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Haiti

«Haïti, la malédiction», um excelente artigo que nos ajuda a perceber melhor as circunstâncias em que a enorme catástrofe que se abateu sobre o Haiti se tornam ainda mais dramáticas, pode ser encontrado (em francês, naturalmente) na edição online do Le Monde (obrigado, MJP).

Entretanto, a Assistência Médica Internacional (AMI) lançou uma campanha para ajudar a sua missão de «reconstruir as vidas que ficaram destruídas». Para contribuir:

– Pode fazer uma transferência bancária através do NIB: 0007 001 500 400 000 00672

– No Multibanco basta seleccionar o menu “Pagamento de Serviços” e inserir Entidade 20909 Referência 909 909 909 e a quantia que escolheu doar.

    Atualidade, Democracia

    Google China, Inc.

    Google China
    Imagem: Reuters

    A Google, Inc. não é propriamente uma corporação de anjos. Passaram já os tempos juvenis e idealistas de Larry Paige e Sergey Brin, os dois ex-estudantes de doutoramento da Stanford University que em 1996 arrancaram com o inovador e eficaz serviço de pesquisa, e nos últimos anos, para crescer e se afirmar no universo empresarial, a companhia precisou estabelecer acordos com grupos económicos e com governos nem sempre interessados na livre circulação da informação. Mas paradoxalmente esta escolha acabou por aproximar um perigo que a pode aniquilar, e por isso há que agir com algum cuidado. Acontece que, dadas as suas características, os serviços da Google requerem uma relação de confiança, um compromisso, com a liberdade fruída pelo utilizador comum, sem a qual este deixará de confiar nos serviços que utiliza, acabando por trocá-los por outros. Não quero ser cínico – nem sou capaz, obviamente, de adivinhar aquilo que passa pela cabeça dos administradores da empresa sediada em Mountain View, Califórnia –, mas estou em crer que a constatação deste perigo terá pesado na atitude adoptada pelos seus responsáveis no conflito que mantêm agora com o governo chinês. A censura sofisticada e implacável da Internet em curso na China – cujo governo continua empenhado em combinar a face mais execrável do capitalismo selvagem, que inclui até a espionagem industrial por via informática, com a vertigem repressiva que traduz o lado mais negro do «socialismo de Estado» – preocupará os responsáveis da Google na medida em que, se estes fazem cedências excessivas ao limitar da liberdade de circulação da informação dentro do imenso território chinês, irão, muito provavelmente, perder a confiança dos utilizadores e clientes no resto do mundo. E não convém arriscar.

    ||| Publicado também no Arrastão

      Cibercultura, Democracia, Opinião

      O inferno é o outro

      No latim clássico tolerare significava «suportar», «aguentar», e para Voltaire era sinónimo de «indulgência» ou de «paciência». A tolerância impõe sempre alguma condescendência perante aquilo que se afigura deploravelmente diverso mas com o qual temos de conviver. Já a intolerância exclui esta possibilidade mínima, remetendo para a censura e a exclusão do que se rejeita. Anselmo Borges fala, no prefácio a Dança dos Demónios, da transformação desta repulsa em algo de poderoso e persistente quando se sistematiza a construção social do outro «como ameaça, bode expiatório, encarnação do mal e o inimigo a menosprezar, marginalizar, humilhar, e, no limite, abater e eliminar». Trata-se de um volume colectivo que promove um esforço pioneiro de explanação dos mais persistentes processos de intolerância perante grupos sociais, etnias, religiões, géneros e classes que têm materializado, na sociedade portuguesa, esse padrão excludente, fracturando-a ao longo do seu percurso histórico.

      O esforço proposto é bastante completo, alargado a uma dezena de correntes excludentes que têm por objecto do seu rancor os judeus, os muçulmanos, a Igreja católica, os protestantes, os jesuítas, a maçonaria, o feminismo, o pensamento liberal, o comunismo e a influência americana. A diversidade temática foi entretanto alargada às escolhas metodológicas, resultando do facto trabalhos muito diferentes. Assim, enquanto a maioria deles se apoia no reconhecimento do conflito que se propõe abordar estudado em contexto nacional, outros apresentam uma perspectiva mais generalista na qual a especificidade portuguesa é observada de forma sumária. Alguns autores escolheram uma leitura essencialmente erudita, visando basicamente um público académico, mas uma parte significativa optou pelo esforço de integração da informação sólida e original num discurso vocacionado para um universo mais dilatado.

