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A Grécia também é aqui

Não gosto de me ver forçado a escolher entre um «sim» categórico e um «não» definitivo. Nem de inabaláveis certezas. O interesse pessoal e profissional pela história ajuda-me a reforçar esta relutância, oferecendo a noção de que jamais um não é um absoluto não ou um sim um completo sim. Também não gosto de escolher o «talvez», por traduzir quase sempre um cómodo gesto de evasão ou um cómodo diferimento. Por isso suspeito dos referendos, de todos eles: normalmente empenham-se em simplificar o complexo, transformando em imperativo supostamente perfeito aquilo que sempre é temporário e relativo.

Todavia – desta palavra, sim, gosto bastante –, existem momentos da nossa vida partilhada em que não é possível fugir a tomar uma posição que seja, ainda que provisoriamente, taxativa. Como quando, em tempo de guerra, se torna impossível fazer de contas que nada do que está a acontecer em redor é connosco, deixando que os outros se arrastem no fogo e na devastação enquanto dormimos a sesta ou nos refrescamos. Aqui, quando não há escolha senão a de trucidar ou a de ser trucidado, calar e correr à margem deixa de ser um gesto de liberdade e transforma-se numa expressão de cobardia. Ou de cumplicidade com uma das partes, sem a coragem de admitir que é esta ou aquela a nossa escolha no conflito. (mais…)

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    O PS e os cidadãos «moderados»

    Em regra, quem decide as eleições nas democracias representativas europeias são os cidadãos «moderados». Aqueles eleitores que habitualmente se eximem de ter opinião, que não se batem por causas, e que pretendem, acima de qualquer outra coisa, obter o que julgam menos mau para o seu sossego e bem-estar. Desejam sempre uma solução que seja a menos inquietante, traduzida numa forma muito simples de delegação da soberania. E por muito que tal não seja simpático a quem tenha da experiência da cidadania uma noção mais empenhada, temos de admitir que quando assim não acontece tal significa que se vive numa sociedade com elevado potencial de conflito e de violência. Compreende-se deste modo que qualquer partido com a ambição de ser governo precise de ter em linha de conta esse universo, concebendo as suas propostas e a sua imagem pública em função das expectativas que ele contém.

    Em Portugal, têm sido o PS e o PSD os partidos que disputam este setor, concebendo estratégias de sedução que o atraiam para o seu campo. Se, por um lado, do ponto de vista da estrita contabilidade eleitoral se compreende esta atitude, pois se a abandonassem de todo perderiam as eleições, por outro é ela a principal responsável pela criação de uma nebulosa política que tende a diluir a identidade desses partidos e a empurrá-los para um «pacto de interesses» que na verdade os aproxima frequentes vezes. É esta a origem da estabilidade do «arco da governação» que tem dominado Portugal nos últimos quarenta anos. Naturalmente, não se antevê que qualquer destes partidos seja suicidário ao ponto de pôr em causa este equilíbrio. (mais…)

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      Nada será como dantes

      Foram grandes as expectativas criadas em Portugal com a vitória do Syriza nas eleições do passado Janeiro. A direita no governo, apoiada por uma maioria dos órgãos de comunicação transformada em caixa-de-ressonância, rapidamente desenhou os piores cenários, considerando-a um erro de avaliação da parte dos gregos – obviamente entendidos como crianças grandes, politicamente menorizadas –, e antevendo, como consequência, o incumprimento do pagamento da dívida, tal como a saída da Grécia do euro ou mesmo da União Europeia. Ao mesmo tempo, um sobressalto transversal foi partilhado pela quase totalidade da esquerda e do centro-esquerda, traduzido numa visível simpatia pelo novo governo de Atenas e por alguns dos seus protagonistas, bem como num apoio expresso ou tácito às suas escolhas.

