costanza, Elaine Benes e Cosmo Kramer não se conheceram no Facebook.

        [Vem um bom dossier sobre este tema no número de Outubro da revista francesa Books.]

          Apontamentos, Cibercultura, Olhares

          Um preço a pagar

          yes no

          Publicado originalmente, por convite, no Delito de Opinião

          A palavra vilipêndio quase desapareceu do nosso vocabulário. Chegou do latim vilipendĕre, composto de vilis, vil, e de pendĕre, considerar, estimar. Exprime uma atitude de menosprezo em relação a alguém. Quando tornada pública, deprecia a pessoa a quem se aplica. Não se limita a expor divergências, a contrariar opiniões: aplica-se ad hominem, contra a pessoa, servindo-se discricionariamente das palavras ou dos juízos que a possam diminuir perante os outros. Neste caminho, o vilipêndio é insulto e difamação, pois não existe qualquer intenção argumentativa. O objectivo é um só: apoucar, amesquinhar, retirar ao outro qualquer estatuto de dignidade. No limite, procurar que este perca todo o crédito, de modo a que se torne fácil isolá-lo, silenciá-lo, escondê-lo, fazendo com que muitas pessoas, honestas mas desavisadas, se recusem a lê-lo ou a ouvi-lo. «Ah, aquele tipo! Um sacana!».

          Não se trata de uma prática recente, obviamente, mas ganhou maior destaque social a partir de Oitocentos. Associada à explosão da imprensa periódica pôde então ampliar o seu efeito, servindo muitas vezes para arruinar carreiras, motivar processos judiciais, forçar duelos com um final pouco feliz. O novo meio ajudou aliás a «impessoalizar» o vilipêndio, uma vez que o seu autor passou actuar por detrás de uma cortina, ou de uma almofada, fornecida pela publicação que acolhia os ataques pessoais. Já no século XX, os servidores dos sistemas totalitários e os sectores políticos que se presumiam detentores da verdade, fosse ela «histórica» ou «científica», recorreram de um modo sistemático a este processo, apoiados na impunidade que os sistemas lhes ofereciam e na impossibilidade de exercício do contraditório.

          Na antiga União Soviética, o método foi aperfeiçoado e usado de forma contínua a partir do final da década de 1920, fundando-se nele o processo de diabolização e de apagamento de figuras que tinham sido determinantes na própria construção do poder bolchevique, como Trotsky, Radek, Zinoviev, Kamenev ou Bukarine. No Portugal de Salazar como no Chile de Pinochet, qualquer opositor era «comunista». Na Cuba do presente todo o acusado de dissídio é publicamente rotulado de «agente da CIA» ou, no mínimo, de «anti-social». E mesmo na Europa democrática o método foi recorrentemente aplicado na tentativa de isolamento e diminuição de figuras num dado momento consideradas pouco ortodoxas, como Léon Blum, George Orwell, Albert Camus, Hannah Arendt e Raymond Aron, cuja «lenda negra» ainda hoje perdura em alguns ambientes, tal o volume, a constância e o impacto das injúrias e manipulações das quais foram objecto.

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            Cibercultura, Democracia, Opinião

            O meu Facebook tem a mania

            Facebook

            Admito que a minha vida no Facebook está a ser um pouco difícil de gerir. Primeiro inscrevi-me por motivos profissionais, trocando raras mensagens com três ou quatro pessoas. Depois chegaram os amigos próximos e distantes. E os familiares directos ou afastados. Lá fomos convivendo todos naquele barco azul, num clima simples e descontraído. De seguida as pessoas a quem (presumo) de vez em quando interessa o que eu possa dizer. E aquelas pelas quais eu me interesso. De quem gosto ou de quem penso poder vir a gostar. Até aqui, tudo bem também: fui mandando uns bitaites num ambiente informal, trocando umas ideias, partilhando prazeres moderados e pequenos ódios, vendo e dando a ver. Sem problemas, num registo por vezes intimista, algumas vezes delirante. Mas nas últimas semanas estão a chegar às dezenas pessoas que não conheço, que não são amigas dos amigos, de quem nada parece aproximar-me – certas vezes, olhando o seu perfil, antes pelo contrário – pelo que a algumas destas, lamento, declino o pedido de «amizade». Quero continuar a passar por ali um pedaço giro do dia e da noite. Ou a queixar-me sem pensar se o devo ou não fazer. Não a aborrecer-me ou a ter de fazer de conta. Se fosse político profissional, pop star, vendedor da televisão por cabo ou o arcebispo de Cantuária, lá teria mesmo de falar com toda a gente, beijar criancinhas com xixi, convencer as sombras do meu perfil fidedigno, evitar «expor-me» em demasia, fazer «amigos» e conhecer pessoas aos magotes. Como não sou, em casos pontuais terei de reservar o direito de admissão. Claro que assim jamais chegarei a Presidente da Junta, mas a liberdade paga-se.

