Johnny Depp será José Doroteo Arango, Pancho Villa, no próximo filme de Emir Kusturica, que tem como título provisório Seven Friends of Pancho Villa and a Woman With Six Fingers e começará a ser rodado em 2010. Terá a companhia preciosa da mexicana Salma Hayek. Promete, claro. Mas já em 2003 Antonio Banderas foi Villa em Starring Pancho Villa As Himself, um documentário sobre a forma como D.W. Griffith e Harry Aitken compraram ao próprio Villa os direitos exclusivos sobre as imagens das batalhas da revolução mexicana, permitindo-lhes montar em 1914 The Life of General Villa, o primeiro filme de acção de Hollywood. A dimensão densamente cénica e cinematográfica das acções e da própria presença física de Villa pode ser avaliada numa descrição deixada por John Reed em México Insurrecto. Aqui fica ela: (mais…)
Para nós – falo de quantos viveram o Potemkine como fantasma e paradigma de uma revolução sonhada e adiada anos a fio – o filme foi sempre mais acto de clandestinidade do que acto de subversão. Quem não recorda essas sessões (anos 60, 70) em casa de amigos, que tinham trazido uma cópia do filme de Paris ou de Londres, em que um projector alugado de 16 ou Super 8 mm acendia num lençol a fingir de ecrã as imagens proibidas? Saíamos dessas noites sentido-nos mais transgressores, não mais resistentes. Simbolicamente, um dos dois grandes anacronismos que presidiu à tarde de 1 de Maio de 1974 foi o cartaz anunciando o filme, no Império, ao cimo da Alameda. O Couraçado ancorava em Lisboa. O outro (anacronismo) era essa multidão imensa trauteando A Internacional, cuja versão portuguesa por completo desconhecia.
João Bénard da Costa, «Histórias da Clandestinidade», Os filmes da minha vida. Os meus filmes da vida, vol. 1.
Ia ver o Prós e Contras sobre as eleições europeias «directamente do Museu da Electricidade», mas descobri que estava a passar na TCM North by Northwest (Intriga Internacional), de Alfred Hitchcock, e a escolha acabou por ser fácil. Lá fiquei de novo a perambular por uma América sem placas toponímicas (e quase sem negros), a torcer por Mr. Thornhill, a balbuciar diálogos únicos, como o outro.
Roger O. Thornhill: Tell me… How does a girl like you get to be a girl like you?
Eve Kendall: Lucky, I guess?
Roger O. Thornhill: Oh, not lucky. Naughty. Wicked, up to no good. Ever kill anyone? Because I bet you could tease a man to death without half trying. So stop trying, ha?
O cachimbo sinalizou repetidamente a imagem projectada por políticos (Estaline, Roosevelt, H. Wilson), escritores (Baudelaire, Joyce, Chandler), actores (B. Crosby, S. Tracy, J. Lemon), filósofos (B. Russell, Sartre), pintores (Van Gogh, Manet), músicos (Coltrane, Mingus), cientistas (Einstein, Oppenheimer) ou personagens de banda desenhada (Haddock, Mortimer). Sem o acessório tabaqueiro, nenhum deles teria sido quem os seus contemporâneos pensaram que foi. Jamais teriam sido quem a história nos conta que foram. Ninguém explorou porém as capacidades da pequena peça fumegante como o actor e realizador Jacques Tati. Em O Meu Tio, As Férias do Sr. Hulot e Há Festa na Aldeia, mais brevemente em Playtime, o cachimbo transformou-se num interlocutor capaz de alvejar o objecto, a situação, o personagem, que de seguida a câmara persegue sem piedade. A sua função não é sorver nicotina, mas antes interrogar, desaprovar, sublinhar. Serve sempre de ponteiro, de microfone, de auxiliar da invectiva, omnipresente e insubstituível no universo tatiano. Mas esse lugar incontornável não bastou para impedir que no poster que divulga em Paris uma retrospectiva da obra de Tati se tenha feito desaparecer do olhar dos cidadãos o «vicioso» cachimbo. Insatisfeitos com a instalação perversa da sua tirania sobre os espaços públicos, os maníacos higienistas querem também apoderar-se do nosso passado.
Regresso a um texto que em 2002 publiquei na revista História a propósito de uma então recém-editada biografia do argentino. Uma das poucas disponíveis no mercado que não é apenas «pró» ou «contra».
