Arquivo de Categorias: Democracia

Catalunha e irracionalidade

Não vou aqui discutir os termos e possibilidades de resolução da questão catalã. São muito complexos e sobre eles não tenho convicções absolutas, nem grandes meios para as obter. Durante o franquismo fui, obviamente, pela independência total; jamais deixei, e assim continuo, a simpatizar bastante com ela. Pelo que sei dos livros e vi no local, a identidade catalã – histórica, geográfica, linguística, cultural, política, até ao nível das formas de ser, de estar ou de comer – é enorme e persistente. Também o é o seu historial de opressão e de resistência em relação aos poderes instalados em Madrid ou aos seus representantes locais. Compreendo e simpatizo com a vontade de independência ou de autonomia de grande parte dos seus naturais – não se sabe se a larga maioria, já que o referendo foi muito irregular -, embora tenha dúvidas sobre a forma que estas devem tomar e como chegar a elas.

O que não é aceitável é a defesa da independência passar por um antiespanholismo cego. Uma Catalunha autónoma ou independente não pode ser construída contra os espanhóis e a sua democracia, nem, uma vez consumada, deveria ou poderia viver nessas circunstâncias. Terá sempre contra si, inevitavelmente, os nacionalistas espanhóis, os herdeiros do franquismo, a extrema-direita, mas não pode erguer-se contra a esquerda e os democratas do Estado espanhol, com quem deve conceber estratégias de entendimento, de colaboração e de vida. Isso parece já ter compreendido a Esquerda Republicana da Catalunha, ou mesmo o PSOE e a Unidas Podemos, mas continua a não entender quem, lá ou cá, equipara quem não entende, não concorda ou tenha dúvidas sobre uma independência total e imediata a bandidos e a fascistas. Como sempre, a irracionalidade a nada levará.

    Atualidade, Democracia, Opinião

    Racismo e preconceito

    Aconteceu já durante a campanha, mas foi após a eleição da Joacine Katar Moreira, a única deputada do Livre, que teve lugar nas redes sociais e também nos jornais uma vaga de comentários e opiniões negativos e hostis a propósito da sua gaguez. Todos produzidos em tonalidades várias, embora constantes, de ignorância e agressividade, mesmo quando tentaram proclamar-se construtivos e afirmaram estar «apenas a fazer um reparo». Alguns chegaram mesmo de pessoas das quais, pela sua personalidade, escolhas e responsabilidades, jamais pensei escutar tais disparates e injustiças. Tornou-se assim claro que a gaguez da Joacine Moreira serviu apenas de pretexto para a exibição despudorada de preconceitos habitualmente calados.

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      Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

      Notas e impressões (sobre as eleições)

      Os resultados das eleições não foram surpreendentes. O PS ganhou como se esperava, ainda que sem a maioria absoluta que pretendia; o PSD teve uma descida menor do que aquela que se aguardava, em boa parte graças ao eleitorado fiel e aos ataques personalizados ao PS conduzidos nas últimas semanas; o Bloco de Esquerda manteve a sua importância central, se bem que sem a subida com a qual se contava; o PCP continua a descer, embora não tanto quanto se previa (já os «Verdes», esses evaporaram-se); o CDS caiu até ao limite, embora dentro do previsto; o PAN continua a subir num processo de apropriação de causas que não domina. E depois há os «pequenos partidos», aos quais a presença no Parlamento poderá permitir crescer.

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        Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

        Opinião pública e peso da responsabilidade

        O título desta crónica parafraseia o de um livro, O Peso da Responsabilidade, do historiador britânico Tony Judt, publicado em 1998 e traduzido no ano passado pelas Edições 70. Nele se reuniram ensaios de Judt sobre três franceses do século XX – Léon Blum, Albert Camus e Raymond Aron – com percursos e focos diversos, mas que coincidiram na grande influência que exerceram sobre o seu tempo e na forma exigente como interpretaram a responsabilidade particular do intelectual público. Tomada esta num duplo sentido: de um lado, o de quem observa o mundo com permanente atenção e de um modo razoável, liberto dos pesados filtros impostos pelas categorias ideológicas, pelos modismos ou pelos lugares-comuns; do outro, o do sujeito que, agindo e comunicando em função das suas convicções, obtidas através da reflexão e da crítica, as assume de uma forma aberta perante os outros, ainda que tal o possa forçar a colocar-se contra as posições dominantes no seu próprio campo, sendo, por isso, por vezes acusado de apostasia ou traição.

