Arquivo de Categorias: Democracia

Árabes e helicópteros

Síria

Não sei se é por agora estarmos tão preocupados connosco, com o nosso emprego e com o vazio do nosso porta-moedas, que os árabes voltam a parecer-nos mais estranhos, mais distantes. Ou então se será por causa de vermos os helicópteros de Sarkozy e de Cameron a lançarem rockets sobre as posições de Khadaffi. Pode ser também porque o Avante! não se esqueceu de «informar» que por trás dos levantamentos populares na Síria está tão-somente a CIA em todo o seu esplendor. Ou então porque Bashar al-Assad ainda há pouco mimava com desembaraço o papel sinistro, mas popular na imprensa cor-de-rosa ocidental, de príncipe encantado. A verdade é que os acontecimentos libertadores de Tunes e do Cairo já vão longe e aquilo que está agora mesmo a acontecer na Líbia ou na Síria, com o exército a lançar os tanques contra cidades inteiras ou sobre caravanas erráticas de refugiados, quase não tem lugar nos nossos jornais e televisões, para não falar no discurso autocentrado de uma classe política sem rasgo e uma perspectiva do mundo para além dos arrabaldes de Badajoz. No Facebook, entretanto, até os profissionais das causas parecem acreditar que por ali no pasa nada. Ou de que, se algo está a acontecer, esse algo não terá seguramente muito a ver connosco. Envolve-nos um silêncio comprometedor a propósito dos sinais bem visíveis e muito preocupantes de esmagamento da revolta árabe.

    Apontamentos, Atualidade, Democracia

    Jorge e o espírito de Buchenwald

    Jorge Semprún

    Chegou a vez de Jorge, Jorge Semprún (1923-2011). A Wikipédia regista-o como «escritor, intelectual, político e guionista cinematográfico». Foi tudo isso, sem dúvida, mas para várias gerações de antifascistas e de democratas europeus foi principalmente o exilado da Guerra Civil, o resistente torturado transformado no prisioneiro 44.904 do campo nazi de Buchenwald, o dirigente comunista dedicado, expulso do Partido em 1964 por divergências políticas com Dolores Ibarruri e Santiago Carrillo, e o activo e independente ministro da Cultura de Felipe González. Como escreve o El País no seu obituário, «construiu a sua obra literária com os fragmentos da sua própria memória e nela reside, por isso, a recordação dos factos e dos sentimentos de uma vida marcada a fogo por todas as barbáries modernas.» De si próprio disse Semprún em Adiós, luz de veranos…, parafraseando Baudelaire, «tenho mais recordações do que se tivesse mil anos». Há três dias, na última colaboração que enviou para o diário madrileno onde escrevia habitualmente, recordou a última viagem a Buchenwald, realizada havia pouco mais de um mês, já em precárias condições de saúde e sabendo por isso ser a derradeira: «Ahí, en un antiguo campo de concentración nazi convertido en prisión estalinista, es donde debemos celebrar la Europa democrática. Contra todas las amnesias.»

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      Feminismos em Portugal

      feminismos

      Uma ideia disseminada considera que o percurso dos feminismos, ou pelo menos o da sua presença visível e com impacto público, é em Portugal relativamente recente, circunscrito às duas últimas décadas do regime democrático. Feminismos – Percursos e desafios, um livro de Manuela Tavares publicado há poucos meses, vem provar o equívoco desse juízo injusto e apressado, mostrando, precisamente em sentido contrário, que o rasto dos movimentos promotores dos direitos das mulheres é afinal razoavelmente dilatado e tem uma agenda própria. Duas das razões que determinaram esse erro de perspectiva são anotadas logo no início da obra: de um lado, a possante influência do regime autoritário do Estado Novo, vinculado a «uma ideologia de submissão das mulheres» que silenciou as ténues mas reais posições de natureza emancipatória projectadas durante a Primeira República; do outro, o peso do «pensamento dogmático das esquerdas políticas», que não souberam «captar a dimensão plural dos feminismos» e aquilo a que a autora chama «as contradições de género na sociedade», sistematicamente subsumidas na lógica da unidade na acção. (mais…)