              Cibercultura, Etc., Olhares

              Um olhar participativo

              Cultura-mundo

              Ultrapassado o tempo no qual a cultura era observada como um sistema completo e coerente de elucidação do mundo, expirada a época da separação rigorosa entre cultura popular e cultura erudita, entre uma «civilização» das elites e a «barbárie» popular, eis que mergulhámos todos numa terceira fase histórica. A cultura transformou-se agora em mundo, na cultura «do tecnocapitalismo planetário, das indústrias culturais, do consumismo total, dos media e das redes digitais». Em A Cultura-Mundo. Resposta a uma Sociedade Desorientada, Lipovetsky e Serroy observam o fim da busca do sentido último das coisas, das classificações hierarquizadas, substituídas agora pelas redes, pelos fluxos, pelo mercado sem limite ou centro de referência. Todavia, «os novos tempos hipermodernos» não são aqui enfrentados com pessimismo, sendo antes observados como um território de acção e descoberta, num mundo cuja circunferência está em toda a parte e cujo centro não se encontra em lado algum. A infindável abundância de escolhas, de possibilidades de consumo cultural, permitirá assim, a cada sujeito, a produção de um universo de opções, fazendo com que o comércio de influências convenientemente programadas possa, em determinadas circunstâncias, funcionar como um instrumento libertador. A cultura-mundo desenvolve-se agora em campo aberto, podendo «mobilizar a inteligência e a imaginação dos seres humanos» e não congregar apenas o pessimismo e o ódio dos que a observam a partir de pontos de vista que já prescreveram. É preciso participar nela desenvolvendo as suas virtualidades democráticas e emancipatórias, e não ensaiar a tarefa de a destruir na tentativa vã de ficcionar uma regressão no tempo. [Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, A Cultura-Mundo. Resposta a uma Sociedade Desorientada. Trad. de Victor Silva. Edições 70, 248 págs.]

                Atualidade, Cibercultura, Olhares

                Mundimagens

                Barco

                Em Machine de Vision, de 1988, Paul Virilio anunciava a instauração de uma democracia-espelho capaz de fazer regredir as antigas formas de reflexão colectiva. Escrevia aí que «o exibicionismo e o voyeurismo, reforçando-se mutuamente, passaram a determinar o fetichismo da imagem opticamente correcta, na qual o padrão das aparências integra e remata a opinião pública». Baudrillard falava também da «condenação à morte» de toda a referência exterior à própria imagem, determinada pela sua exuberância e proliferação. Isto não me apavora, apesar de ser um rato dos papéis. Não encontro aqui ameaça alguma. Vejo só um imenso repto à nossa capacidade para projectar e ampliar mundos comunicantes. Não uma megacatástrofe, mas uma viagem desafiante em mar revolto.