      O leitor interessado na História de Portugal encontra em todos os artigos informação sistematizada e muitos motivos de atenção, embora para quem se preocupe mais com os factores de intolerância que persistem na actualidade os mais estimulantes possam ser os de Esther Mucznick (sobre um anti-semitismo com fundas raízes), de Ana Vicente (dedicado a um recorrente antifeminismo), de Miguel Real (tratando as formas agressivas de anticomunismo) e de Viriato Soromenho Marques (a propósito de um antiamericanismo menos reconhecido). Já o estudo de Faranaz Keshavjee sobre o anti-islamismo passa um pouco ao lado desse esforço, uma vez que se ocupa mais com a defesa da legitimidade do excluído do que com o entendimento das correntes que o marginalizam. Os restantes trabalhos, da autoria de Luís Machado de Abreu, João Francisco Marques, José Eduardo Franco, Rui Ramos e Ernesto Castro Leal, asseguram um volume de grande qualidade, imprescindível para quem pretenda compreender os factores de intolerância que têm atravessado a sociedade portuguesa nos últimos séculos.

      Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal. Coord. de António Marujo e José Eduardo Franco. Temas e Debates – Círculo de Leitores, 632 págs. [Publicado na revista LER de Dezembro de 2009]

        Democracia, História

        Querem apagar a memória

        Dois posts publicados hoje – este e mais este – descrevem o inqualificável expediente utilizado pela GEF-Gestão de Fundos Imobiliários, SA para supostamente cumprir a obrigação de repor, no prédio que foi sede da antiga PIDE-DGS, a placa evocativa das últimas vítimas do regime caído em Abril de 1974. Um gesto de completo menosprezo pela memória colectiva, apenas possível porque o Estado e os partidos institucionais continuam sem dar importância nas suas preenchidíssimas agendas à construção de uma consciência cívica que seja capaz de integrar o exemplo dos que um dia se bateram, sofreram ou morreram pela democracia que os alimenta. Também um gesto ostensivamente ofensivo que não pode passar impune.

        Adenda: O blogue Caminhos da Memória está a publicar algumas das mensagens endereçadas à GEF ([email protected]), a empresa imobiliária responsável pelo prédio da Rua António Maria Cardoso.

          Democracia, História, Memória

          Nada acontece por acaso

          Aminatu

          Para quem acha – inclusive na blogosfera engagé, onde é tão fácil tomar partido, ou calar-se, ou aborrecer-se e passar adiante – que não vale a pena lutar por causas que parecem não nos dizer directamente respeito, o fim feliz do difícil combate de Aminatu Haidar pelo seu regresso a casa será irrelevante. Para ela e para a luta do povo sarahui pela independência será mais um passo em frente.

            Atualidade, Democracia

            Guia do manifestante

            Manif

            O mercado e a comunicação de tudo se apropriam, tudo usurpam com o seu apetite. Mesmo o protesto de rua se vê envolvido pela lógica mercantil e mediática, com linhas de vestuário casual, sedutor e confortável, próprio para utilizar em manifestações e fugir com agilidade diante da polícia. Em algumas cidades, empresas especializadas contratam desempregados para servirem de figurantes no espectáculo televisivo sempre que a causa não seja suficientemente mobilizadora. Mas este é apenas um dos lados, já que o activismo de rua é sempre capaz de reinventar estratégias, recorrendo até às tecnologias que o próprio sistema disponibiliza, como se pôde ver ainda há poucos meses nas ruas de Teerão ou agora em Copenhaga.