        Atualidade, Democracia, Olhares

        Contra e por

        Stéphane Hessel

        Indignai-vos!, o livro-libelo de Stéphane Hessel, tem servido para defender que a mudança de um real injusto, tantas vezes imposto como inevitável, começa pela capacidade de nos indignarmos perante os poderes que o determinam, rebelando-nos contra eles. E tem servido também para municiar uma insurreição pacífica contra as vozes «que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos». Hessel, hiperactivo aos 93, acaba entretanto de publicar um novo livro, Engagez-vous! (Comprometei-vos!), constituído por uma conversa com o diplomata Gilles Vanderpooten ao longo da qual menciona o beco sem saída no qual pode cair a indignação pela indignação. Defende que esta deve unir-se obrigatoriamente a uma noção de compromisso, de empenhamento para produzir algo de concreto, de objectivo, superando a pura negação através de propostas capazes de unirem e de estimularem uma mudança consistente. «Enfadar-se apenas», diz Hessel numa entrevista ao El País, «não tem sentido para mim», acrescentado que a pura ira «não conduz a parte alguma, deve ser seguida de compromisso.» Uma sugestão vinda de quem anda há quase oito décadas envolvido no combate político e social e claramente dirigida a quem se aplica, criando condições para o rápido retrocesso e a depressão pós-revolta, a indignar-se sem apresentar propostas consistentes e sem dialogar com quem é possível dialogar, de modo a gerar as empatias que autorizam a verdadeira mudança. Um aviso para quem se preocupa principalmente com o «contra», descurando o «por». A indignação pura que leva ao protesto – vemo-lo claramente por estes dias, como há muito não acontecia –  é por vezes urgente, dramática, imperativa, mas não pode ser um fim em si. Sob pena de se autodestruir e de levar consigo aqueles que lhe dão a voz.

        Bónus: 5 minutos de conversa com Stéphane Hessel

          Atualidade, Democracia, Opinião

          Duzentos mil

          Coreia do Norte

          Como motivo de apreensão, sabemos que não é esta de momento a nossa prioridade. Mas se quisermos – como o provaram, no limite, as atitudes corajosas de tantas vítimas e sobreviventes dos campos de concentração ou extermínio – mesmo nas piores condições pode e deve criar-se um espaço destinado impedir que as desgraças dos outros sejam vividas num silêncio que só as agrava. Quando pouco ou nada podemos fazer para as minorar, podemos, pelo menos, tudo fazer para que esse sofrimento possa ter algum sentido. Por isso, e de acordo com um extenso relatório divulgado há dias pela Amnistia Internacional, não pode passar em claro que os campos de presos políticos da Coreia do Norte são afinal ainda maiores e piores do que até há pouco se pensava, contando nesta altura com cerca de 200 mil pessoas detidas.

          Sucedem-se as execuções, o trabalho escravo tornou-se a regra, a tortura e a fome são uma constante. A Amnistia teve acesso a imagens de satélite que conseguem determinar a localização e o tamanho dos campos de prisioneiros políticos, tendo reunido também testemunhos de antigos detidos e de ex-guardas prisionais. Estes permitiram traçar um quadro negro e muito preocupante das condições de vida nesses campos. É possível que o aumento das prisões esteja relacionado com a tentativa de impedir perturbações numa altura em que aparentemente se assiste a uma transferência de poder em Pyongyang. Mas nada do que se passa é aceitável ou justifica, como tantas vezes se passa deste lado do planeta, que continue a praticar-se o crime de omissão.

          Pode entretanto, assinar aqui, uma petição pedindo o encerramento do campo da Yodok, o maior e sem dúvida um dos piores.

            Atualidade, Democracia, Olhares

            O inevitável é inviável

            Não se trata de um programa para a acção, mas sim de uma declaração de princípios. Isso faz toda a diferença e torna este manifesto particularmente importante.

            Manifesto dos 74 nascidos depois de 74

            Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.

            O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde. (mais…)

              Atualidade, Democracia

              O caso Weiwei

              Ai Weiwei, o mestre-escultor das sementes de girassol em porcelana que é possível esmagar com os pés, o importante artista, filósofo e activista dos direitos humanos, foi preso este fim-de-semana em Pequim quando se preparava para viajar até Hong-Kong. Na mesma altura foram também detidos diversos colaboradores seus. Neste momento as autoridades da República Popular da China mantêm Weiwei incontactável.

              Uma petição exigindo a sua libertação pode ser assinada aqui. Imagens de algumas das suas obras podem ser vistas neste slideshow.