Retomada em imagens que povoam jornais e documentários, nos muros das cidades, na decoração de espaços privados, em t-shirts e tatuagens, a expressão decidida do Che Guevara, captada há mais de trinta anos pelo fotógrafo Alberto Korda, continua a povoar a nossa imaginação. Como sinal da memória, insígnia de utopias ou insólito produto pronto-a-usar. Omissões várias e umas tantas mentiras, somadas a um certo oportunismo político e comercial – em alguns países vende-se até uma bebida gaseificada, aRevolution Soda, com o rosto do Che estampado como logótipo – têm adensado a carga simbólica que envolve um dos heróis e dos ícones do século que passou. Vale a pena desvendar o mito na sua origem.
Segundo notícia do Guardian, as autoridades iranianas, em comunicado lido por um conselheiro do presidente Ahmadinejad, investiram agora contra a indústria ocidental de cinema, que acusam de ter atacado injustamente o povo iraniano e a sua revolução. Ao mesmo tempo exigem que Hollywood peça «desculpas aos iranianos pelos insultos e acusações feitos nos últimos 30 anos». Uma vez mais, aquela que poderia ser uma crítica justa a perspectivas etnocêntricas, em forma de propaganda, que podem produzir maus resultados, transformou-se numa acusação agressiva e arrogante contra a liberdade de criação e de expressão nefastamente «ocidental» que o governo iraniano considera desprezível. Um dos exemplos apontados, acusado de ter descrito os persas como bárbaros e de ser «uma completa mentira», é o filme 300, de Zack Snyder – construído a partir da banda desenhada de Frank Miller e Lynn Varley, e, claro, do relato de Heródoto – cujo argumento se serviu do combate desigual, travado em 480 a.C. no desfiladeiro das Termópilas pelo rei Leónidas, acompanhado de três centenas de combatentes espartanos, contra as tropas de Xerxes, numericamente muito superiores, que haviam invadido a Grécia central.
Deve dizer-se que o filme, estreado nos inícios de 2007 e rapidamente proibido no Irão, ensaia principalmente um devaneio, com uma fortíssima carga plástica, sobre o lugar de Esparta num combate «pela liberdade» – embora na realidade Esparta fosse dirigida por uma oligarquia militarista – contra os ímpetos despóticos do rei dos persas. Um filme que incorpora personagens mágicos, violentos ou grotescos que mais parecem caricaturas do bestiário de Tolkien, e representa os medo-persas como chacais um tanto estúpidos, ora medonhos, ora efeminados, e sempre amorais. Para além disso, trata-se de uma obra graficamente concebida como uma espécie de jogo de computador – até a coreografia dos duelos e das batalhas acompanha muito de perto a sua mecânica feita de impulsos – que parece apenas mais uma daquelas experiências de cinema romanesco de aventuras, a tender, como milhares de outras do mesmo género, para o extremar da separação política entre bons e maus, heróis e vilões. Com os do lado de lá do Mar Egeu a desempenharem, naturalmente, o papel desagradável.
Percebe-se no entanto, pelo menos em parte, o «argumento» iraniano contra este filme, pois os espartanos eram gregos, e os exércitos gregos defrontaram durante séculos aqueles que se organizavam para lá da Anatólia para os combater. Num e noutro sentido: Ciro, Dario e Xerxes avançado para cá, Temístocles e Alexandre o Grande marchando para lá, num espadeirar longínquo que alimentou ressentimentos para muitos séculos. Tudo isso deixou um rastro profundo na memória colectiva. Porém, o que aqui Ahmadinejad verdadeiramente pretende agredir é o modelo de cultura ocidental que tem no mundo grego – ainda que neste os espartanos fossem uns párias, embora uns párias temidos – o seu torrão fundador.
A história é bem conhecida, mas pode ser relembrada. Tudo começou nos séculos VI e V a.C, quando, em poucas gerações, os gregos inventaram a tragédia, o debate democrático, a cultura científica, o relato histórico, a reflexão filosófica. Tendo a perfeita consciência de estarem a criar valores e liberdades que não existiam em mais lado algum. Aos restantes povos chamavam eles de «bárbaros» que não eram senão «todos os outros», aqueles que não falavam a língua grega e que não viviam como cidadãos, sem leis comuns e submetidos a déspotas. Foi esta noção de possuírem aquilo a que hoje chamaríamos uma identidade própria, mais humana do seu ponto de vista, o que de mais profundo os gregos legaram aos romanos e que, através destes, se espalhou depois pelas regiões «a Ocidente», isto é, do lado no qual o sol se põe para quem circula por terra e por mar em redor da península balcânica. Pelo lado de lá, a Oriente do Ocidente, principalmente nas áreas por onde os iranianos procuram hoje impor a sua hegemonia, distribuíam-se – a expressão foi usada por Marx antes de Weber a retomar – formas múltiplas de um execrado «despotismo oriental» que reduzia a grande massa dos seus naturais ao estado servil e, por vezes, dela se servia como máquina de guerra. Dois universos, ambos imperfeitos mas absolutamente opostos, com destinos históricos também eles contrários, padrões de desenvolvimento muito diversos e, ao contrário daquilo que um dia Montesquieu desejou, experiências de vida comum que se foram sempre confrontando. É este cenário, definido durante séculos com um vencedor um tanto arrogante e um vencido por vezes humilhado, que Ahmadinejad, insolente à maneira de Xerxes, pretende agora fazer reverter.