      Foi assim que alguns militantes e dirigentes do Partido Socialista, bem como muitos dos seus simpatizantes e presumíveis votantes, exultaram publicamente com aquela vitória, embora, como era de esperar, desde o início outros a temessem ou rejeitassem de forma liminar. Foi assim que o PCP, sem apoiar expressamente o Syriza, se eximiu de o criticar, ao contrário daquilo que, como é sabido, tem feito o KKE, o Partido Comunista da Grécia, que o combate por lhe atribuir um papel de mera «muleta do capitalismo». Foi assim também que a nossa «esquerda da esquerda» apoiou incondicionalmente a experiência grega, assumindo como suas as suas escolhas, por muito que algumas delas, em particular aquelas que têm privilegiado os fatores de unidade e de moderação, sejam estranhas a muitas das suas opções políticas internas. (mais…)

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        A alternativa não é o abismo

        No artigo publicado esta segunda-feira no Guardian, que hoje mesmo o DN traduziu, o historiador Timothy Garton Ash faz notar algumas das pesadas consequências para a generalidade dos gregos, e também para muitos dos Estados da zona euro, que se encontram associadas a uma eventual saída da Grécia da moeda única. A aventura do tão temido quanto desejado Grexit, independentemente da sua aparente inevitabilidade, e de alguns problemas que, pelo menos aparentemente, pode de facto resolver, não deixa de ser isso mesmo, uma aventura.

        Ela traduz, no olhar de Ash, um inevitável afastamento em relação à matriz europeia da nação grega, um fechamento desta sobre si própria, a criação de uma situação de subalternidade em relação à Turquia, seu concorrente histórico na região, e, dir-se-á também, uma dependência maior, com consequências não menos imprevisíveis que as que neste momento se configuram por causa da situação de insolvência, em relação aos interesses económicos e geoestratégicos da Rússia e da China. Além de que produziria rapidamente a maior descida do nível de vida da história recente do país. Se tal ocorresse, a resolução do problema da dívida traria assim consequências que, no imediato, seriam ainda mais pesadas que as produzidas por estes anos de brutal austeridade, e «os gregos se perguntariam para quê terem sofrido tanto.» (mais…)

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          O meteorologista e o «dever de memória»

          Olivier Rolin

          Não acontece apenas com o Holocausto: existe também um negacionismo do Gulag. A década e meia que se seguiu à queda do Muro de Berlim correspondeu a um período de expansão de trabalhos sobre a dimensão e o impacto da repressão política e social na União Soviética durante o longo período em que Estaline foi impondo a sua brutal ditadura. Estudaram-se em particular a formação e o desenvolvimento do Gulag, o tentacular e imenso sistema de campos, bem como as decisões de natureza genocida, impostas por manobras de engenharia social que envolveram muitos milhões de pessoas, e ainda os assassinatos em massa perpetrados durante o Grande Terror de 1936-1938. Nos últimos anos, porém, algo tem vindo a mudar neste processo de reconhecimento. E a mudar num sentido preocupante, com a emergência pública de vozes que se esforçam por negar ou por justificar aquilo que aconteceu.

          Naturalmente de valia diversa, a maior parte desses estudos foi levada a cabo por historiadores profissionais, cientistas políticos e jornalistas reconhecidos de várias nacionalidades, que puderam ter acesso aos arquivos da antiga URSS, outrora sonegados ao conhecimento dos cidadãos e à investigação, enquanto no interior da Rússia a Associação Memorial, fundada em 1989, se esforçava por desenvolver um trabalho árduo mas persistente e com resultados palpáveis de recuperação da memória das vítimas e de inventário da pós-memória dos seus descendentes. (mais…)

            Biografias, Democracia, História, Leituras

            A sobrevivência de uma nação

            Fot. Zsolt Halasi

            Quando se observa a formação do SYRIZA, o modo como conquistou a maioria do eleitorado e o apoio à atuação do seu governo, um primeiro fator de surpresa assenta na razoável coesão face à diversidade de organizações, tendências e expetativas que estiveram na sua génese. Uma segunda surpresa advém do facto de, mesmo na atual conjuntura de negociações e de dificuldade em cumprir o programa eleitoral, o SYRIZA ter vindo a ampliar a maioria alcançada nas urnas. Uma sondagem publicada no passado domingo pelo diário Avgi dá-lhe mesmo 48,5% das intenções de voto, enquanto o principal partido da oposição, a Nova Democracia, obtém apenas 21%, o Partido Comunista da Grécia e a Aurora Dourada 6%, o To Potami 5,5%, o PASOK 4% e os Gregos Independentes 3,5%. Um terceiro fator de surpresa, que mais diretamente nos diz respeito, resultará do exercício de comparação com o caráter acentuadamente fragmentado de boa parte da esquerda portuguesa e com o facto de, contrariamente ao que se passa na Grécia, qualquer esboço de diálogo entre as partes que a constituem tender sempre a colocar as diferenças à cabeça. (mais…)