                Apontamentos, Artes, Atualidade, Democracia

                Indignar-se

                Stéphane Hessel

                Custa pouco mais do que um maço de cigarros o livro de Stéphane Hessel, best-seller em França, que chegou agora às nossas livrarias. Indignai-vos! é a declaração de um imperativo, escrita por alguém que tem suficiente autoridade moral para o fazer: aos 93, herói da Resistência francesa, sobrevivente dos campos de concentração nazis e um dos redactores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o autor continua lúcido e tão atento aos motivos para a indignação do nosso tempo quanto aos dos anos durante os quais, em vez de se calar, de pactuar, de desistir, arriscou a vida por causas imprescindíveis.

                Alguns destes motivos são colocados pela necessidade de resistência à barragem de informação que se tem esforçado por fazer-nos acreditar não existirem alternativas ao mundo no qual vivemos: «Ousam dizer-nos que o Estado já não consegue suportar os custos das medidas sociais. Mas como é possível que actualmente não tenha verbas para manter e prolongar estas conquistas, quando a produção de riquezas aumentou consideravelmente desde a Libertação, quando a Europa estava arruinada?» Tal é possível, conclui, «apenas porque o poder do capital nunca foi tão grande, insolente, egoísta, com servidores próprios até nas mais altas esferas do Estado.» E continua: «Os bancos, agora privatizados, preocupam-se principalmente com os seus dividendos e com os elevadíssimos salários dos seus administradores, e não com o interesse geral. O fosso entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande, a competição nunca foi tão incentivada.»

                A fantasia segundo a qual não é possível actuar contra esta situação de desigualdade tem no entanto os seus agentes, responsáveis directos pelo disseminar de uma convicção de que as coisas «são como são» e de que o que há a fazer é cada um tentar arranjar maneira de passar à frente dos outros. O antigo resistente propõe então «uma verdadeira insurreição pacífica contra os meios de comunicação de massas que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos.» Por isso, mesmo no coração das democracias – onde não é preciso atirar pedras ou pegar em armas para fruir do direito à palavra – indignar-se é preciso. Desde logo contra esta ditadura da inevitabilidade, responsável pela disseminação sedativa do princípio da desigualdade «natural». Foi isto que, ao aproximar-se do final da vida, Hessel sentiu que ainda era importante dizer. «A todos aqueles e aquelas que irão fazer o século XXI.»

                Stéphane Hessel, Indignai-vos! Objectiva. Prefácio de Mário Soares. Trad. Paula Centeno. 52 págs.

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                  Os 178 trabalhos de Cuba

                  Cuba

                  «É preciso suprimir as preocupações paternalistas que atenuam a necessidade de trabalhar para viver», disse Raúl Castro após mais de 50 anos ligado a um governo que cedeu a tal descuido. Para dois milhões de cubanos, funcionários do Estado, 500.000 agora e mais 1.500.000 a prazo, isto significa uma acusação formal de mandriice. E a obrigação de procurarem um novo modo de ganhar a sua vida. Como? Trabalhando numa das 178 actividades privadas que o governo lhes permite ter, ainda que não possuam formação para qualquer uma delas ou um financiamento básico para lançarem o negócio. A lista – anexo 1, da resolução número 32 de 7 de Outubro de 2010 – parece uma sucessão de deixas para um mau programa de humor. Abre com «reparador de instrumentos de música» e encerra com «alugador de bicicletas». Pelo meio, «poceiro» (o operário que abre poços), «cabeleireiro», «engomadeira», «fabricante de cintos», «polidor de metais», «pedreiro», «vendedor de vinho», «figura folclórica» (imagino o que possa ser), «cartomante» (sic), «vendedor de flores artificiais», «descascador de frutos naturais», «par de dança» ou, acreditem, «dandy» (talvez em Cuba signifique outra coisa). Pode também entrar-se com expectativas na carreira de «estofador de botões» (a pessoa que reveste de tecido alguns modelos antiquados daqueles acessórios do vestuário), «tratador de cães», «carregador de isqueiros», «colector-vendedor de matérias primas» (aquele que remexe no lixo para recolher e revender o que se puder aproveitar), «operador de compressor de ar, reparador de pneus e de câmaras de ar», ou «preparador-vendedor de bebidas não alcoólicas ao domicílio». Como disse o Castro mais novo, «é preciso acabar de vez com a ideia de que em Cuba é possível viver sem trabalhar». Existe agora um mundo novo de possibilidades, bem preciso e bem delimitado, que liberta o Estado dos inúteis e dos preguiçosos e que prepara o futuro do país. Basta solicitar licença para exercer uma actividade que conste do catálogo, aguardar pelo deferimento e ficar à espera do milagre da sobrevivência. Para pelo menos dois milhões de trabalhadores cubanos e para as suas famílias é este o deprimente horizonte.

