Arquivo de Categorias: Cidades

A Ponte

A ponte

Já faz parte da sabedoria popular: o melhor e o pior do regime democrático encontram-se associados à administração localizada dos recursos. Daí a «pulsão da regionalização» ser qualquer coisa que merece as maiores reservas, mesmo quando se reconhece a justeza de algumas das razões invocadas pelos seus mosqueteiros. A teia de cobrimentos e de encobrimentos é necessariamente maior à escala da freguesia, do concelho, da região, e as coisas pioram quando o assunto é dinheiro, influência ou responsabilização. Um bom exemplo disto é o que se passou em Coimbra com a construção da Ponte Europa. Rebaptizada Rainha Santa talvez para que alguém possa inocentar junto do Criador os pecados que lhe ficaram associados.

O escândalo é público, vem desde há muito e acabam de ser revelados mais dados altamente comprometedores para quem incentivou, geriu ou conviveu com a fraude e o despesismo faraónicos. De acordo com o Público, o Tribunal de Contas classifica agora a gestão do projecto – que calcula ter tido uma derrapagem de 137 por cento, o que significa mais 41 milhões de euros a somar aos quase 30 milhões estimados inicialmente – como «muito má». O Tribunal pormenoriza o desastre: «A obra apresentou um índice de desperdício elevado, resultante de erros e falhas graves na gestão e no controlo de que se destacam: o erro de lançar a obra em fase de anteprojecto, a falta de liderança e de capacidade técnica do dono da obra, a subversão dos princípios da contratação pública (concorrência, transparência e equidade, a nomeação tardia de um gestor de empreendimento, a fragilidade de actuação do dono da obra face ao empreiteiro e a ineficácia das acções da equipa de fiscalização por inércia do dono da obra». Conclui-se que «todas estas graves deficiências contribuíram para uma gestão e coordenação do empreendimento ineficazes que resultaram encargos adicionais avultadíssimos para o erário público».

Bem sei que a gestão do projecto foi de empresas cuja dimensão ultrapassava quase sempre os limites da cidade, e que o enorme caldeirão alimentou bocas de diferentes procedências, mas é impossível justificar aquilo que se passou sem a ocorrência de fortes cumplicidades, pelo menos por omissão, ao nível local. E sem o desencadear de pesados reflexos, passados e presentes, na vida dos cidadãos e até no prestígio da cidade. Ora, diante desta enormidade agora relembrada e publicamente redimensionada, o que informa a imprensa local, a quem também competiria manter viva e necessidade de apurar responsabilidades? Calcule-se que nada. As capas dos diários locais, tradicionalmente ocupadas apenas com «notícias positivas», efe-érre-ás, assaltos à mão armada ou desastres de viação, ignoram o documento do Tribunal de Contas. Existe gente de peso envolvida nisto, presumir-se-á com naturalidade, e o melhor é não levantar problemas. Afinal, se já tudo passou, os carros rodam sobre os tabuleiros e, contra as expectativas dos habituais maledicentes, a água do Mondego até continua a correr por debaixo da ponte, o que é que isso importa agora?

    Atualidade, Cidades, Olhares

    Coimbra’69

    Coimbra'69

    17 de Abril. A maioria dos cidadãos que conservam reminiscências da Coimbra dos idos de sessenta – do meio pequeno, professoral, santacombadense, mas também universal, quimérico e inquieto – conhece aquilo que a data significa. As prestimosas autoridades locais, essas dormem na ignorância de uma parte da memória viva da cidade que vão gerindo. Por vezes na cumplicidade ao retardador com o lado mau do filme. Dia da audácia de uns quantos, das oportunidades conquistadas, do mito que enuncia parte da verdade e inventa e reinventa a outra. Primeiro dia do resto da vida da cidade salazarenta que um dia há-de morrer.

    Seguir o testemunho ocular do Marcelo Correia Ribeiro, a visão de retrovisor do Miguel Cardina e o olhar de viés do Luís Januário.

      Apontamentos, Cidades, Coimbra, História, Memória

      A Praga de Sudek

      Sudek

      A propósito de uma exposição sobre a obra do fotógrafo checo Josef Sudek (1896-1976), aberta ao público até 17 de Maio no Círculo de Bellas Artes de Madrid, Antonio Muñoz Molina deixou no Babelia de ontem uma prosa bela e comovente, «El caminante de Praga», que – como acontecera já com a evocação de John Banville no seu livro precioso sobre a cidade das duas margens do Vltava – faz justiça ao trabalho único de um homem que viu o seu destino como artista determinado, aos vinte anos, pela amputação do braço direito. Josef, que estivera destinado a encadernador, passaria então a percorrer Praga em todas as direcções, dia após dia, muitas vezes pela noite fora, carregando pelo resto da vida, apenas com um braço, a pesada máquina Kodak de 1894 e o seu enorme tripé. Fotografando, sempre num tempo lento, praticamente imóvel, quase inabitado, os espaços e as coisas que não poderiam ser mostrados abertamente, «mas apenas dando pistas, revelando apenas o justo, para que o olhar completo pudesse permanecer na imaginação do espectador». Existe uma Praga, desolada como um eremitério, infinitamente poética, que habita apenas a fotografia do tímido e solitário Sudek.