            Entretanto o recrudescimento da arte da manifestação passa também pela adaptação de quem a pratica às circunstâncias do poder que, em democracia, se vê forçado a combinar o uso do cassetete, do gás-pimenta e da cela incomunicável com a vigilância da opinião pública e os mecanismos jurídicos disponibilizados pelo Estado. É esta realidade que faz com que o sindicato francês da magistratura tenha sentido o dever de publicar uma edição actualizada, de 36 páginas, do seu Guide du Manifestant Arrêté, um catálogo up-to-date dos direitos do manifestante detido, que esta semana a revista Inrockuptibles – à venda no nosso país nas boas tabacarias* – oferece como encarte. Um conselho retirado ao acaso: antes de se manifestar diga a um amigo ou familiar para onde vai e leve consigo papel e lápis para poder espalhar recados por onde puder, pois nada garante que os vigilantes do estado democrático o deixem fazer valer os seus direitos antes de levar uns valentes apertões e ficar sem dois ou três dentes. E olhe que mesmo em Portugal não convém fiar-se no mito urbano dos brandos costumes.

            * Enquanto estas puderem continuar a chamar-se tabacarias.

              Atualidade, Democracia

              O combate pela dignidade na memória do Gulag

              Artigo publicado na revista LER de Novembro de 2009

              «Uma simples folha de papel de escrever / Parecia um milagre
              / Caindo do céu sobre a floresta negra» (V. Shalamov)

              O escritor ucraniano Georgi Vladimov (1931-2003) redigiu The Faithful Ruslan (New York, 1979), O Fiel Ruslam, na época do Degelo, quando Kruschev suavizou um pouco o peso da censura. Mas duas décadas depois o pequeno romance-alegoria ainda só circulava no estreito circuito samizdat. O narrador é um cão que cumprira com sinistra devoção o seu trabalho de guarda num campo de trabalho. Fechado o campo, os seus donos humanos partiram para uma nova vida, mas Ruslan encontrou uma última missão: numa atitude de fidelidade para com o mundo que servira, passou a seguir por todo o lado um antigo prisioneiro. No final juntar-se-á a uma matilha para despedaçá-lo, tal como a um grupo de operários da fábrica que sucedera aos antigos pavilhões carcerários, num festim de morte e zelo iniciado quando lhe pareceu que estes violavam as rígidas regras que fora treinado para fazer cumprir. Boa parte da memória escrita dos sobreviventes dos campos de concentração recupera sempre esta dimensão de irreversibilidade do passado: aqueles que os habitaram na condição de prisioneiros, e viveram para contar a experiência, jamais abandonaram de todo as rotinas e os condicionamentos impostos por anos de uma vida sem lugar para a transgressão ou para a esperança.

              Quando entramos nos relatos daqueles que conseguiram sobreviver aos Lagern nazis e ao Gulag percebe-se, porém, que a caracterização do encarceramento concentracionário, «a experiência do século» como lhe chamou Heinrich Böll, diverge entre eles num aspecto crucial. Nos grandes campos alemães, o detido era-o num tempo que antecedia a previsível inevitabilidade do fim. E sabia-o, uma vez que pertencia, em regra, a um grupo destinado a ser erradicado de forma mecânica e implacável. Uma inflexibilidade revelada até na impiedade nazi diante das crianças, rara nos campos soviéticos. A norma nos redutos do Holocausto era a da luta mais extrema do prisioneiro, permanentemente imerso no medo, no horror, na disciplina, no tormento mais intolerável e na antevisão da morte, por um estreitíssimo limiar de sobrevivência. Apenas mais uma noite, só mais uma hora, um minuto, um breve instante. É o que evocam os relatos memorialistas de Élie Wiesel ou de Primo Levi quando enfatizam dramaticamente a ausência de limites na mais brutal luta pela vida. Em Se isto é um homem (Lisboa, 1988), Levi recorda como logo pelo segundo dia em Auschwitz os homens do seu grupo se olhavam já como fantasmas: «não há espelhos para nos vermos mas o nosso aspecto está diante de nós, reflectido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos.» Um pequeno mundo, o único mundo possível, onde em pouco tempo o combate pela sobrevivência transformará cada um no chacal do seu próximo.