                  Dados retirados do suplemento «Le Mag» do Libération de 23 de Janeiro.

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                    No olho do vulcão

                    Túnis

                    Nawaat – a palavra significa «núcleo» em árabe – autodefine-se como «um blogue colectivo independente animado por tunisinos que dá a palavra a todos aqueles que pelo seu combate cívico a tomam, proferem e difundem». Tem publicado centenas de textos, fotografias e principalmente vídeos sobre o movimento popular de protesto que desde meados de Dezembro tem percorrido a Tunísia. É independente, não aceitando qualquer subvenção partidária. No ar desde 2004, foi desenvolvendo ao longo destes últimos seis anos a dose de engenho e de arte bastante para contornar a censura imposta pela ditadura de Ben Ali. E foi agora instrumental no lançamento e na organização dos protestos. Editado em inglês, francês e árabe, pode ser visitado aqui.

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                      Limpeza de pele

                      Mark Twain underwater

                      – We blowed out a cylinder-head.
                      – Good gracious! anybody hurt?
                      – No’m. Killed a nigger.
                      – Well, it’s lucky; because sometimes people do get hurt.

                      O Público noticiava há dias que a New South Books, uma editora do Alabama, vai reeditar As Aventuras de Huckelberry Finn, de 1884, expurgadas das 219 referências à palavra nigger que aparecem no romance. Também a palavra injun será substituída. A primeira, que se refere pejorativamente ao preto, ao negro, à «pessoa de cor», como insistem em dizer os racistas brancos mais embaraçados, será substituída por slave. Já injun, epíteto ofensivo aplicado aos native americans, será trocada por indian. Uma vez mais, justifica-se o gesto rasurador – que não é novo, pois até a Bíblia foi submetida já a alguns liftings recentes –, com a consideração dos termos originais como sendo ofensivos ou politicamente impróprios. Na ignorância, completa ou propositada, de Mark Twain se ter servido daquelas palavras para reforçar o lugar social injusto de algumas das personagens. O escritor foi, aliás, um apoiante empenhado da abolição da escravatura e do alargamento dos direitos civis dos negros americanos (tal como foi também, já agora, um partidário da extensão às mulheres do direito de voto). Foi ainda grande amigo ao longo da vida de John Lewis, um negro que serviu de inspiração para o personagem Jim, central no romance em causa.

                      Muitos anos antes de Martin Luther King ou Malcom X terem sequer nascido, já Twain se empenhava num combate, na sua época particularmente difícil e solitário, que muitos anos mais tarde faria com que alguns sectores racistas afiançassem ter ele uma quantidade importante de «sangue negro». Ou «afro-americano», como em sentido inverso, e de forma completamente anacrónica em relação aos conceitos e às palavras usados no tempo do escritor, existe quem prefira dizer. Vale sempre a pena, diante de tais afirmações de reiterada ignorância, imprecisão ou mera estupidez, insistir no perigo que comporta este tipo de escolha supostamente purificadora. Em nome da omissão de palavras ou de conceitos julgados depreciativos, ou na tentativa de contrariar uma absurda «censura preventiva» – que tem levado, por exemplo, à retirada de algumas bibliotecas públicas americanas de livros, clássicos muitos deles, contendo termos julgados «impróprios» –, alteram-se obras literárias e apagam-se pedaços de uma realidade historicamente vivida ou imaginada em contextos muito diversos e que só podem ser compreendidos nas suas circunstâncias. Com tais gestos dilui-se também o rastro de etapas dos processos de emancipação das sociedades e das próprias palavras. Voltando-se o feitiço contra o feiticeiro, se é que não convirá referir este profissional como «técnico de práticas mágicas», «agente de subculturas locais» ou coisa que o valha.