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          Democracia, Ensaio, Olhares

          Uma declaração de voto

          Nestas eleições irei votar no Bloco de Esquerda. Entre 1999, ano da fundação, e 2011, colaborei muitas vezes com o Bloco e fui seu eleitor. Nesse ano afastei-me um tanto. Por dois motivos centrais: devido ao voto de desconfiança partilhado com o PCP e a direita que ingloriamente acabou por levar aos quatro anos do governo PSD-CDS; e porque me parecia possível e necessária uma aproximação a setores do PS já então disponíveis para a acolher. Devido a estas escolhas, nas eleições de 2015 participei na experiência de uma «candidatura cidadã» que visava estimular essa aproximação para derrotar a direita. O resultado dessa experiência foi inglório, mas o esforço de convergência viria depois a ocorrer sob a forma da Geringonça, com as conquistas, dificuldades e contradições que se conhecem.

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            Atualidade, Democracia, Etc., Opinião

            As redes sociais como barómetro

            Esta crónica ocupa-se de um universo que muitos rejeitam ou consideram irrelevante. Não posso discordar mais desta atitude. Como acontece com o telefone ou a televisão, podemos virar as costas às redes sociais, mas não podemos viver sem elas. Oferecem excelentes possibilidades de aprendizagem, partilha e divulgação, bem como de encontros e reencontros, embora, é verdade, abram também espaço para a mentira, a exposição da ignorância e o ódio, levando a que frequentes vezes nos cruzemos com pessoas que na «vida real» evitaríamos. Só que existem, não irão desaparecer, e de um ou de outro modo influenciam poderosamente as nossas vidas. Por isso, não convém ignorá-las.

            O enorme sucesso desta ferramenta de comunicação deve-se à facilidade de acesso, ao baixo custo e também a possibilidade de dar voz pública a quem habitualmente a não tem. Ao mesmo tempo, porém, permite que se escreva e se opine sem se ter o hábito de o fazer, podendo qualquer um afirmar o que deseje sem pensar duas vezes ou com objetivos pouco claros. É esta, aliás, a principal origem do seu perigo, sendo também por isso que muitas pessoas as rejeitam.

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              Atualidade, Cibercultura, Democracia, Opinião

              As democracias e o poder dos brutos

              As redes sociais servem, como toda a gente sabe, ou então deveria saber, tanto para coisas úteis ou mesmo magníficas, quanto para outras bem horríveis e sinistras. Depende sempre de quem as usa, da forma como o faz, da linguagem que usa, dos interesses que representa ou dos princípios que segue. De entre as coisas boas, apesar de relacionada com outras detestáveis, tem servido para denunciar as decisões, escolhas e imposições de figuras tão insanas e perigosas como Bolsonaro, Trump, Salvini, Orbán e agora, ainda que numa outra escala, Boris Johnson.

              O problema que se coloca é que, apesar das proclamações de espanto ou de indignação, quanto mais impensáveis e intoleráveis são as suas afirmações e iniciativas – ou as dos seus acólitos – maior apoio eles têm entre a larga maioria daqueles que os elegeram e apoiam. As democracias parecem estar entregues ao poder dos brutos, dos ignorantes, dos trolls – em parte por intervenção das próprias redes e de uma comunicação social que esquece a sua dimensão cívica – e isso precisa ser rapidamente pensado e alterado. Antes que as trevas nos submerjam a todos.