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                Democracia, História, Memória

                Ressentimento

                Ghetto

                Marc Ferro procura aqui uma explicação comum para situações de violência muito diferentes. Como os conflitos étnicos e religiosos, as revoluções, as lutas civis, as guerras nacionais e de libertação, o fascismo ou o racismo. Encontra-a no ressentimento, definido como um conjunto de ódios associados a sentimentos de injustiça, de raiva, de desprezo ou de vingança, muitas vezes conservados durante séculos, capazes de gerarem uma pulsão psicológica ou exigências de reparação determinantes para a eclosão da violência. Quem se sente vítima «rumina então a sua vingança», até que «acaba por explodir». Estes ódios podem radicar-se numa experiência histórica geradora de sentimentos revanchistas, mas vincula-se também a uma memória nacional, «viveiro de ressentimentos», que permite justificar a rivalidade centenária, materializada por vezes em conflitos entre Estados, e impossibilita o entendimento, instalando a suspeição e o rancor. Projectada nesta dimensão, a aversão dos povos colonizados contra os seus colonizadores e contra os vestígios que estes deixaram atinge uma intensidade particular, transformada em imperativo de luta. Ao longo de um trajecto ancorado em sucessivos exemplos, Ferro enumera tipos e casos de ressentimento indispensáveis para compreendermos conflitos deste nosso tempo. E também de todos os tempos. [Marc Ferro, O Ressentimento na História. Compreender o nosso tempo. Trad. de Telma Costa. Teorema, 220 págs.]

                  Democracia, História

                  Código de conduta

                  Crime e castigo

                  Já tinha reparado na notícia do 24 horas sobre o código de conduta preparado pelo director da informação da RTP para regulamentar a utilização individual dos blogues e das redes sociais da Internet pelos jornalistas da estação. Sinceramente, pensei que se trataria apenas de mais uma daquelas invenções, especulações ou não-notícias que habitualmente preenchem a primeira página do diário sensacionalista. Mas um post de Pedro Correia mostrou que eu estava enganado: José Alberto Carvalho pretende mesmo que, na vida privada de cada um, os jornalistas que dirige em regime de ordem unida deixem de ter opinião pessoal audível e zelem por uma imagem pública que deve adequar-se, sem mácula ou divergência, sem humor ou poesia, à da empresa na qual trabalham. Copio directamente do Delito de Opinião:

                  – «Nada do que fazemos no Twitter, Facebook ou Blogues (seja em posts originais ou em comentários a post de outrem) deve colocar em causa a imparcialidade que nos é devida e reconhecida enquanto jornalistas.»

                  – «(…) Deverão deixar em branco a secção de perfil de Facebook ou outros equivalentes, sobre as preferências políticas dos utilizadores.»

                  – «Ter particular atenção aos ‘amigos’ friends do Facebook e ponderar que também através deste dado, se pode inferir sobre a imparcialidade ou não de um jornalista sobre determinadas áreas.»

                  – «Meditar sobre o facto de 140 caracteres de um twit poderem ser entendidos de forma mais deficiente (e geralmente é isso que acontece!) do que um texto de várias páginas, o que dificulta a exacta explicação daquilo que cada um pretende verdadeiramente dizer.»

                  Se isto for tomado à letra e aplicado abrirá um perigoso precedente, e em breve outros diligentes funcionários superiores convertidos em manajeiros decidirão aquilo que um funcionário público, um polícia, um bancário, um professor, um padre, um médico, um juiz, um militar, um fiscal da ASAE, um futebolista da selecção ou qualquer outro profissional com «dever de imparcialidade», convertido à força em cidadão irresponsável e sem direito a pensar pela sua cabeça, deve ou não dizer de cada vez que, a cada manhã, abandone os lençóis, saia à rua – ou ligue o computador – e abra a boca para falar com alguém que não seja da família.

                    Atualidade, Democracia

                    Desde Cuba

                    Reinaldo Escobar

                    O último crime da democrata cubana Yoani Sánchez – que à boa maneira da Revolução Cultural chinesa justificou uma «demonstração de repúdio» e o espancamento e prisão de Reinaldo Escobar, seu marido – foi ter colocado no blogue Generación Y as respostas de Barack Obama a sete perguntas que lhe dirigiu. Raúl Castro, que também recebeu um questionário enviado por Yoani, não respondeu. Encontra no El País um bom resumo dos últimos desenvolvimentos de mais este caso de agressão à liberdade de expressão em Cuba. A fotografia utilizada foi copiada daqui.