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                        Rir para não pirar em Pyongyang

                        Pyongyang

                        Não sei se já todos vocês passaram por uma situação análoga, mas aconteceu-me uma meia dúzia de vezes. Viver uns quantos dias, por opção mal avisada, numa cidade desinteressante, sem nada de especial para fazer, sem conhecer ninguém, sem lugares bonitos para visitar, mas, por não dispor de transporte próprio, a contar pacientemente os dias que faltam para sair dali para fora. Nessas alturas, se não queremos morrer de tédio ou que nos aconteça alguma coisa má ao cérebro, o melhor que há a fazer, para além de dormir muito, de ler todos os livros que tivermos conseguido levar e de tomar notas para o romance que vinte anos antes planeámos escrever, é procurar fazer render aquilo que se encontra à nossa mão. Esquadrinhar os recantos das praças, reparar em cada centímetro dos corredores do museu local, ponderar a dimensão dos edifícios e das estátuas, tentar perceber como comunicam os naturais, e principalmente observar o que se passa no hotel que nos coube como se de uma inesgotável aventura se tratasse.

                        Pois foi precisamente isto que fez Guy Delisle, o canadiano autor de livros de banda desenhada que em 2003 publicou Pyongyang. A Journey in North Korea, relato visual de uma sua estadia de trabalho, como supervisor de um estudo asiático de cinema de animação, na cidade capital do império norte-coreano da dinastia Kim. Só que, neste caso, à situação do viajante aborrecido de morte associou-se a consciência de um universo regulado pela vigilância paranóica e pela repressão. A sua forma de sobreviver no mundo sombrio ao qual se viu confinado, e que procurou descrever neste livro, colocando-o ao dispor da compreensão do leitor, foi então olhá-lo de uma forma aparentemente ingénua, fazendo com que o seu modo de observação fosse filtrado pelo relato de episódios nos quais o absurdo e a comicidade insinuam um devastador efeito crítico. Insistindo na arma do humor, que mesmo na sociedade mais repressiva do mundo serve, como em toda a parte, de factor de resistência. Segundo Delisle, uma piada com bastante êxito em Pyongyang é aquela que procura explicar por que motivo os velhos autocarros que circulam na capital, todos eles montados na distante década de 1950 por operários dos arredores de Budapeste, têm invariavelmente entre uma e cinco estrelas de cinco pontas pintadas na carroçaria: é uma por cada 5000 quilómetros percorridos sem acidentes.

                        Tal como outros livros de Guy Delisle, este está à venda nas lojas da rede FNAC.

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                          Liberdade a sério

                          liberdade

                          É sabido desde James Fenimore Cooper que a espionagem é uma das belas-artes. Muito mais criativa e inesperada – Robert Littell ou John Le Carré sabem bem do que falam nos seus romances – do que anuncia todas as manhãs o aborrecido «mundo real». Mas mais silenciosa também: o seu universo é da cor da penumbra e os personagens que o cruzam existem principalmente nos relatórios classificados como confidenciais, nas pequenas notícias saídas nas páginas pares dos jornais, ocasionalmente num obituário rebuscado. Na verdade, a maior parte das figuras que circulam por estes subúrbios da vida não se revê no agente 007. Não dá muito nas vistas, mantém uma vida aparentemente sossegada, sem o glamour do smoking ou o olhar vítreo de Madame M, sem o roçagar de lindíssimas mulheres ou perseguições em automóveis desportivos. De facto, a vida do espião típico, infatigável e eficaz não se distingue da vida do funcionário anónimo, cansado, de uma companhia de seguros com falta de clientela. Afinal este é um indicador de uma realidade maior que qualquer pessoa avisada deveria conhecer: a vida diplomática e a espionagem são irmãs gémeas apenas com cargos diferentes, ambas feitas de aparências, de enganos e de muitas máscaras. Mas jamais de distracções.