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                Social-democracia: equívoco ou solução

                Quem se interesse de modo crítico pela história das ideias políticas conhece a ambiguidade que há mais de cem anos acompanha o conceito de social-democracia. Declarações de Catarina Martins ao Observador, nas quais considerou existir uma dimensão social-democrata no programa do Bloco de Esquerda, trouxeram de novo alguma atenção a esse equívoco, tantas vezes alimentado por circunstâncias históricas, mas também pelo desconhecimento e pelo dogmatismo. Nada tem isto a ver com o PSD, partido liberal cuja inadequada designação resultou das circunstâncias de Abril, mas antes com os setores que à esquerda olham o conceito com aprovação ou descrédito.

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                  Democracia, História, Opinião

                  Na morte de Wallerstein

                  Durante o meu curso de História vivi algum tempo um equívoco. Como quase todos os teóricos recomendados já estavam mortos ou em vias disso, quando numa aula de história da expansão colonial – muito poucos tinham então a desfaçatez de falar de «descobrimentos» – um certo professor falou de Immanuel Wallerstein (1930-2019) e do sistema de economia-mundo, na minha ignorância dei-o por falecido. Afinal, o sociólogo norte-americano nem 50 anos tinha, e eu estava bem longe de imaginar que três décadas depois ainda viria a assistir a uma conferência sua.

                  A crítica do capitalismo global e o papel crucial que desde a juventude Wallerstein atribuiu aos movimentos anti-sistémicos, foram entretanto projetando o seu reconhecimento bem para lá do mundo académico, tornando-o uma figura nuclear do movimento anti-globalização e um pensador central para compreender as contradições e dinâmicas do mundo contemporâneo. Desapareceu este 31 de agosto aos 88, mas a sua reflexão continuará a municiar o quadro interpretativo para entender e transformar este lugar do universo que nos cabe.

                    Biografias, Democracia, Leituras

                    Um revolucionário e a sua consciência

                    «Sinto muita vezes que sufoco no interior de um magnífico deserto», escreveu Victor Serge (1890-1947) a partir do exílio no México. Serge, bolchevique internacionalista desde a primeira hora, vivia essa impressão na dupla condição de opositor a Estaline e também ao comodismo dominante na comunidade de exilados que se lhe opunham. Num apontamento de 1943 falava da «cobardia dos intelectuais» – ele, toda a vida um intelectual – e do maior interesse de muitos destes pelas questões teóricas, pelo puro diletantismo, em detrimento do combate diário. Considerava a política como «feita essencialmente de pessoas, não de análises», propondo até ao fim uma atitude de compromisso e iniciativa radicada na melhor tradição bolchevique. Aquela que Estaline destruiu três vezes: primeiro pelo golpismo interno, depois pela violência e pelo medo, por fim pela desmobilização de boa parte dos que se lhe haviam oposto e Serge considerava «desertores». Para ele, todavia, a desistência era impensável, ainda que a sua vida de revolucionário passasse agora pelo «deserto» que referiu, «magnífico» porque feito, contra todas as adversidades e fugas, de convicção e empenho.

                    Na fotografia: Victor Serge, o poeta dadaísta Benjamin Péret, a pintora surrealista Remedios Varo e André Breton, que Serge considerava o típico diletante (França, 1941)
                    A partir da recente edição crítica de «Notebooks: 1936-1947», de Victor Serge, e de uma nota de leitura de Alex Press
                      Apontamentos, Democracia, Etc., História

                      Da ténue linha entre silêncio e indiferença

                      A propósito do encontro de organizações da extrema-direita que decorreu em Lisboa este sábado, voltou a circular uma ideia tão errada quanto perigosa. Aquela que, perante determinados acontecimentos controversos ou escolhas perigosas e condenáveis, ou então diante de boatos e de mentiras, considera que o melhor é não falar deles, não tomar uma posição clara e pública, não enfrentar quem os projeta, sendo preferível deixar passar o momento. Justificando-se esse ponto de vista com a errada lógica segundo a qual toda a referência pública que lhes seja feita estará a oferecer publicidade àquilo que não deveria tê-la. Supostamente, sem essa publicidade permaneceriam insignificantes.

