Na pele de sujeito diariamente empenhado na vida da ‘civitas’, apesar de não poder ficar indiferente às movimentações reivindicativas da polícia, admito que, sabendo da forma como estas estão hoje a ser instrumentalizadas pela direita – e mesmo considerando a justeza de algumas das suas reivindicações materiais – tenho procurado não olhar muito para as imagens que delas nos chegam. Fi-lo ontem e o que vi apenas confirmou aquilo que já sabia e, para não me incomodar, fazia por evitá-lo.
Viver numa cidade média tem as suas vantagens. Uma delas é quem nela mora demorar pouco tempo a deslocar-se, nada ficando distante, em regra, mais que 15/20 minutos do ponto em que se encontra. Assim acontece também em Coimbra, a cidade onde, retirando alguns intervalos para passear ou aprender, basicamente vivo há 54 anos. É hoje o 16º município do país em volume de população, quase apanhado, aliás, por Vila Franca de Xira, Famalicão, Maia ou a Feira. Na minha escola primária ensinavam-nos que era o terceiro, mas isso era antes, quando a sua universidade era uma das poucas em Portugal, e a elite local e académica ainda acreditava habitar o centro do mundo.
Para o franco-norte-americano George Steiner, um dos marcadores centrais de uma certa «ideia de Europa» foi desenhado pelo roteiro dos cafés, desde meados do século XVIII lugares ímpares «de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos», como escreveu o filósofo num curto ensaio sobre o tema. Abertos a todos desde manhã cedo até quando as ruas ficavam quase silenciosas e desertas, funcionaram até há relativamente pouco tempo, desde Odessa até Lisboa, passando por Viena, Paris ou Barcelona, sempre à sombra da antiga influência turca, como espaços-fortaleza de sociabilização e de reconhecimento identitário, por vezes decisivos na evolução política e cultural das cidades e dos Estados.
Numa tarde do final de abril de 1945, quando uma equipa de soldados norte-americanos fez explodir perante uma câmara de filmar a suástica de ferro e granito que em Nuremberga encimava o Estádio onde tinham sido encenados os gigantescos comícios dos congressos do Partido Nacional-Socialista, asseverou-se perante o mundo a derrocada do devaneio imperial de Hitler. Onze anos depois, durante o levantamento popular antissoviético de Bucareste que teve o apoio dos comunistas reformistas húngaros, uma das primeiras iniciativas da multidão em fúria foi a demolição da estátua colossal de Estaline erguida à entrada do Parque Városliget. Estes dois episódios de iconoclasia – replicáveis à escala dos largos milhares – podem ser invocados contra o receio de que da destruição de peças monumentais tomadas como símbolos de uma ordem política detestada resulte forçosamente um apagamento da História. Pelo contrário, assinalaram escolhas julgadas necessárias, adquirindo um peso histórico próprio.
Nada que não fosse de esperar: a atitude estrábica de usar aquilo que de horrível está a acontecer em alguns estádios e ocorre em clubes de futebol num amargo ramerrão (este sim, «pseudo-intelectual») contra o futebol. Desporto do qual, como do ténis ou do hóquei no gelo, como de um quadro pós-impressionista ou de uma ópera de Wagner, como de uma pessoa ou de uma experiência, se pode gostar ou não, dele ter boas ou más recordações – Camus, que foi guarda-redes do Racing de Argel, dizia ter sido o futebol a ensinar-lhe a verdadeira dimensão da ética do dever – mas onde a maldade chega apenas por interposição de outros e bem perigosos interesses. Não por intervenção das regras do jogo ou da paixão desmesurada do adepto comum. Sobre este, aqui fica um texto de Eduardo Galeano, incluído no belo ‘Futebol ao Sol e à Sombra’.
Um divertido texto de Tony Judt publicado em O Chalet da Memória, de 2010. Onde se aprende muito sobre alguma das transformações sociais e culturais ocorridas na Europa durante o período que imediatamente antecede e sucede à Segunda Guerra Mundial. Tradução parcialmente apoiada na publicada pelas Edições 70.
Para a minha mãe, o meu pai era «obcecado» por carros. Para ela, a eterna fragilidade da nossa economia doméstica devia-se à tendência do marido para gastar com eles as nossas poupanças. Não posso avaliar se ela tinha ou não razão em relação a isso – é evidente que, deixada por conta própria, teria limitado a família a um carro pequeno por década, se tanto – mas mesmo aos olhos compreensivos de um filho que o admirava, o meu pai parecia de facto viver absorto com os seus carros; especialmente com os Citroën, a marca francesa cujos produtos idiossincráticos enfeitaram o pátio da frente da nossa casa durante a minha infância e adolescência. Tivemos uma ou outra ocasional aquisição inglesa, feita por impulso, da qual rapidamente nos arrependemos – um Austin A40 descapotável, um AC Ace desportivo -, além de um capricho que durou algum tempo com um DB Panhard, do qual falarei mais à frente; mas durante anos Joe Judt conduziu, consertou e falou sobre Citroëns.