                | recuperado por acaso de um post publicado há seis anos

                  Artes, Cibercultura, Fotografia

                  Da importância da maçã

                  Maçã

                  Nunca me interessei muito pelos combates jurídicos entre a Microsoft e a Apple ou pela guerra de guerrilhas entre os seus adeptos. Desde os tempos do medonho MS-DOS que vinha com o meu primeiro computador, um pesado Schneider estranhamente movido a floppy-disk, sempre me servi mais de máquinas com o sistema operativo fornecido pela empresa de Gates, mas a escolha foi condicionada desde o início: os computadores da maçã eram bastante mais caros e o acesso ao software muito mais difícil. Com pouco dinheiro para investir, eu não tinha hipóteses de escolha. No entanto, sempre vi nos Mac aquilo que vêm muitos dos seus indefectíveis adeptos: computadores-objecto bonitos, quase sempre fiáveis e com um interface invariavelmente userfriendly. Nunca deixei de me servir deles ao longo dos últimos vinte anos, embora tenham sido só o iPod e o iPhone – com a revolução que introduziram na gestão diária do velho hábito de ouvir música e da nova mania de comunicar em rede – a aproximarem-me um pouco mais dos produtos da Apple. Tal como tem acontecido com tantas pessoas.

                  Hoje ao fim da tarde, Steve Jobs, o chief executive officer da empresa irá revelar o super-guardado segredo que poderá materializar, ao que consta, o arranque para a sua terceira vida: uma máquina, leve, fina e elegante, em formato tablet e a um preço razoável, que fará conjugadamente tudo aquilo que fazem agora netbooks, iPods, iPhones e sobretudo e-books, sugerindo uma nova viragem não só na utilização diária das próteses computacionais, mas principalmente na caracterização do hábito e do acto de ler. Nestas coisas, sabe-se como é difícil ser-se bruxo ou profeta, mas a cumprirem-se as previsões dos especialistas, os apóstolos da imortalidade do livro em papel e da vida eterna da galáxia de Gutenberg irão mesmo confrontar-se, talvez como nunca antes ocorreu, com a necessidade de reverem a sua visão dos mundos comunicantes. A sua forma, irrevogavelmente datada e condenada, de taparem o sol com a peneira perante as práticas e as expectativas adoptadas com entusiasmo pelas gerações mais recentes. Quem vo-lo diz vive os seus dias entre milhares de livros, de revistas, de jornais em cartão, cola e papel. Vive deles, precisa deles, snifa-os glosando muitos e até escrevendo alguns. Mas nem por isso aceita fazer de cego ou de avestruz.

                  Depois da coisa – Consumada a saída do iPad, no essencial as expectativas criadas parecem manter-se, com algumas objecções e outros tantos factores de entusiasmo. Leia-se a propósito o que escreveu Paulo Querido.

                    Atualidade, Cibercultura

                    Google China, Inc.

                    Google China
                    Imagem: Reuters

                    A Google, Inc. não é propriamente uma corporação de anjos. Passaram já os tempos juvenis e idealistas de Larry Paige e Sergey Brin, os dois ex-estudantes de doutoramento da Stanford University que em 1996 arrancaram com o inovador e eficaz serviço de pesquisa, e nos últimos anos, para crescer e se afirmar no universo empresarial, a companhia precisou estabelecer acordos com grupos económicos e com governos nem sempre interessados na livre circulação da informação. Mas paradoxalmente esta escolha acabou por aproximar um perigo que a pode aniquilar, e por isso há que agir com algum cuidado. Acontece que, dadas as suas características, os serviços da Google requerem uma relação de confiança, um compromisso, com a liberdade fruída pelo utilizador comum, sem a qual este deixará de confiar nos serviços que utiliza, acabando por trocá-los por outros. Não quero ser cínico – nem sou capaz, obviamente, de adivinhar aquilo que passa pela cabeça dos administradores da empresa sediada em Mountain View, Califórnia –, mas estou em crer que a constatação deste perigo terá pesado na atitude adoptada pelos seus responsáveis no conflito que mantêm agora com o governo chinês. A censura sofisticada e implacável da Internet em curso na China – cujo governo continua empenhado em combinar a face mais execrável do capitalismo selvagem, que inclui até a espionagem industrial por via informática, com a vertigem repressiva que traduz o lado mais negro do «socialismo de Estado» – preocupará os responsáveis da Google na medida em que, se estes fazem cedências excessivas ao limitar da liberdade de circulação da informação dentro do imenso território chinês, irão, muito provavelmente, perder a confiança dos utilizadores e clientes no resto do mundo. E não convém arriscar.

                    ||| Publicado também no Arrastão

                      Cibercultura, Democracia, Opinião

                      «Espalhafato tecnológico»