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                        Atualidade, Democracia, Opinião

                        O poder subversivo da sátira

                        Há poucas semanas, o The New York Times pôs termo à publicação de cartoons. Fê-lo na sequência da polémica em torno de um desenho do português António, que o próprio diário, após queixas de leitores, acabou por aceitar poder ser considerado «antissemita». O trabalho de António tinha sido publicado pelo jornal sem autorização do autor e um dos que se pronunciaram de forma mais violenta contra a sua inclusão no diário foi Donald Trump Jr., o filho mais velho do presidente. O desenho representava o seu pai como um cego vestido de rabino e conduzido por um cão com a cabeça do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu. A crítica dos leitores poderia ser legítima, mas a decisão foi radical. Vinda de uma publicação de bom nível jornalístico e cultural, que tem defendido a liberdade de expressão e é conotada com a oposição democrata a Trump, ela é particularmente chocante e um grave sinal dos tempos.

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                          Atualidade, Democracia, Opinião

                          O medo como técnica

                          «Escrito em 1946, este pedaço de um artigo de Albert Camus saído no jornal Combat tem, naturalmente, a marca do seu tempo.» Escrevi isto há sete anos, a anteceder a publicação do texto que abaixo se transcreve. Neste momento já não sei se assim é. Ressalvando a mistura verbal do «homem» e do humano – que hoje fere um tanto os nossos ouvidos – todo ele parece ter também, e muito, a marca destes dias.

                          «O século XVII foi o século das matemáticas, o XVIII o das ciências físicas e o XIX o da biologia. O nosso século XX é o século do medo. Dir-me-ão que o medo não é uma ciência. Mas, em primeiro lugar, a ciência é de certo modo responsável por esse medo, uma vez que os seus últimos avanços teóricos a levaram a negar-se a si mesma e porque os seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam destruir a terra inteira. Além disso, se bem que o medo em si mesmo não possa ser considerado uma ciência, não há dúvida que é uma técnica.

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                            Democracia, Direitos Humanos, Etc., Olhares

                            Defender o crime não é opinião

                            Como qualquer democrata sincero que o tenha lido, senti-me ofendido com o artigo racista, xenófobo e discriminatório, intitulado «Podemos? Não, não podemos», que Maria de Fátima Bonifácio assinou a 6 de julho no diário Público. Pelo seu significado político, no sentido amplo do termo, tendente a exacerbar ódios e incompreensões num tempo já de si tenso e conturbado no que respeita à aceitação da diferença étnica e cultural, mas também por se escudar numa credibilidade académica que lhe dá alguma autoridade e, por isso, o torna particularmente perigoso.

                            Porém, a verdade é que nem será preciso um grande esforço para constatar que até esta credibilidade é colocada em causa pelo artigo em questão: a referência à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão «decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789», considerando-os excludentes em relação a grupos humanos, nomeadamente a «africanos» e a «ciganos», é um erro histórico clamoroso. Na realidade, o texto-chave da história contemporânea aprovado em Paris, pela Assembleia Nacional Constituinte, apenas cinco semanas após o episódio revolucionário decisivo que foi a Tomada da Bastilha, refere expressamente o caráter universal e igualitário desses direitos. Observados sob uma perspetiva ocidental, é certo, mas que sob a influência dos princípios iluministas e das ideias da Revolução Americana se pretendiam aplicáveis a todos os seres humanos.

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                              Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                              Rasura da memória e democracia

                              Vivemos uma inquietante vaga de rasura da memória projetada a partir do apagamento, da reescrita e da trivialização de episódios da história. Uma parte produzida de forma consciente, com objetivos políticos precisos, resultando a outra apenas da leviandade, da indiferença ou da ignorância. Por isso o vínculo entre história e memória está na ordem do dia, seja para quem aproxima estas duas categorias de representação do passado, seja para os que pretendem a sua separação. Olhar com sentido crítico e pragmatismo a relação entre ambas requer um banho de realidade.