Durante um jogo da Liga portuguesa, dizia há dias um comentador referindo-se a dois futebolistas brasileiros: «eles entendem-se pois falam ambos brasileiro». A língua é uma, embora não una, e a rapidez da compreensão nem sempre é fácil sem retroversão automática e gestos à mistura. Dentro do Brasil, dentro de Portugal, ou num voo que desça o mapa na direcção do Atlântico Sul. E tudo se enreda quando, com a língua que repartimos, cada um se refere à mesma coisa enunciando palavras que não coincidem. Leio de maneira diversa, consoante traduzo ou não a tradução de um título que a frase incorpora, duas linhas de Rakushisha, o último romance de Adriana Lisboa: «Um dos filmes era O Poderoso Chefão. Haruki começou a assistir, era a quarta ou quinta vez que assistia àquele filme.» Ou, ajusto eu as palavras, desfigurando a autoria: «Um dos filmes era O Padrinho. Haruki começou a assistir, era a quarta ou quinta vez que assistia àquele filme.» Não se trata apenas de duas frases brandamente diferentes, são duas distintas Haruki que se nos afiguram, dois sentidos para o enredo que se separam. Desentendemo-nos por vezes, falando em português.
Declaro sobre a Bíblia Sagrada – e até pode ser a mesma, a verdadeira, a de Lincoln, sobre a qual jurou o escurinho de quem se fala – que começava a escrever este post quando verifiquei que o Pedro Vieira acabava de publicar um outro sobre o mesmo assunto. Mas tenho o dever de insistir na mensagem: é profundamente injusto fazer-se alguém passar por génio inofensivo, e tocador de clarinete nas horas vagas com uma grande admiração por Ingmar Bergman em full-time, para poder filmar em Vicky Cristina Barcelona, sem quaisquer problemas com a polícia, velhíssimas fantasias masculinas envolvendo sexo sáfico e ménage à quatre. Ainda por cima com Scarlett Johansson e Penelope Cruz como protagonistas (mais Rebecca Hall e Javier Bardem, sejamos justos).
O concurso sobre «o maior russo de sempre», organizado pela televisão estatal da Rússia, revela alguns pormenores nos quais vale a pena reparar. As personalidades mais votadas foram, em primeiro, Alexandre Nevsky (o príncipe de Novgorod que no século XIII dirigiu a resistência dos russos diante dos cavaleiros teutónicos, conseguindo conservar o predomínio da fé ortodoxa, teve 11,7% dos votos), em segundo Piotr Stolipin (primeiro-ministro da Rússia a partir de 1906, assassinado em 1911, responsável por reformas económicas que procuraram estimular o mercado rural e pelo acentuar da repressão sobre as forças políticas anti-czaristas, juntou 11,6% dos votantes), e em terceiro lugar, com 11,5%, José Estaline, que dispensa apresentações (e serviu de modelo ao Alexandre Nevsky filmado por Eisenstein). Lenine ficou-se pelo sexto lugar, logo após o poeta Pushkin e o czar Pedro I, o Grande, e antes mesmo de Dostoievski e do generalíssimo Suvorov. A primeira mulher a aparecer na lista – ou melhor, a única referendável – é, como seria de esperar, Catarina, a Grande.
Tal como já aqui escrevi quando do concurso que considerou António de Oliveira Salazar «o maior português de sempre», este tipo de certame é irrelevante enquanto «sondagem de opinião» e, a ter acontecido na Rússia algo de semelhante ao que ocorreu em Portugal – o que, admito, não posso agora provar -, a «eleição» poderá ter sido condicionada por um certo número de activistas que se desdobraram em iniciativas de apoio às diversas personalidades, perante uma larga maioria de cidadãos que olhava o episódio como mero divertimento. Não deixa, porém, de ser um sintoma sobre a existência de um caldo de cultura no qual a autoridade discricionária do Estado e o nacionalismo mais agressivo emergem com factores positivos, indicadores de uma «grandeza» que se acredita perdida mas regenerável (Medvedev e Putin não foram concorrentes, vale a pena lembrar). O episódio não terá a dimensão que os meios de comunicação, sempre desejosos de estrondo, sugerem, mas não deixa de ser um factor presente no terreno. Lá como cá, sempre um pouco preocupante.