                      Tecnologia

                      «Portugal é o segundo país entre os estados europeus da OCDE mais bem classificados no que diz respeito à sofisticação e ao acesso online a serviços públicos», escreve o diário Público. À frente de nós fica apenas a Áustria e situamo-nos acima do Reino Unido, da Noruega e da Suécia, países que habitualmente encabeçam os rankings relacionados com as tecnologias da informação. Só que em 2008 apenas 18 por cento dos cidadãos portugueses usavam serviços públicos em linha, o que coloca o nosso país em 17.º lugar numa lista de 22 países. Qualquer pessoa que não se deixe impressionar pela política do «espalhafato tecnológico», feito em larga medida de aparências, percebe que a disponibilização dos meios não tem acompanhado o seu uso regular e eficiente. No meio universitário, por exemplo – que julgo conhecer razoavelmente –, na maioria das áreas o aproveitamento dos computadores raramente ultrapassa o processamento de texto, a utilização irregular do e-mail e uma navegação muitas vezes errática. Basta observar-se como a generalidade das máquinas conserva inalterável, anos a fio, a configuração com a qual foram originalmente instaladas, sem esforço algum de personalização e de desenvolvimento. Porque não parar então com o show-off centrando-nos na formação? É muito mais útil, embora se revele menos espectacular e proporcione menores margens de lucro para os sempre prestimosos fornecedores de máquinas e serviços.

                        Atualidade, Cibercultura, Opinião

                        Guerra dos mundos

                        Guerra dos mundos

                        Acabo de instalar o Windows 7 no portátil e no computador de secretária. A tarefa foi rápida, correu muito bem, e, para já, a impressão é de que a Microsoft produziu finalmente um sistema operativo ao mesmo tempo fiável, intuitivo e atraente. O que não significa perfeito. Aliás, trabalho há anos com diversos SO em simultâneo e não conheço um sem defeitos. Talvez por isto me pareçam absurdas as sucessivas guerras travadas entre a Apple e a Microsoft a respeito da perfeição imaculada dos seus produtos. Reconheço a transparência e a beleza do interface dos produtos da maçã (sou, aliás, feliz proprietário de um iPhone e de um iPod), mas aprecio também a versatilidade e o custo mais baixo das criações da empresa fundada por Mr. Gates. Que cada uma das marcas diversifique a oferta, baixe os preços e se torne cada vez mais próxima dos consumidores, parece-me do interesse de todos (e delas próprias também, naturalmente). Por isso considero um pouco idiotas e desnecessariamente agressivos vídeos como este da Apple ou este da Microsoft destinados a ridicularizar a concorrência ofendendo ao mesmo tempo os consumidores. Tal como me parece sem sentido o sorriso de cumplicidade que diante deles os facciosos emitem.

                          Atualidade, Cibercultura

                          Woofer

                          Woofer

                          Admito que não mantenho a melhor das relações com o Twitter. Sei que pode ser uma arma estupenda, particularmente em regiões do planeta – como o Irão, a China, Cuba ou a Bielorrússia – nas quais o controlo da informação exige a quem procura fazer correr uma informação livre que se sirva de meios menos convencionais. Pode também ser útil ou até divertido na partilha diária de informação específica ou mesmo para a conversa informal. Mas não vou muito à bola com o dito.

                          As razões da minha desconfiança têm uma origem dupla. Desde logo porque o padrão das intervenções obriga a que só possa manter uma conversa com algum nexo quem disponha de muito tempo para estar ligado, o que não é manifestamente o meu caso. Este condicionamento prende-se com o número de pessoas que é capaz de escrever diariamente 30, 50, 100 mensagens sucessivas, tornando quase instantaneamente invisíveis os outros «seguidores» de quem os segue. E depois porque ocorre neste território um tipo de intervenção que sinceramente me aborrece: o das pessoas que dizem qualquer coisa para encherem os 140 caracteres e fazerem um, mais um e outro «update». Ainda que essa «qualquer coisa» seja recomendarem diariamente dezenas de livros, filmes, sites, discos, que obviamente jamais leram, viram, seguiram ou ouviram com um mínimo de atenção. Ou escreverem a alguém, em canal aberto, o mesmo que escreveriam num mail ou numa vulgar sessão de chat.