                    Adenda – Nem de propósito, acaba de me entrar em casa Tumbas sin sosiego. Revolución, disidencia y exilio del intelectual cubano, um livro de Rafael Rojas, historiador e ensaísta cubano exilado no México, editado em 2006 pela barcelonesa Anagrama. Hei-de trazê-lo para aqui noutro dia. Até lá recordo «A imensa tristeza».

                      Atualidade, Democracia

                      Referendo, dizem eles

                      Diversos movimentos cívicos católicos querem um referendo sobre o casamento homossexual. Aceitá-lo seria como ter deixado referendar a pena de morte, a instauração da República, o 25 de Abril, a independência das ex-colónias ou a igualdade política e jurídica das mulheres. O resultado estaria viciado à partida por concepções atávicas e mecanismos de controlo das consciências postos em acção pelos sectores mais conservadores da sociedade. Nestas alturas há que reconhecer alguma razão às palavras de Afonso Costa quando apontava os «indivíduos que não conhecem os confins da sua paróquia, que não têm ideias nítidas e exactas de coisa nenhuma» como carneiros contra os quais o progresso das ideias – «a República» dizia ele – se deve inevitavelmente levantar. A democracia não se referenda, mes amis, e não é, nem pode ser, a vozearia ululante das multidões. É para o impedir que há eleições, sabiam?

                        Atualidade, Democracia, Opinião

                        Bibliocausto

                        Queimar

                        Fernando Báez, especialista venezuelano em história das bibliotecas, esteve em 2003 no Iraque para investigar os danos causados no património cultural do país pela Segunda Guerra do Golfo. Foi aí, confrontado com a destruição sistemática e o saque incontrolável de obras de arte e de livros, que decidiu escrever esta História Universal. Desde a Suméria até à Bagdad actual, da antiguidade grega ao universo islâmico, dos códices pré-colombinos atirados ao fogo na época colonial ao bibliocausto organizado pelos nazis e às actuais disposições censórias vividas na China ou em Cuba – onde ocorre mesmo um «discurso duplo» sobre a conservação e as purgas culturais que a contradizem –, a ruína do livro tem sido sempre feita em nome de dispositivos de poder que nele vêm «objectos de memória» capazes de funcionarem como entraves ao triunfo e à afirmação de uma ordem nova e dominadora. Com uma dimensão enciclopédica, este estudo de Báez não deixa de fora processos utilizados por alguns regimes democráticos contemporâneos, nos quais o trabalho de corte e apagamento recorre a métodos mais insidiosos. Apenas lhe escapa o processo de devastação, não menos aniquilador, que hoje se estende já ao digital. [Fernando Báez, História Universal da Destruição dos Livros. Trad. de Maria da Luz Veloso. Texto, 448 págs.]

                          Democracia, História

                          Os sons do silêncio

                          Shmiel, Ester e a filha Bronia

                          As circunstâncias que determinaram Daniel Mendelshon a escrever Os Desaparecidos são relatadas: a sua parecença física com Shmiel Jäger, um tio-avô assassinado pelos alemães, juntamente com a mulher e as quatro filhas, na cidade polaca, hoje ucraniana, de Bolechow, provocava de imediato a consternação dos familiares mais velhos sempre que em criança lhes surgia à frente. Foi essa memória incómoda que o levou a procurar esclarecer o que acontecera. Descreve então os trabalhos e os dias na complexa perseguição desse objectivo. Conforme avançava na leitura, e como se de obra de ficção se tratasse, fui-me deixando levar por uma trama policial, comovi-me com os encontros e os desencontros, exasperei-me com certos desvios de percurso e algumas resistências. Mas vi-me também perante uma proposta de releitura circunstanciada da memória do Holocausto. Na realidade, esta obra é muito mais do que uma história dramática de família, representando uma meditação pessoal sobre o modo como o passado se esconde para vir subitamente ao nosso encontro.