                          Por isso se torna perigoso que nos deixemos arrebatar pela actividade frenética da WikiLeaks. Não, não me parece que Julian Assange seja um Robin dos Bosques, muito menos um Jean Valjean, e não me espantaria que fosse até mais um Julien Sorel. Um tipo arrivista que passa aos olhos de meio mundo por cândido, honesto e imprescindível. Esta é a minha suspeita – não provada, admito – e por isso não embandeiro em arco com elogios descomedidos ao homem. Só que uma eventual desconfiança não pode ignorar uma certeza que estes dias têm provado: a de que a repressão da actividade da organização está a a servir de pretexto para um ataque generalizado contra a liberdade de expressão e de informação através da Internet. E isto de modo algum pode aceitar-se. Devemos pois enfrentar a arbitrariedade dos poderes que visam abafar vozes em condições de questionar a fiabilidade dos poderosos, por muito que o seu combate possa ter propósitos e se sirva de meios um tanto enigmáticos. Afinal a WikiLeaks não tem qualquer programa claro, mais parecendo um megafone de feira do que uma voz afirmativa em prol de uma causa com objectivos. O que não significa que deva ser calada e que a informação que entretanto vai passando não possa servir para questionar o comportamento arrogante e bem pouco transparente de numerosas figuras do topo da política internacional.

                          Por isso também é importante apoiar as acções destinadas a impedir por todos os meios que tirem a voz a Assange. Sem esquecer, todavia, que um combate ainda mais difícil e necessário travam aqueles que em países como a China, Cuba ou a Coreia do Norte, como o Irão, a Líbia ou mesmo Angola, se batem também pela liberdade de opinião como valor absoluto. Sem esquecer que sobre estes incorrem perigos perto dos quais aquilo que pode acontecer aos activistas do WikiLeaks não passa de cócegas. No domínio do exemplo dado e de um ponto de vista bem objectivo – o da defesa intransigente de uma liberdade sem adjectivos, independente daquilo que possa fazer-se com ela – não vejo em que devam distinguir-se substancialmente os riscos assumidos, devido à actividade que mantêm ou desenvolveram em rede, pelo australiano Assange, pela cubana Yoani Sánchez ou pelo Nobel chinês da Paz Liu Xiaobo. Nestas matérias é preciso manter todos os piscas ligados.

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                            O Brasil em má companhia

                            Direitos Humanos no Irão

                            Para Mohammad-Javad Larijani, representante do Irão na recente reunião da Assembleia-Geral da ONU na qual foi aprovada uma resolução pedindo o fim do apedrejamento como forma de punição – para além de condenar Teerão por graves violações de direitos humanos e por silenciar jornalistas, bloggers e opositores –, esta constituiria uma inaceitável «politização do assunto». A resolução acabaria por ser aprovada, se bem que com a abstenção dos representantes de Angola, do Benin, do Butão, do Equador, da Guatemala, de Marrocos, da Nigéria, da África do Sul ou da Zâmbia. Já a Venezuela, a Síria, o Sudão, Cuba, a Bolívia e a Líbia votaram mesmo contra. Vale a pena olharmos para esta lista e repararmos, um a um, nos regimes que consideraram ser seu dever recusar-se a apoiar uma iniciativa desta natureza. Nada que pudesse surpreender em qualquer dos casos se à lista das abstenções se não tivesse juntado um outro Estado. Refiro-me ao Brasil, que desta maneira se recusou também a condenar formalmente a prática da lapidação e o regime iraniano. Temos pois um parente que anda em muito más companhias.

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                              Asia Bibi e a blasfémia

                              As filhas de Asia Bibi

                              Do El País de hoje:

                              «La Organización de la Conferencia Islámica (OCI) intenta que Naciones Unidas se pronuncie a favor de legislar contra la blasfemia con ocasión de la reunión del Tercer Comité de la Asamblea General especializado en las cuestiones sociales, humanitarias y religiosas. Aunque se trata de una solicitud rutinaria de la OCI desde 1999, en esta ocasión resulta particularmente inoportuna: sobre una cristiana paquistaní, Asia Bibi, pesa una condena a muerte por haber presuntamente criticado al profeta Mahoma.

                              El debate en Naciones Unidas puede transmitir el equívoco mensaje de que la aplicación de la pena capital es una cuestión controvertida internacionalmente cuando la creencia religiosa está por medio. Ni existe ni debería existir controversia alguna: la pena de muerte es execrable en toda circunstancia, también cuando se dicta por lo que no es, en el fondo, más que el ejercicio de la libertad de opinión. Mejor harían la OCI y la Asamblea General solicitando la conmutación de la pena dictada contra Asia Bibi.» [continua aqui]

                              Mais informação sobre o caso de Asia Bibi

                                Atualidade, Democracia, Recortes