Dadas as suas condições específicas, as eleições autárquicas estão, por vezes, associadas a limites que podem relativizar bastante o sentido democrático dos seus resultados. Por um lado, a personalidade ou a imagem pública dos principais candidatos tem com frequência uma influência desproporcionada nas escolhas dos eleitores, sobrepondo-se muitas vezes ao compromisso político que estes assumem e que, esse sim, deveria ser decisivo. Por outro, o peso dos partidos tem localmente, também demasiadas vezes, uma dimensão identitária que secundariza em boa medida a sua natureza ideológica ou programática. Estas duas condicionantes, aparentemente contraditórias, mas em certos casos complementares, produzem duas distorções muito comuns. (mais…)
1. Tenho escrito sobre a decadência real da cidade onde moro e onde passei a maior parte da minha vida. Aquela que, ao contrário da ilusão que é mantida, passou de 3ª a 15ª do país. Apesar das potencialidades que contém, nas mãos do velho «bloco central» – que aqui perdura, pois, dadas as escolhas locais do PS e do PCP, não há «geringonça» possível em Coimbra – a cidade tem-se arrastado numa gestão à vista que a tem feito perder futuro e importância, deixando os seus habitantes numa vida real de letargia, cruzada por momentos de «pão e circo». Por isso me parece importante mudar ou, pelo menos, conter a discricionariedade arrogante da habitual governação da cidade.
2. Nas anteriores eleições autárquicas apoiei o movimento Cidadãos Por Coimbra, que agrupou militantes do Bloco de Esquerda e do MAS, bem como muitos cidadãos independentes, alguns deles ex-militantes do Partido Socialista. Esse apoio foi mantido, mas admito que foi esmorecendo um pouco. Cedo comecei a encontrar uma excessiva concentração na gestão do quotidiano da cidade, em detrimento de uma intervenção que, obviamente sem a ignorar, se voltasse mais para a construção de um projeto e de um desígnio. Não retirei o meu apoio, mas por essa razão – e também por motivos da vida profissional – fui estado menos presente nas iniciativas do CPC.
3. Por isso, quando há alguns meses o movimento viveu uma crise interna, que acabou por conduzir à saída formal ou informal de muitos dos seus fundadores e ativistas, decidi não me pronunciar. Não porque não tivesse uma posição, mas porque me pareceu mais correto (ou honesto, se preferirem), dado ter-me distanciado, não reaparecer apenas num momento difícil para debitar esta ou aquela posição. Continuo a considerar que essa divisão enfraqueceu o movimento, se não em número de votantes – isso veremos apenas no domingo – pelo menos em massa crítica. E que talvez pudesse ter sido evitada.
4. Entretanto a perspetiva crítica que atrás referi manteve-se, se não se acentuou até um pouco nos últimos meses. Não entendo a política autárquica, sobretudo em cidades como esta, com as suas caraterísticas sociológicas e a sua dimensão real e simbólica, como devendo centrar-se quase essencialmente na gestão quotidiana da vida das pessoas, dos problemas, das necessidades, devendo antes ir mais além, num sentido mais assumidamente político, claramente ambicioso, que possa mobilizar mais pessoas. E, de uma vez por todas, constituir uma alternativa. Ser mais do «por» que do «contra» e pensar sempre em grande.
5. Manter estas reservas não significa, porém, um estado de indiferença em relação às eleições do próximo domingo. Mesmo conservando algum distanciamento crítico, reconheço no atual CPC uma alternativa válida. Sobretudo por que é essencialmente composto por homens e mulheres que não têm da política local uma visão instrumental, que não se servem em vez de servir, que não se fixam em dogmas e vínculos a interesses, e que sei irão ter, nos lugares eleitos, uma atitude atenta e combativa, capaz de conter as dinâmicas autoritárias e de grupo das forças que provavelmente irão gerir a autarquia. Apontando para uma cidade outra e melhor, não sufocada pelos mesmos de sempre.
6. Por isso, neste domingo irei votar nos Cidadãos Por Coimbra. Se for eleitor/a na cidade e concordar comigo (e se discordar um pouco também), proponho que faça o mesmo.