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              Europeus porque gregos

              Vassilis Alexakis é um escritor natural de Atenas com alguns prémios de prestígio no currículo, como o Médicis e o da Academia Francesa para o romance. Depois de ter vivido em Paris o movimento de Maio de 68, ficou por França quando a «ditadura dos coronéis» o forçou ao exílio. Acabou por obter a dupla nacionalidade, conservando no entanto uma forte ligação física e cultural ao país onde nascera em 1943. Vassilis tem, aliás, a particularidade de escrever os seus romances em francês e depois de ser ele próprio a vertê-los para o grego, o que parece configurar a forma perfeita de tradução, quando o momento da criação se desdobra em duas línguas sem o recurso a um intermediário espúrio. La clarinette, editado em Fevereiro, é o seu último livro.

              Em entrevista recente ao L’Express, Alexakis sintetizou de forma convincente três mil anos de história grega. Ouçamo-lo: «A Grécia, berço da democracia, permaneceu sempre fora do processo de formação dos Estados europeus, passou ao lado do Renascimento e ignorou o século das Luzes. Foi este o seu drama e o seu paradoxo. Depois saiu da ocupação otomana como se nada tivesse mudado. O Estado permanece como o inimigo, toda a gente procura enganá-lo, só a organização familiar conta. Quanto à riquíssima Igreja, cujo poder espiritual é tão forte quanto o seu poder material, permanece intocável; contestá-la equivale a renegar a pátria e pode mesmo levar quem o faz à barra dos tribunais.» (mais…)

                Atualidade, Democracia, Olhares

                Corpo, cabeça e cauda

                Fotografia de Yannis Behrakis
                Fotografia de Yannis Behrakis

                Publicado originalmente no blogue Observatório da Grécia

                Há trinta anos, quando Mário Soares assinou nos Jerónimos o tratado de adesão de Portugal à CEE, era habitual a imprensa nacional fazer comparações com a Grécia para tentar identificar qual dos dois Estados se situava, como então se dizia e repetia, «na cauda da Europa». O processo decorria como numa corrida de estafetas, pois a cada momento, de acordo com as circunstâncias e os indicadores escolhidos, um deles superava provisoriamente o outro.

                A absurda competição – desconheço se entre os gregos ela teve também lugar – impunha, de acordo com um raciocínio viciado que ainda não desapareceu de todo, a depreciação sistemática dos números apresentados pelos nossos concorrentes, no sentido de mostrar que, se nos mantínhamos longe dos «países desenvolvidos», a verdade é que tínhamos iniciado um processo que conduziria mais cedo ou mais tarde a entrar no seu clube de elite. Deixando aos gregos a triste sina de se manterem afastados dessa dose certa de desenvolvimento e prosperidade que configuraria aquela que um dia Hegel considerou a etapa perfeita e terminal da História. (mais…)

                  Apontamentos, Atualidade, Democracia, Memória

                  Utopia e folhas de Excel

                  Sempre procurei passar aos meus alunos a mensagem de que a política é, se não a mais sublime das artes, com toda a certeza uma arte indispensável. Sirvo-me da velha aceção de Aristóteles, para quem todo o humano era «zoon politikon», «animal político», ser social cuja vida apenas faz sentido quando integrada na experiência coletiva da polis, a modelar cidade-Estado da antiga Grécia. Na repetida tentativa de os envolver nesta ideia, costumo dizer-lhes que fora dessa experiência perdemos a humanidade, arrastando-nos como seres egoístas e transformando-nos em lobos, entregues à luta bestial pela sobrevivência, ou, como já no século XVII lembrava Thomas Hobbes, a uma infinita guerra de todos contra todos. Por outro lado, definindo a política como arte, não como uma mera experiência, procuro mostrar-lhes que para ser bem executada esta deve incorporar, em simultâneo, destreza, técnica e principalmente criatividade. (mais…)