                          Vencedor do National Book Critics Circle Award, escrito num registo intimista e sedutor, Os Desaparecidos revelam um autor envolvido numa sucessão de acasos e de circunstâncias que o impelem a ir cada vez mais longe. O trabalho de casa foi feito muito cedo – percorrendo bibliotecas e arquivos, consultando milhares de sítios na Internet, recuperando objectos e papéis preservados pela família – mas o objectivo foi materializado no terreno, percorrendo o planeta para entrevistar os sobreviventes que o ajudaram a recuperar a sua história. Estranhamente, estes foram bem mais do que seria de prever, e, apesar da passagem do tempo, quase todos pareciam conservar uma recordação vívida do mundo que haviam conhecido mais de seis décadas antes. Esta lembrança intensa introduziu um factor paradoxal: se é verdade que ela parece ampliar desmedidamente o volume de informação, evidencia também um dos problemas característicos da história oral, que se traduz na intromissão de uma nostalgia intensamente ficcional capaz de sobrepor a imprecisão à materialidade dos factos. Parte do trabalho de Mendelsohn consistiu, pois, na depuração de factores óbvios de fantasia e embelezamento do passado, arbitrando a inevitável tensão verificada entre o registo histórico e a evocação pessoal. No termo, como um investigador policial, o único na posse de todos os elementos do puzzle e com capacidade para separar o falso do verdadeiro, é no seu trabalho de interpretação e relato que reside a chave da trama que procurou.

                          Destaca-se ainda uma percepção impressionante: a de sermos lembrados ao longo da leitura, quando confrontados com os vestígios materiais do passado reencontrado – os papéis, as casas, as ruas, objectos, roupas –, de que o nosso presente é também feito de uma redução compassada ao silêncio dos milhões de pessoas que, como Shmiel e a sua família, foram privados para sempre de um futuro. «Não conseguimos tirar isso da nossa cabeça», escreve Mendelsohn. Por isso, e como uma redenção, se foi tornando cada vez mais importante para ele, não tanto o modo terrível como aquelas pessoas morreram – era esse o seu objectivo inicial – mas a forma como tinham vivido o tempo que lhes estivera destinado.

                          Daniel Mendelsohn, Os Desaparecidos. À procura de seis em seis milhões. Trad. de Margarida Santiago. D. Quixote, 552 págs. [Publicado na LER de Outubro]

                            Democracia, História

                            Auschwitz Gulag | 2. A sentença

                            Varlam ShalamovNascido em 1907 na cidade russa de Vologda, durante a juventude o escritor, poeta e jornalista Varlam Shalamov participou das actividades do grupo literário esquerdista LEF. Em Fevereiro de 1929, quando era estudante da Universidade de Moscovo, foi detido pela primeira vez sob a acusação de difundir o «testamento político» de Lenine. Tratava-se de uma das últimas cartas do dirigente bolchevique, na qual este apontava a necessidade de afastar Estaline do cargo de secretário-geral do Partido Comunista. Nos anos trinta, a difusão do documento, considerado apócrifo pelas autoridades, iria custar a vida a diversas pessoas. O escritor passou então cerca de três anos em campos de concentração nos Urais. Em 1937 foi novamente detido e enviado para a Sibéria Oriental, para Kolima, um dos mais mortais campos do Gulag. Primeiro como prisioneiro e depois como deportado, ali permaneceu até 1953. Seria completamente reabilitado em 1956, após o XX Congresso do PCUS. Os Contos de Kolima, de um dos quais se transcreve aqui um fragmento, foram escritos entre 1954 e 1973 com um cunho acentuadamente autobiográfico, mas só começaram a ser publicados em revistas e jornais literários nos anos da perestroika. Durante a vida, Shalamov apenas conseguiu publicar cinco colectâneas de poesia, tendo morrido sozinho, cego, surdo e sem meios pessoais em 1982.