        Cidades, Memória, Olhares

        De fato

        De fato

        Na Loja do Cidadão, proclamada «de segunda geração», inaugurada em Faro no passado dia 3 com a presença do primeiro-ministro, as funcionárias estão proibidas de usarem em serviço blusas com decote, saias curtíssimas, vestuário de ganga, perfumes com uma fragrância agressiva, roupa interior preta, saltos altos e, claro, sapatilhas. Calculo que aos funcionários sejam prescritas também algumas normas, relacionadas com o tom da gravata, a sobriedade das peúgas, o risco ao lado no penteado e o uso obrigatório de pochette. E se o não são, deveriam sê-lo. Por motivos de «postura pessoal», seguindo o raciocínio avícola de uma tal D. Maria Pulquéria. O provincianismo corresponde sempre, por definição, a uma forma excessivamente mesquinha e tristonha de estar no mundo. Piora bastante quando se encontra associado a um bocadinho pequenino e bem guardadinho de autoridadezinha.

        Adenda – Uma coisa vale a pena dizer ao ouvido de quem considere este episódio irrelevante ao ponto de não se justificar sequer que seja notícia: são gestos destes que nos lembram o que foi o «salazarismo real» e o que ele fez – e continua a fazer – às cabeças das pessoas. Muito mais grave e profundo do que os lances fugazes do caso Freeport.

        A leitura de alguns blogues que abordaram o assunto trouxe também mais duas nuances. Uma refere-se ao sexismo boçal das considerações supostamente engraçadas sobre «os direitos dos utentes». A outra é o fétiche dos parvenus a respeito daquilo que insistem em chamar de «dress code». Que nada tem a ver com normas básicas de asseio e civismo, obviamente admissíveis e até desejáveis.

        (Dizem-me que entretanto o pormenor da roupa interior preta foi desmentido. Muito bem, mas essa era a parte cómica. O resto fica tudo na mesma. Isto é, mal.)

          Apontamentos, Cidades, Olhares

          Oração de Quadragésima

          Triste

          Que o Deus dos cristãos me perdoe se blasfemo, mas rejubilo por ter chegado a Quaresma e haverem desfilado já pelas avenidas todos os clubes de samba, carros alegóricos e sorrisos de baquelite que havia para desfilarem pelas avenidas. Agradeço-Lhe por existir muito mais beleza na tristeza.

            Cidades, Etc., Olhares

            Crime organizado

            Crime

            Misha Glenny estudou em Praga e trabalhou diversos anos nos Balcãs, o que lhe deu uma certa vantagem no reconhecimento de alguns dos caminhos mais sombrios por onde, após o aluimento dos regimes socialistas do Leste, passou a alojar-se o universo desterritorializado da nova criminalidade. Com efeito a primeira parte de McMáfia: O Crime Organizado Sem Fronteiras (Civilização Editora) ocupa-se da Rússia e dos países que durante décadas orbitaram na sua área de influência política, dando particular destaque ao que ocorreu na Bulgária e que pode servir como paradigma de uma certa transição: os serviços secretos desempenharam ali, durante o período comunista, um papel muito importante no tráfico de armas e de drogas na Europa ocidental, e muitos dos seus ex-agentes transitaram directamente para o crime organizado. Sempre com muitos detalhes, o livro parte depois ao encontro das novas rotas abertas ao delito transformado em instituição a partir do final da década de 1980, abordando também a sua actividade e o seu impacto no Médio Oriente, na Índia, na Colômbia, no Brasil, no Japão ou na África do Sul. Da prostituição e do negócio das armas, ao comércio de drogas, diamantes e órgãos humanos, passando pelo cibercrime e pela contrafacção, é toda uma economia paralela, erguida hoje à escala planetária e assente numa ordem imposta pela lei e pela força do mais forte, que se abre aqui ao leitor. Fazendo da velha Máfia quase um pacato território de cavalheiros.

              Atualidade, Cidades

              Angola: o passado agora

              Angola

              José Eduardo Agualusa comenta no prefácio que escreveu para Fragmentos de Angola, de Sébastien e Thomas Roy (Teorema) que ali se dá a ver Angola, e em particular a cidade de Luanda, «não apenas a quem nunca a viu, mas também a quem sempre lá viveu e que, de tanto a ter diante dos olhos, se tornou cego para inúmeras evidências.» Talvez por chegarem de um mundo à parte, e sem a carga de memória de quem acompanhou de perto a descolonização e a destrutiva guerra civil, os dois franceses responsáveis por estas impressões de viagem e pelas fotografias a preto e branco que as acompanham produzem no leitor um efeito análogo ao de quem leia as notas de uma viagem até um planeta desconhecido. Fala-se aqui de uma Angola pós-guerra civil, que conhece finalmente a paz mas vê-a crescer associada a uma sociedade persistentemente desigual, na qual a esperança e o optimismo, nela quase essenciais, todos os dias se vêm confrontados com a ausência de um futuro previsível. É também um livro de «memórias em diferido», entre a reportagem e o devaneio literário, que vai associando a observação directa e o testemunho pessoal a referências explícitas fundeadas na história recente. Porque nesta paisagem, umas vezes desolada, pontuada por escombros, outras vezes luminosa e excitante, se vislumbram ainda, a todo o instante, as ligações com um passado do qual se vêem as sombras.