                    Atualidade, Democracia, Opinião

                    A honra, a pobreza e o futuro

                    Gérard Castello-Lopes - Lisboa, 1957
                    Gérard Castello-Lopes – Lisboa, 1957

                    A minha mãe, que tinha boa memória e mais quarenta anos do que eu, contava muitas vezes episódios de uma juventude passada nas duas décadas que separaram as guerras mundiais. Mesmo pertencendo a uma família da classe média, viveu durante todo esse tempo em condições que impuseram uma existência austera, passada sem grandes festas ou luxos. O pão como base da alimentação (um hábito que conservou durante toda a vida), a sardinha partilhada (sempre lembrada por muitos da sua geração), uma dieta que deixava a carne apenas para os dias especiais, semanas praticamente sem domingos, trabalho constante distribuído pela lide da casa e pelos deveres da horta e do pomar. E roupa e sapatos que deviam durar anos, com viagens a pé para levar o almoço ao pai, meu avô, que nem por ter um trabalho administrativo razoavelmente pago se podia dar a despesas supérfluas. (mais…)

                      Atualidade, Democracia, Memória, Olhares

                      «Batalha de Argel» e legitimidade do terror

                      Em 1957, durante a conferência de imprensa realizada em Estocolmo quando da entrega do Nobel da Literatura, Albert Camus foi interpelado por um estudante sobre as condições em que, no contexto da guerra da independência argelina, então decorria, com episódios de violência extrema de parte a parte, a chamada «batalha de Argel». Tinha acabado de saber da explosão de uma bomba da responsabilidade da Frente de Libertação Nacional que havia provocado dezenas de mortos civis, entre europeus e árabes, ocorrida num mercado da capital da então colónia francesa habitualmente frequentado pela sua mãe. Camus respondeu assim: «Sempre condenei o terror. Por isso devo condenar também o terrorismo cego que está a ocorrer nas ruas de Argel (…). Acredito na justiça, mas defenderei a minha mãe antes de defender a justiça.» Coerente com a ideia que de há muito vinha propondo de forma pública, segundo a qual, no que concerne à condição humana, não existem uma moral e uma justiça adjetivadas, aceitáveis para alguns mas não para outros, o escritor defendeu que ambas integram sempre valores partilhados. Destinados a equilibrar as relações humanas e não a cavar distâncias intransponíveis. (mais…)

                        Cinema, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                        A fúria do cinzento

                        Nos anos 60/70, a dinâmica do parecer servia por vezes, principalmente em ambientes urbanos, para distinguir esquerda e direita. Alguns códigos do vestuário possuíam «marca de classe», ou então enunciavam condições de pertença cultural. A qualidade da roupa, mas também o seu padrão ou o uso de determinados acessórios – como o cachimbo, o isqueiro, o lenço, a pulseira ou a esferográfica – davam-lhe forma. Claro que existiam características excessivamente tipificadas, como algumas associadas a certos mitos sobre a higiene íntima, separando uma direita que podia ter a alma negra mas supostamente se perfumava de uma esquerda cheia de boas intenções para os destinos do mundo e que no entanto se presumia tresandar. Sem entrar em detalhes sórdidos, posso confirmar que por vezes a vida copiava a caricatura. (mais…)

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                          A esquerda que cala, a direita que agradece

                          Parte fundamental do património histórico e identitário da esquerda contemporânea, ou pelo menos de um segmento importante dela, tem vindo nos últimos tempos a ser esquecida, abandonada ou deixada em estado de hibernação por algumas das organizações políticas e dos movimentos de cidadãos que se consideram herdeiras de pleno direito do seu legado global. Ao longo de mais de século e meio de uma vida complexa, e a par da preocupação com a justiça social, muitos dos seus combates mais importantes e difíceis foram de facto travados em favor de uma democracia vivida sem restrições, da mais completa liberdade de expressão e de opinião, dos direitos das mulheres, do respeito pelas minorias, de um ensino público, de uma política cultural do Estado e de uma civilidade absolutamente laicos, não-confessionais e ao dispor de todos. (mais…)

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                            A Grécia e a falha de Esopo