                          Por isto me parece interessante o aparecimento de uma nova rede social, o Woofer, que exige mensagens com um mínimo de 1.400 caracteres, não aceita operações de copy-paste consecutivas, e requer assim, pelo menos em princípio, uma conversa muito mais pausada e substantiva. A página principal do Woofer diz-nos aquilo que poderemos então fazer com os 1.260 caracteres mínimos que podemos agora somar aos indigentes 140 que o Twitter nos permite digitar: «evitar abreviaturas», «usar advérbios», e sobretudo ter condições para «ser eloquente». Talvez valha a pena ficarmos atentos a esta experiência, apenas a começar.

                            Apontamentos, Cibercultura, Oficina

                            Espécie de geek

                            O iPhone e eu

                            Ao usar hoje o meu caderno Sapiens, vendido como «uma réplica fiel» dos livros para notas e esboços utilizados por Rafael, Galileu e Leonardo, reparei em como o tenho desprezado nas últimas semanas. A culpa é do iPhone. Há mais de dez anos que me sirvo apenas de agendas electrónicas, e tinha até comprado há pouco tempo um utilíssimo HTC, mas as novidades do novo iPhone 3GS resolveram quase todos os defeitos da versão anterior e converteram-me. Trespassei a máquina com menos de um ano de uso, comprei o novo aparelhómetro e procurei aplicações das quais precisava, entre elas uma versão de bolso do Office que permite modificar documentos, um editor de imagem, outro para os blogues, um dicionário, uma enciclopédia, um leitor de e-books. A seguir actualizei o livro de endereços para poder usar o correio electrónico, atulhei a máquina de música, e fiquei pronto para andar com um completo computador (telefone, máquina fotográfica, câmara de vídeo e agenda também, naturalmente) no bolso das calças.

                            Só posso dizer que o acessório é mesmo magnífico, de uma utilidade imensa para quem precisa a qualquer hora, para trabalho ou lazer, de um computador eficaz e de uma ligação rápida à Internet. Desde que não se importe de mudar radicalmente determinados hábitos e de transmitir, a quem observe de fora, a impressão de passar tempos infinitos a escrever SMS. É pena o preço bastante elevado (nos EUA custa menos de metade) e as limitações da bateria (o paralelepípedo faz tanta coisa que precisa ser carregado todos os dias). Apresento a prova final de que falo verdade e de que não sou um mero mercenário da Apple: este post foi integralmente escrito, a fotografia editada, e o conjunto publicado neste blogue, sem outra intervenção que não a do iPhone.

                              Apontamentos, Cibercultura, Etc.

                              A nuvem

                              A nuvem

                              Acabo de descobrir que a Microsoft deixou de produzir e comercializar a Encarta, a primeira enciclopédia em versão unicamente electrónica. Entre 1993 e 2009, ela determinou um padrão de recolha, arquivamento e disponibilização popular dos saberes, servindo de modelo à transferência para o suporte digital de outras enciclopédias, como as consagradas Britannica e Universalis. Apesar do êxito que manteve por mais de uma década, a Encarta foi incapaz de resistir comercialmente ao efeito demolidor de uma «enciclopédia social», gratuita e colaborativa, como a Wikipedia. Esta conta hoje, e apenas na versão em inglês, com perto de 3 milhões de artigos, um número perfeitamente gigantesco quando comparado com os 42.000 artigos que podem ser encontrados na derradeira versão da Encarta. Não tem comparação com qualquer outra enciclopédia o ritmo de crescimento e o fluxo de consultas processados diariamente, minuto a minuto, pela Wikipedia, mas não deixa de ser preocupante que a fonte principal de conhecimento manipulada pela esmagadora maioria dos utilizadores da Internet seja um repositório sem autoria reconhecida e desprovido de processos de aferição da informação que recolhe e oferece. Sob a forma de nuvem, paira sobre as nossas cabeças um saber flutuante, por vezes equívoco e sujeito a constantes revisões, com a vida determinada pelo vento, cuja sombra pode ser tão estimulante quanto ameaçadora.