                            Os homens surgiram do nada, uns atrás dos outros. À noite, um homem desconhecido deitava-se na minha tarim­ba, encostava-se ao meu ombro ossudo, transmitindo-me o seu calor – gotas de calor – recebendo o meu em troca. Havia noites em que nem sequer uma gota de calor chegava até mim através dos farrapos de um casaco, de um jaquetão acolchoado. E, de manhã, olhava para o vizinho como para um cadáver e ficava admirado quando via que o cadáver estava vivo, se levantava ao som dos gritos, se vestia e cum­pria obedientemente as ordens. Eu tinha muito pouco calor. Nos meus ossos restava muito pouca carne. Bastava apenas para ter raiva, o último dos sentimentos humanos. O último dos sentimentos humanos, o mais próximo dos ossos, não é a indiferença mas a raiva. O homem, que aparecia do nada, desaparecia de dia: na mina de carvão havia muitos sectores, e desaparecia para sempre. Não conheço as pessoas que dormiram ao meu lado. Nunca lhes fiz perguntas, não porque seguisse o provérbio árabe: não perguntes para que não te mintam. Era-me indiferente que me mentissem ou não, eu estava para além da verdade, para além da mentira. Sobre isto os criminosos têm um ditado severo, claro e gros­seiro, cheio de um desdém profundo para quem faz a per­gunta: se não acreditas, pensa que é um conto de fadas. Eu não perguntava e por isso não ouvia contos.

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                              Democracia, História, Memória

                              Auschwitz Gulag | 1. A abrir

                              O campo

                              Preludiando Auschwitz Gulag, uma sucessão de posts documentais sobre a experiência concentracionária imposta pelos regimes totalitários do século 20.

                              Inocentar ou justificar a dimensão ferozmente repressora do «socialismo real» em nome de uma repressão maior, de crimes forçosamente mais graves praticados pelos diversos cães de fila do capitalismo, não tem qualquer sentido. Em ambos os casos falamos de coerção, de tortura ou de morte que são absolutas, não possuindo cor ou ideologia salvo na sua forma exterior. Não existe uma tortura «boa», aceitável ou desejável porque praticada sobre quem merece, e outra «má», inadmissível porque exercida sobre quem tem a razão do seu lado. Se alguma disjunção pode ser traçada, será precisamente aquela que admite como perversão aquilo que outros defendem como uma necessidade, aquela que separa os crimes terríveis que podem ser denunciados dentro do sistema, que podem ser parados pela pressão da opinião pública, como sucede nas democracias, daqueles outros recorrentemente praticados e invariavelmente silenciados sob os regimes totalitários. Onde o silenciamento funciona também como instrumento de anulação do individuo e dos seus direitos.

                              Pelos relatos daqueles que sobreviveram aos Lagern nazis e ao Gulag percebemos que a caracterização do encarceramento concentracionário, «a experiência do século» como lhe chamou Heinrich Böll, diverge entre eles num aspecto crucial. Nos campos alemães, o detido era-o num tempo que antecedia a previsível inevitabilidade do fim. E sabia-o, uma vez que pertencia, em regra, a um grupo destinado a ser erradicado de forma mecânica e implacável. Uma inflexibilidade revelada até na impiedade nazi diante das crianças, rara nos campos soviéticos. A norma nos redutos do Holocausto era a da luta mais extrema do prisioneiro, permanentemente imerso no medo, no horror, na disciplina, no tormento mais intolerável e na antevisão da morte, por um estreitíssimo limiar de sobrevivência. Apenas mais uma noite, só mais uma hora, um minuto, um breve instante. É o que evocam os relatos memorialistas de Élie Wiesel ou de Primo Levi quando enfatizam dramaticamente a ausência de limites na mais brutal luta pela vida. Em Se isto é um homem, Levi recorda como logo pelo segundo dia em Auschwitz os homens do seu grupo se olhavam já como fantasmas: «não há espelhos para nos vermos mas o nosso aspecto está diante de nós, reflectido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos.» Um pequeno mundo, o único mundo possível, onde em pouco tempo o combate pela sobrevivência transformará cada um no chacal do seu próximo.