                            Neste momento ninguém pode saber como vai acabar a «crise grega». Mas uma certeza parece ter-se instalado: a de que ela é cada vez menos exclusivamente grega, menos parte dos graves problemas que apenas enfrentam os governos da metade sul da Europa, dizendo cada vez mais respeito ao destino comum dos países e dos povos do Velho Continente. Ao mesmo tempo, a onda de choque produzida pela esmagadora vitória eleitoral do Syriza está a suscitar um despertar coletivo e partilhado para outra solução. (mais…)

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                              A esquerda e a ecologia do rancor

                              Evening on ex-Lenin Street | Andrew Rudakov

                              Escrevo isto sem prazer. A experiência do rancor tem acompanhado parte substancial do percurso histórico da esquerda. Essa sombra pode ser encontrada nos seus fundamentos teóricos, bem como em muitas das escolhas e atitudes que foram construindo a sua identidade como fator de mudança. Toma aí a forma de instrumento do combate político, geralmente fatal quando os conflitos se agudizam. Por outro lado, pode ser observada no relacionamento entre os segmentos e sensibilidades nos quais ela se foi repartindo e espartilhando ao longo de mais de dois séculos. Este é um poderoso paradoxo, capaz de pôr em causa a dimensão agregadora, solidária e antiautoritária inscrita no seu código genético. Separando de forma dramática e irreversível, por vezes com a máscara do ódio, aquilo que poderia ou deveria ter permanecido próximo. (mais…)

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                                Quatro notas sobre o Tempo de Avançar

                                Enrique-Vives-Rubio
                                Fotografia de Enrique Vives-Rubio | Público

                                Quatro curtas notas sobre o modo como decorreu a convenção da candidatura cidadã Tempo de Avançar, que durante o último sábado reuniu no Fórum Lisboa perto de 800 pessoas. O seu objetivo expresso e comum foi o de preparar uma alternativa de esquerda em condições de se apresentar às próximas eleições legislativas como escolha consistente, construtiva, autónoma e mobilizadora. (mais…)

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                                  Os quatro Charlies e a «rua europeia»

                                  Rennes. Fot. Gaspard Glanz

                                  Conto quatro Charlies em cada protesto de rua pelo ato terrorista de 7 de Janeiro. Podem responder à mesma convocatória, mas chegam de bairros diferentes e seguirão destinos que raramente se cruzam. Há um Charlie de extrema-direita, xenófobo, racista, islamofóbico, que vê no acontecimento um pretexto para atacar a democracia e envenenar a opinião pública com um discurso segregacionista sobre a imigração e a necessidade da força. Há depois um Charlie de colarinho branco, com o rosto do político insolentemente oportunista, sedento de protagonismo, que, como fez em Paris Nicolas Sarkozy, acotovela os outros para chegar à primeira fila e aparecer na fotografia. Há também um Charlie genuinamente indignado mas que desfila como mero figurante, vestindo a t-shirt do Charlie Hebdo porque «toda a gente» a veste. E há ainda um outro Charlie, pouco interessado na linha editorial ou no valor dos cartoons do semanário satírico parisiense, mas verdadeiramente apreensivo com o risco de um rápido recuo da liberdade de expressão e do direito à crítica e ao humor. (mais…)

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                                    Caros inimigos

                                    É óbvio que a presença de um conjunto de governantes do centro-direita, entre eles, dizem, o nosso internacionalmente inócuo Passos, na manifestação que hoje em Paris pretende mostrar um amplo protesto contra o terrorismo, não pode ser fácil de digerir pelas pessoas de esquerda. Em especial por aquelas, entre as quais me incluo, que não aceitam pôr tudo – todas as formas de terrorismo, todos os pressupostos nos quais assenta a liberdade de opinião e de informação – dentro do mesmo saco. A unanimidade diante da defesa desses valores básicos não é sinónimo de unanimismo, uma vez que, para uns e para os outros, o preto e o branco não são necessariamente as mesmas cores nem produzem os mesmos efeitos. No entanto, recorrendo à história e à memória partilhada por várias gerações, recordo aos mais céticos que, quando foi necessário fazer frente a um perigo absoluto e maior, a esquerda francesa, que por certo não era então estúpida nem suspeita de traição face às suas causas maiores, se bateu de armas na mão do lado de De Gaulle, de Truman, de Churchill ou de Estaline. David Cameron e Abu Bakr al-Baghdadi não são farinha do mesmo saco e tal deveria ser óbvio.

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