Um post mais do que oportuno do Corta-Fitas evoca o actor Sidney Poitier, o americano «de cor» que abriu atalhos ainda improváveis na década de 1950. Lembra Pedro Correia: «Antes dele, os negros em Hollywood apenas podiam ser mordomos, porteiros de hotel ou pianistas de bar. Depois dele, puderam ser tudo.» A minha memória ainda consegue reproduzir o efeito de sopro que se sentiu em Portugal quando da estreia diferida de Guess Who’s Coming to Dinner / Adivinha quem vem jantar, de Stanley Kramer. O filme é de 1967, mas foi preciso esperar pela balbúrdia marcelista para ele poder correr nas salas de cinema portuguesas. Ver Sidney fazer de Dr. Prentice, o noivo de Joey, uma jovem WASP com uns pais conservadores que rejeitavam o seu amor – e ver um negro e uma branca beijando-se no grande ecrã –, foi na época, para muitos, quase um acto de militância antiracista e anticolonialista. Hoje quase não dá para acreditar, pois não?
Jorge Palma escreve canções inesquecíveis. E é um belo poeta em qualquer parte do mundo. Agora que alguém diga, a propósito do lançamento de Voo Nocturno, o seu novo álbum de originais, que o músico «possui uma voz maravilhosa» – como ouvi hoje uma jornalista afirmar – é pior que mencionar Tom Waits qualificando o seu timbre vocal como aveludado. E será, creio, uma ofensa feita ao trovador JP da voz nenhuma. Pior mesmo só proclamar à urbe e à orbe que o maldito bufão «canta e encanta». O que também já tive a oportunidade de ler.
Estou chocado. Continuo a ser um bondiano convicto e a reconhecer que Daniel Craig, natural do condado de Cheshire, é o segundo melhor e mais convincente Agente 007, logo depois do escocês Sean Connery e imediatamente antes do irlandês Pierce Brosnan. Mas, como escreveu Pedro Correia, em Quantum of Solace um James Bond improvável, nada cínico, politicamente correcto, de roupa suja e enxovalhada, quase desligado do sexo e do álcool, é, apesar da orgia de tiros, explosões, socos e pontapés, e de mais duas harmoniosas bond girls a juntar à colecção, um ser um pouco entediante e sem o charme discreto da sacanice que o acompanhou no passado. Sinto-me enganado. Quero de volta o meu herói-vilão da Guerra Fria.
Charles Najman, escritor e cineasta, é um dos filhos de deportados judeus franceses que foi entrevistado por Nadine Vasseur para Eu não lhe disse que estava a escrever este livro. Solange, a mãe, sobreviveu a Auschwitz e foi a partir da sua história que Najman realizou em 1995 o documentário La mémoire est-elle soluble dans l’eau? Nele, Solange, uma mulher com um profundo sentido da vida enquanto acto de júbilo, propõe uma abordagem da sua condição de deportada pelo lado da ironia, contando por vezes histórias cómicas, sem cultivar a vitimização, trocando a exposição do sofrimento – que obviamente viveu de uma forma profundíssima – pelo testemunho de um quotidiano no campo marcado também pela vitalidade e pela esperança. Na noite da estreia, Najman estava à entrada do cinema à espera que os espectadores saíssem quando viu duas pessoas afastarem-se, completamente indignadas, dizendo uma para a outra: «É um escândalo! E para mais ela nem sequer se parece com uma deportada!».
Algo de semelhante ocorreu com A Vida é Bela, o filme de Roberto Begnini: a exaltação ficcional do riso como acto de resistência e de apego à vida foi mal recebida por muitos daqueles que fazem da memória histórica uma espécie de disciplina religiosa, grave e sacralizada, na qual apenas existe lugar para o estereótipo do mártir, onde a dissemelhança é recusada, a derrisão inteiramente depreciada. Mas parte da resistência à opressão totalitária nas suas diversas variantes fez-se também na construção de trajectos pessoais como actos de júbilo, de amor pela vida, recorrendo ao riso e à cor, e não apenas na assunção do sofrimento físico ou da brutalização imposta pelos canalhas. Teremos uma melhor relação com esse passado, senti-lo-emos mais próximo, se o recolhermos múltiplo, e não apenas com lugar de sentido único, baço e miserável.
Chegou a vez de Paul Newman (1925-2008). Mais um pedaço da vida vivida através do cinema que parte para sempre, deixando um buraco fundo e escuro. Paul Blue Eyes vai fazer-nos falta, muita falta. Vai ficar-nos na memória e na imaginação, mas até elas se diluem e se vão perdendo.