                              Em 2015 duas fundações francesas de investigação divulgaram os resultados de um inquérito subordinado ao tema Mémoires à venir. Envolveu cerca de 32 mil jovens de 31 países – Austrália, Canadá, Estados Unidos, Japão, Índia, Israel, Rússia, Turquia e quase toda a Europa – com idades compreendidas entre os 16 e os 19, e visava conhecer aquilo que os cidadãos educados já neste milénio retêm dos grandes acontecimentos do século XX, com a particularidade de terem sido colocadas as mesmas questões a pessoas de regiões e culturas muito diversas. Os acontecimentos mais referenciados foram aqueles que incorporaram uma dimensão traumática: o Holocausto, as bombas atómicas sobre o Japão e as duas guerras mundiais. Dos episódios mais recentes, destacaram-se os que em 1989-1991 envolveram a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética.

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                                Atualidade, Democracia, História, Memória, Opinião

                                Redes sociais: de realidade paralela à normalidade

                                O tema desta crónica não é novo, mas justifica uma atenção constante. O neurocientista António Damásio considerou recentemente que as redes sociais são «uma das mais espetaculares razões de declínio da qualidade de vida», afirmando que o acesso rápido e maciço a informação mal pensada representa hoje «um risco extraordinário». A esta declaração junto uma outra, mais conhecida, expressa por Umberto Eco numa das últimas entrevistas, observando que esses espaços de comunicação «dão o direito à palavra a uma legião de imbecis que, antes destas plataformas, apenas discutiam nas tabernas, após um copo de vinho, sem prejudicar a colectividade». Para Eco, «o idiota da aldeia» ganhou assim o direito a ter voz pública, dizendo o que lhe ocorre e passando a «detentor da verdade», misturando os códigos acerca do bem e do mal, do verídico e do falso, do racional e do incoerente.

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                                  Cibercultura, Democracia, Opinião

                                  Falta de conhecimento e ausência de norte

                                  Tenho uma convicção reforçada a cada dia: a de que as grandes conquistas políticas e sociais apenas são irreversíveis, e têm condições de antecipar outras que as irão ampliar, se não dependerem apenas de interesses e acordos conjunturais. Isto é, se forem articuladas com uma consciência coletiva, de ordem histórica e cultural, da sua necessidade e da sua justeza. A partir da Revolução Francesa, os princípios emancipatórios da igualdade perante a lei, do valor da liberdade individual, da fraternidade como elemento edificador do Estado-Providência, da justiça social e dos direitos humanos puderam vingar – apesar da linha irregular de avanços e recuos – porque estiveram presentes no combate de ideias e em grande número de obras literárias e artísticas. Foram estes que estruturam em boa parte do mundo as convicções, as expetativas, o gosto e a noção de humanidade pelos quais tantos se bateram ao longo de gerações, oferecendo coesão e fundamento subjetivo a essa luta.

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                                    Resistir ao poder da ignorância

                                    A terrível frase «Muera la inteligencia! Viva la muerte!» terá sido pronunciada na manhã de 12 de Outubro de 1936 no Salão Nobre da Universidade de Salamanca. Foi seu autor o general franquista José Millán-Astray e com ela pretendia afrontar o reitor Miguel de Unamuno após este ter feito um elogio da sabedoria e do diálogo. Existem versões um pouco diferentes do episódio, mas o que importa é que têm sido estas as palavras repetidas nos últimos oitenta anos para destacar o combate justo da razão e da democracia contra a força da ditadura e da ignorância. Na Alemanha, o nazismo nascera também da imposição do ódio e do obscurantismo sobre o diálogo e o conhecimento, queimando livros e conduzindo o mundo ao pesadelo da Segunda Grande Guerra e do Holocausto. Todos os fascismos tiveram, aliás, este denominador comum: o repúdio da razão e da sabedoria por troca com a força do instinto e as certezas fundadas em ideias muito básicas que dominaram o quarto de século chamado por Hannah Arendt de «tempos sombrios».

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