As eleições autárquicas servem para confrontar projetos de futuro, não apenas para passar uma carta branca a quem for eleito para gerir localmente o poder. Isto significa que nas campanhas deveriam ser as ideias para a vida partilhada na sua casa comum pelos residentes, e não tanto os rostos tratados com Photoshop ou as lealdades políticas, a servir de mote ao debate e a determinar as escolhas. Partidos e movimentos de cidadãos, sendo indispensáveis como parte do sistema democrático, deveriam sempre visar esse propósito, contribuindo para esclarecer e mobilizar um voto informado e construtivo, e transformando toda a eleição na etapa inicial de um compromisso permanente com os eleitores. (mais…)
Nos últimos anos costumo ver, sobretudo nas redes sociais, onde este estado de espírito mais facilmente se revela, a expressão precoce, por parte de muitos alunos da Universidade de Coimbra que frequentam o último ano da sua licenciatura, de declarações inflamadas sobre a «saudade» que já sentem da cidade e da vida que nela real ou ficticiamente levaram. Fazendo-o ainda que aqui contem prosseguir os estudos de pós-graduação. Estão a viver o seu «tempo» – hoje tão curto, por comparação com o dos antigos cursos de quatro ou cinco anos –, e já têm saudade dele. O que é, de certo modo, um contra-senso: agem como se a sua vida se encontrasse em suspenso, pois ainda não é o que será, mas já não é o que foi. Alguns arrastam este estado de espírito ao longo de todo o último ano letivo. (mais…)
A política autárquica incorpora muito do melhor e do pior que contêm os nossos 43 anos de democracia. Com a revolução de Abril, um universo de possibilidades foi criado, à medida que a gestão dos municípios e das freguesias se tornou mais representativa, alargou as competências e ampliou os meios à sua disposição. A descentralização, ainda que imperfeita, foi crescendo, autonomizando e responsabilizando os autarcas, e aproximando-se dos cidadãos. Nada de comparável com o tempo em que era necessário criar «comissões de melhoramentos» para tratar de reparações numa escola, ou ir a Lisboa «fazer um pedido» a um ministro para abrir uma estrada. Na inauguração este ainda era recebido com filarmónica, foguetes e discursos de agradecimento. Foi um tempo de centralismo extremo e de desamparo das populações, quando obras básicas eram tratadas como singulares favores. (mais…)
A propósito da guerra, escreveu Karl Kraus (1874-1936) no jornal A Tocha: «De início um dos lados espera vencer; depois o outro espera que o inimigo perca; de seguida cada um queixa-se daquilo que está a sofrer; no final, ambos percebem que todos perderam.» A guerra é sempre iníqua e dolorosa, mesmo quando se afigura justa para um dos lados, ou até quando parece explicável, necessária e de alguma forma regeneradora. A luta dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, as guerras de emancipação do domínio colonial ou aquelas que visaram o derrube de ditaduras, seguem esta linha justa, mas nem por isso foram ou serão belas. (mais…)
É tão certo quanto a queda das folhas dos plátanos: a meio de Setembro as praxes universitárias regressam à rua e ao debate público. Assanhando ânimos em proclamações de completa recusa ou, mais raramente, de acanhado aplauso. Desta vez, porém, isto acontece com um impacto acrescido. Em parte, devido à posição assumida pelo ministro da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior, que a transformou em prescrição remetida aos responsáveis dos estabelecimentos do ensino público. Mas também porque a observação da realidade impõe um novo olhar. O tema já cansa um tanto, mas o ruído é tal que, como proclamava o refrão da velha canção, «não podemos ignorá-lo».
E porque não? As razões mais aduzidas para justificar o interesse insistem nos abusos que não podem ser ignorados ou permitidos, seja em nome de que «tradição» for. Aliás, embora mais em algumas escolas ou cidades que noutras, as praxes surgem sem alicerce histórico real, são muitas vezes inventadas e reguladas por «comissões» que vivem na sombra, e têm-se afirmado demasiadas vezes como práticas perigosas, conduzidas quase sempre por alguns dos piores alunos das academias e na margem da intimidação ou do crime. (mais…)
Texto sobre o papel da procissão do Corpo de Deus para a definição do cerimonial político do absolutismo que escrevi em 1983 para o meu livro D. João V. Poder e Espectáculo (aqui adaptado).
A procissão do Corpo de Deus foi instituída em 1264 para todo o mundo cristão pelo papa Urbano VI. A festividade começou a ser celebrada em Portugal – sempre na primeira quinta-feira depois da oitava do Pentecostes – no reinado de D. Afonso III. Viria a ganhar um brilho invulgar a partir do governo de Manuel I, sendo sempre a sua procissão aquela que de maior luxo e aparato Lisboa conheceu. O rico espetáculo que habitualmente continha, as possibilidades que oferecia como momento de dramática manifestação de fé, tornavam a sua realização num momento intensamente vivido pelo povo da capital. Porém, até ao século XVIII, o desfile religioso serviu de instrumento para a expressão combinada de crenças e tradições diversas. Sem qualquer ordem prevista, seguiam aí as autoridades municipais, os representantes dos ofícios com os seus antigos símbolos e bandeiras, as imagens sagradas, nessa altura ainda de grande sobriedade plástica. Mas também gente vestida das formas mais bizarras, figuras bestiais, indivíduos de toda a qualidade, sem qualquer distinção. Em 1493 seguiram no cortejo «o rei David, diabos, reis, imperadores, príncipes, gigantes, feiticeiros, verdadeiro concílio de cómicos e truões». E em 1669 ainda desfilavam «cervos, figuras de cavalo, invenções e danças».