Da primeira vez, vi magnetizado Blow-Up. Não sei quando estreou em Portugal, rebaptizado História de um Fotógrafo e com alguns cortes, o filme de Michelangelo Antonioni baseado num conto de Julio Cortázar, mas julgo que não foi logo em 1966, pois nessa altura o contacto dos corpos e a nudez frontal de Jane Birkin, a anglo-francesa que um dia atirou um futuro ministro do Governo para os braços do trotskismo, eram mais-que-improváveis nas salas portuguesas. Devo-o ter visto uns quatro anos mais tarde, durante a frágil e fértil abertura marcelista. Na altura, ainda não demasiado impressionado pelas fixidez realista que o marxismo de seguida me iria impor – aliás, o filme interroga justamente a definição/indefinição do conceito de real –, senti-me perturbado com o jogo de luzes, de lentes, de vidros e espelhos, e pelo fortíssimo erotismo, que cercava os gestos um tanto nervosos e desajeitados de Thomas/David Hemmings. Falo disto porque me passou agora pelas mãos a banda sonora do filme, em parte da responsabilidade de um então muito jovem Herbie Hancock. Aqui fica, com as «vassouras» inconfundíveis de Jack DeJohnette, mais o contrabaixo de Ron Carter e a guitarra de Jim Hall, o deslizante Jane’s Theme. Esta Jane, já agora, era Vanessa Redgrave, também ela uma futura militante trotskista. O mundo é pequeno.
Fui ver Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes. Mas custa-me falar de um filme rodado naquela região indistinta que separa o litoral português da Beira interior. Porque nasci lá e, no fundo, também eu já fui um «rapaz do pinhal». O meu povo não são os operários das periferias e os trabalhadores do mar, as mulheres-a-dias e os imigrantes, os proletários dos campos, os vendedores de gelados e as rapariguinhas de shopping. Nem são os insubmissos urbanos ou as pessoas com vidas extremas, fodidas. Estes não cabem naquele universo ou neste filme. O meu povo é aquela massa híbrida de pobres remediados que picam o ponto mas possuem uns hectares de floresta, de jovens que jamais entrarão na universidade e vivem de ganchos, copos e engates pendurados pelos cafés, de pequenos funcionários que economizarão a vida inteira, de mulheres subjugadas pelo preconceito e pela maledicência, de emigrantes que estão e não estão mas voltam sempre no mês do calor, de idosas que fazem pela sombra o trajecto casa-igreja e volta. Pessoas que têm todo o tempo para se odiarem e para se aborrecerem. Elas são um outro «bom povo português», do qual quase ninguém fala mas fala Miguel Gomes. «Bom povo» para quem os carros dos bombeiros e uma noite de minis representam a epítome da aventura. E uma canção de amor pode ser a coisa mais séria do mundo. Pessoas como as deste filme, «entre a ficção e o documentário» ou lá o que for, que couberam na fantasia que lhes foi proposta sem saírem da vida delas. Se isto não é o povo, onde é que está o povo? Por isso vejo este filme digno e divertido apenas como um álbum de família com banda sonora. Por isso preciso ver de novo Aquele Querido Mês de Agosto, tão nacional quanto um Português Suave, para sair dele e voltar a entrar pelo lado da narrativa. E por isso sugiro que corram a vê-lo.
Uma cópia em bom estado de conservação descoberta num arquivo cinematográfico de Buenos Aires permitiu agora recuperar a versão original de Metropolis, de Fritz Lang. Estreado em 1927, o filme viria a ser severamente mutilado pelos nazis e depois cortado também pela censura americana, vendo-se reduzido dos 210 minutos iniciais para os 114 minutos que a generalidade dos espectadores hoje conhece. Aguarda-se com expectativa que nos chegue a renovada versão dessa colossal ficção de uma cidade-metáfora sobre/sob a qual foi possível construir uma sociedade de trabalhadores sem rosto, convertidos em máquinas ao dispor de uma elite que se cria tão superior quanto imortal. Uma fábula ainda do nosso tempo.
Em Ecce Bombo, de Nanni Moretti (de 1978, mas editado agora em DVD nacional), uma sequência tão divertida quanto comovedora funciona como metáfora, talvez simples mas esplêndida, das expectativas, certezas e desilusões que invariavelmente se encontram na perseguição da felicidade. O grupo de jovens amigos que percorre o filme conversa madrugada afora e todos decidem ir até uma praia ver o sol nascer. Horas depois, surpreendidos, reparam que afinal já é dia. Tinham-se deixado adormecer e, além disso, encontravam-se do lado errado da praia.