                                Cibercultura, Etc.

                                A leitura ameaçada

                                Leituras

                                Nicholas G. Carr, o autor de The Big Switch, aponta para uma viragem que não é ilusória: «A Internet diminui aparentemente a minha capacidade de concentração e de reflexão. O meu espírito reconhece agora as informações de acordo com a forma como a Internet as distribui: como um fluxo de partículas que escorre rapidamente. Antes eu era um mergulhador num mar de palavras; agora rasgo a superfície como um piloto de jet-ski.» Carr serve-se dos avanços das neurociências relacionados com a plasticidade do sistema nervoso para sustentar que os circuitos neuronais se adaptam facilmente a uma leitura rápida, sublinhando como este aumento de velocidade está a reprogramar biologicamente o nosso cérebro. Quando, ainda nos anos 60, Marshall McLuhan anunciou o fim da «galáxia de Gutenberg», da preponderância do paradigma tipográfico, o cenário era já previsível para os mais sagazes.

                                Mas foi a criação e sobretudo a generalização da Internet que suscitou um confronto inevitável entre o antigo modelo da leitura lenta – silenciosa, reflexiva, essencialmente individual –, e um outro, fundado agora na velocidade, no ruído, no movimento e na partilha. E também na simbiose com outros processos de comunicação. Os resultados de um inquérito recente reportaram que cerca de 80% dos adolescentes americanos são incapazes de se concentrarem na leitura sem a presença de música ou de um qualquer ruído de fundo, ou sem imagens a dançarem num ecrã, algures debaixo do seu ângulo de visão.

                                Um dos problemas que a situação transporta consigo não está no reconhecimento de uma mudança radical nas formas de percepção e nos estilos de vida, uma vez que esta é incontornável e de certa forma inevitável. Está antes nos sectores que ainda têm peso no controlo do saber e da comunicação, e a observam «entendendo» que o processo é passageiro e esperando, quixotescamente, que ele possa um dia recuar. O resultado é uma clivagem brutal entre universos e linguagens que em breve os tornarão incompatíveis, projectando cenários para um novo estado de barbárie.

                                A realidade é particularmente dramática no campo do ensino superior, em particular no das humanidades, no qual o paradigma gutenberguiano, essencialmente livresco e baseado ainda, demasiadas vezes, no arquétipo do sábio humanista encerrado no seu gabinete, permanece dominante, tanto ao nível pedagógico como nos critérios de aferição científica, em termos de orientação e de reconhecimento dos trabalhos académicos, privilegiando-se claramente nas avaliações curriculares o modelo anterior. Continua a considerar-se, em muitas ocasiões, que existe uma «leitura de distracção», decididamente inferior, a qual pode de facto transcender a comunicação em papel, e uma «leitura de informação», sem dúvida superior, que dos livros, ou pelo menos dos escritos em formato tradicional, se serve como suporte praticamente exclusivo.

                                Existe porém um outro modelo de leitura. Este implica uma hibridez de instrumentos cognitivos, de formas de saber e até de códigos de validação. E a construção sistemática de pontes entre processos e atitudes. Ele não supõe a diluição do conhecimento superior no saber comum, mas tão só o reconhecimento de que existe também um património de experiências, de dados e de saberes em relação ao qual as estratégias da investigação, da partilha e da comunicação terão de ser mais abertas. Estas devem em larga medida ser reinventadas, para que os vestígios do anterior paradigma possam sobreviver e não sejam apagados pelas gerações que estão a chegar – apetrechadas já das grandes alterações ao nível dos mecanismos de percepção – e o olham como qualquer coisa de caduco ou mesmo de incompreensível. No diálogo homónimo atribuído a Platão, Fedro, o jovem interlocutor de Sócrates, percorre distraído um texto em papiro no preciso momento em que o filósofo disserta, amargurado, acerca dos inconvenientes e dos perigos da escrita. É este corte entre dois mundos, tão absoluto quanto absurdo, que seria bom conseguirmos evitar.

                                  Cibercultura, Ensino