                Atualidade, Cidades, Memória

                Salónica: uma cidade e o seu labirinto

                Salónica

                Versão revista de um texto publicado na LER No. 75

                Até 1909, o ano da fundação de Tel Aviv, Salónica era a única cidade do mundo na qual a principal língua utilizada era de matriz judaica. Por essa altura, a maioria da população falava ainda o ladino, ali estabelecido nos inícios do século XVI com a diáspora sefardita, mas viviam-se os últimos tempos de um espaço policromo, no qual cristãos, muçulmanos e judeus tinham podido conviver na diferença, apesar dos conflitos pontuais e das situações de desigualdade perante a lei otomana. É verdade que ela se parecia mais com uma justaposição de pequenas aldeias, nas quais turcos, judeus, gregos, búlgaros, albaneses, ocidentais e ciganos preservavam os seus territórios, mas nada de semelhante podia ser observado em qualquer outra grande cidade. Mark Mazower, especialista em história da Grécia e dos Balcãs, traça em Salónica – Cidade de Fantasmas o seu percurso único e fascinante, prestando uma particular atenção ao longo lapso de tempo que começou em 1430, com a tomada da cidade ao poderio bizantino-veneziano pelo sultão Murad II, e encerrou já em pleno século XX com a reinstalação, em território turco, dos últimos membros da comunidade muçulmana que nela haviam permanecido após a sua conquista pelos gregos. Durante todos esses anos, foi traçado um percurso sinuoso e complexo que Mazower descreve com uma profusão de informações capazes de trazerem à vida um passado do qual já quase não restam hoje vestígios materiais.

                O epíteto de «cidade dos fantasmas» diz essencialmente respeito ao total desaparecimento, ocorrido já no último século, de duas daquelas comunidades. O primeiro teve lugar imediatamente após o fim da dependência da cidade do estado turco, com a evacuação forçada da maior parte da população de origem muçulmana. O segundo, particularmente rápido e brutal, aconteceu em 1943, quando os ocupantes nazis enviaram para Auschwitz cerca de 50.000 salonicenses, dos quais apenas dez por cento viriam a sobreviver. Para além do enorme impacto humano no mapa da cidade, este facto ficou ainda associado à responsabilidade de numerosos cristãos gregos na repressão anti-semita que facilitou o trabalho dos ocupantes alemães. Alguns críticos consideram, aliás, que nesta obra o historiador menosprezou conscientemente a importância desse episódio vergonhoso da história contemporânea da Grécia.

                Salónica oferece uma leitura apaixonante, por intermédio da qual a evocação do passado, ali extremamente bem documentada e apresentada de forma consistente, confirma o trajecto único de uma cidade que não possuindo hoje o fascínio e o património monumental da rival Istambul, nem por isso deixa de simbolizar um reencontro que a história recente dos Balcãs tornou particularmente exemplar e perturbante.

                Mark Mazower, Salónica. Cidade de Fantasmas. Cristãos, Muçulmanos e Judeus de 1430 a 1950. Tradução de José Pinto Sá. Pedra da Lua, 576 págs. ISBN: 978-989-8142-10-8.

                  Cidades, História, Memória

                  Lição de jornalismo

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                  Não é hábito, aqui n’A Terceira Noite, a repetição de links e referências que já circulam por diversos blogues. Mas vale a pena ampliar a divulgação deste vídeo notável, no qual Rodrigo Amarante, da banda brasileira Los Hermanos, oferece uma boa lição de ética jornalística.

                    Atualidade, Cidades, Etc.

                    Bonsoir tristesse

                    melancolia
                    Melancholia, Claus Gregers (1989)

                    Lê-se Du Contre-Pouvoir, de M. Benasayag e D. Sztulwark, com um sentimento de revolta: «Vivemos uma época profundamente marcada pela tristeza, que não é apenas a tristeza das lágrimas, mas que é, principalmente, a da impotência». Percebendo como a noção contemporânea da complexidade da vida se une à aceitação defensiva, sob a forma de um tristeza social e individual, de que não possuímos forma outra de a viver que não seja aceitando, submissos, «a ordem e a disciplina da sobrevivência». Respeitando, insulados nos nossos pequenos mundos, cegos e tristes, infinitamente tristes, as formas de tirania que nos cercam, e que justificam essa servil tristeza. Contra ela, criadora, apenas a alegria difícil da resistência.

                      Atualidade, Cidades, Democracia