Uma das amigas do Facebook que não conheço apenas da persona que sugere o seu avatar, lembrou-se de como poucos dos muitos que visitaram a Expo-98 se recordarão hoje do que lá foram fazer. E de que ninguém com menos de 20 anos saberá sequer dizer que coisa foi o evento. Ocorreu-me entretanto que em 2006, para testar a velocidade do esquecimento dos meus alunos, perguntei num curso que acontecimento tivera lugar em Portugal no ano de 1998 que, projetado também numa dimensão internacional, pela positiva ou pela negativa suscitara a atenção da generalidade do país. Nenhum foi então capaz de referir a Expo, e só depois de eu ter revelado a resposta alguns se lembraram de a ter visitado. Embora já quase o tivessem esquecido. (mais…)
De cada vez que se inicia o ano letivo regressa a polémica sobre as praxes. Acontece de forma mais intensa em Coimbra, dada a relação particular da cidade e da sua universidade com esses ritos. Raramente tem algo de estimulante e construtivo, limitando-se quase sempre a uma rude e estéril troca de palavras. Os campos afastam-se abertamente: de um lado, os que se opõem de todo às suas formas, em particular aquelas que têm ganho corpo nos últimos tempos, considerando-as obsoletas e negativas; do outro, os que as defendem de um modo irredutível como fator de inclusão e característica identitária. Entre os dois polos um terreno vasto, povoado pelos que reconhecem as antigas praxes, sem se aperceberem de como nos últimos anos estas mudaram de qualidade, por uma população em larga medida indiferente ou avessa aos seus momentos, e por um país que as olha como para uma encenação que mistura episódios de tragédia e instantes de comédia. (mais…)
Gosto muito de biografias de cidades. Sempre que encontro alguma e me parecem seguros a competência da escrita e o certeza da informação – mesmo quando esta incorpora, e isso acontece quase sempre, uma dimensão ficcionada –, não descanso até a ler. Só nos últimos anos, recordo a leitura compulsiva de obras que traçam o percurso histórico de algumas delas, distribuídas por diferentes mapas, como Istambul (Orham Pamuk), Salónica (Mark Mazower), Jerusalém (Simon Montefiore), Praga (John Banville), Rio de Janeiro (Ruy Castro), Paris (Julien Green), Nova Iorque (Patrick McGrath) ou Odessa (Charles King). De cada uma, no correr das páginas, emergiu sempre um corpo vivo, dinâmico, capaz de ultrapassar a transitoriedade dos percursos pessoais ou das gerações associados ao emaranhado das ruas e ruelas, das casas, das praças ou dos seus lugares mais recônditos. (mais…)
Numa perturbante sequência do filme Sátántangó (O Tango de Satanás), do húngaro Béla Tarr, dois homens caminham, longamente e a custo, de costas voltadas para a câmara, por uma comprida estrada de asfalto molhada pela chuva, enquanto toneladas de detritos são empurrados por um vento fortíssimo na mesma direção, envolvendo-os numa paisagem suja e destroçada, e conferindo à sua marcha um sentido de resistência em ambiente hostil. Não é difícil estabelecer uma analogia entre esta cena filmada em travelling e o presente que nos cabe.
Os sinais estão aí. Vemo-los sem olhar, esmagados pelas contas e pelos prazos: comer para viver, pagar a prestação da casa, comprar os comprimidos. Sobreviver com cada vez menos, com o essencial, na fronteira mais recuada da dignidade. Por vezes, já abaixo dela, embora procuremos convencer-nos de que assim não é. Concentramo-nos no essencial enquanto nos dizem que quase tudo é supérfluo, e tentamos não ver o cenário que se abre à nossa frente. Mas é com este cenário, novo para a larga maioria dos que têm hoje menos de quarenta anos, que nos dizem irmos conviver até um dia que ninguém sabe marcar no calendário. Num horizonte de pobreza e decadência que anuncia um país em ruínas. Não as ruínas atraentes e evocativas, na fronteira do épico e do sublime, que tanto empolgavam os românticos, nem aquelas destinadas nos delírios hitlerianos a vincar a sorte dos países conquistados, mas os restos enfadonhos, sórdidos, que vêm com o desgaste e a ausência de esperança. Que não suscitam olhares benignos ou vislumbres de futuro. (mais…)