                              Já com as vítimas da Administração Geral dos Campos de Trabalho Correctivo, projectada logo na época do Terror Vermelho pelo poder bolchevique – em Gulag. Uma história, Anne Applebaum relembra que o primeiro estabelecimento foi aberto logo em 1918 –, não era necessariamente a origem étnica ou a condição social a determinar a pena e o encarceramento. Detidas e deslocadas pelos mais diversos motivos, eram genericamente classificadas como irrecuperáveis representantes do «inimigo de classe», sobreviventes incómodos de um tempo a ultrapassar, obstáculos vivos que apenas embaraçavam a caminhada triunfal do homem novo e deveriam ser banidos da sociedade. Por isso, a desumanização e a demonização do prisioneiro, sendo reais, foram em regra circunscritas ao seu lugar de alvo a ferir no combate por uma necessidade histórica que a ditadura do proletariado pretendia forçar. Nestas condições, o essencial do esforço carcerário era aplicado na erradicação dessas pessoas do convívio social normal, ou, em certos casos, na sua «reeducação» pela disciplina e pelo trabalho. Não na mecanização do extermínio, que foi quase sempre mais uma consequência do que um fim em si mesmo.

                              (continua)

                              Parte deste post adapta um fragmento de um artigo extenso a publicar na LER de Novembro.

                                Democracia, História, Memória

                                Marroquinaria

                                Marrocos

                                O verniz democrático da monarquia marroquina cai com facilidade. O simulacro de abertura e de modernidade com o qual vai iludindo os seus interlocutores do norte não resistiu às caricaturas de Khalid Gueddar, que «ousou desenhar a família real marroquina» e que por esse motivo está a ser julgado. E o diário Le Monde, que as publicou em França, foi proibido de circular no reino. A caça e a punição de jornalistas independentes, essa vem de trás e continua. Mais uma «especificidade» a respeitar?

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                                  A «rua» madeirense

                                  Guerrilha

                                  Como muitas outras pessoas que politicamente nada têm a ver com eles, tenho vindo a desenvolver alguma admiração pelo trabalho guerrilheiro dos militantes do PND. Aquele grupo de cidadãos um bocado reaças mas corajosos que na Madeira lutam praticamente sozinhos contra o poder arbitrário e troglodita de Jardim, Ramos e respectiva confraria. Que apenas se mantém no poder porque os governos da República condescendem com as tropelias e os contribuintes portugueses, todos eles, pagam a «vasta obra», as facturas e os respectivos juros. Uma vez que está fora de questão um desembarque de pára-quedistas aliados no Paúl da Serra ou na Ponta do Pargo, e uma grande parte da oposição local é visivelmente conivente com a teia clientelar do PSD – ou então demasiado «responsável» e instalada para se envolver em tropelias – restam-nos estas pessoas para falarem a única língua que Jardim realmente entende. A da rua, do berro e do empurrão. Mas assim ouvimo-los.

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                                    Desespero e silêncio

                                    Cadência

                                    Não são «manifestamente exageradas» as notícias que chegam sobre o número de suicídios – 24 pessoas em 18 meses – entre os trabalhadores da France Telecom incapazes de corresponderem às metas brutais, às cadências impossíveis e às deslocações forçadas que têm sido impostas pela administração da empresa. Como método, o processo não é novidade alguma, e conhecem-se desde há décadas situações análogas ocorridas, por exemplo, nos EUA, no Japão ou em Singapura. No passado, a União Soviética das brigadas stakhanovistas viveu também muitos casos semelhantes. A diferença estará apenas no facto de, por esta vez, as organizações de trabalhadores se terem revelado particularmente atentas denunciando o drama através dos media. Afinal a tradição francesa de independência do movimento sindical e de luta pelos direitos dos trabalhadores não constitui propriamente uma lenda. Talvez ela possa servir de inspiração a muitos dos nossos sindicalistas, por vezes mais preocupados em fazer coincidir as suas batalhas com metas políticas externas do que em ir ao fundo do lado menos visível, mais sombrio, da realidade humana com a qual lidam e que é suposto representarem. Porque é impossível, no actual contexto envolvendo tantas reestruturações profundas e unilaterais, e um culto declarado dos «índices de sucesso», que não ocorram entre nós casos análogos de depressão e desespero. Onde pára a voz das pessoas que têm de os suportar?

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