Arquivo de Categorias: Democracia

Aracnologia

Aracnologia

Tenho andado a divertir-me um pouco com as possibilidades técnicas que a autonomização do servidor de A Terceira Noite trouxe consigo. Algumas delas são visíveis ao leitor habitual do blogue, outras porém servem apenas a quem o gere.

Uma das informações curiosas, agora tornada possível, refere-se aos spiders que aqui entram. Para quem não esteja familiarizado com o termo, os spiders são uma espécie de robôs que se movem na web. Eles procuram os links que detectam no código-fonte e é depois a partir destes que entram no site para vasculharem o seu conteúdo. Saltam então de link em link, relacionando a informação da página de acordo com o algoritmo a que obedecem, enviando a informação ao seu senhor, que lá bem longe a pode utilizar das mais variadas maneiras. Pois bem, os spiders mais activos por aqui são os do todo-poderoso Google e os do novíssimo Cuil, respectivamente com 56,6% e 8% dos acessos. Mas encontram-se muito bem colocados, num honorável 3º lugar, os do chinês Baidu, com cerca de 7% e quase 500 espreitadelas em menos de uma semana.

Levado cá por umas suspeitas – e intrigado principalmente pelo facto de A Terceira Noite não ser escrita em mandarim –, resolvi cruzar este tipo de informação com um outro: aquele que permite saber quais são as palavras mais pesquisadas dentro do próprio blogue. Aquelas que o leitor digita na caixinha que encontra no topo da barra da direita antes de carregar no botão procurar. Pois sabem os leitores qual a palavra mais pesquisada neste momento? Nada mais nada menos que Tibete (ou Tibet). Julgo não ser preciso mais nada para ter todo o direito a poder ficar com algumas suspeitas. Mesmo sem ser propriamente um entusiasta das teorias da conspiração ou ter a mania das grandezas.

    Atualidade, Cibercultura, Democracia

    O dress code e a política do corpo

    In the sixties

    Quando falo em algumas aulas das grandes alterações dos anos 60, recorro muitas vezes ao exemplo do vestuário diverso que todos usam na sala, à atitude física que mantemos dentro e fora daquele espaço, ao modo informal como falamos uns com os outros, olhando-nos nos olhos e defendendo os nossos pontos de vista sem receio de estarmos a ofender alguém, para mostrar de que maneira existiu um tempo – para a maioria dos alunos o dos seus pais, ou mesmo o dos seus avós; para muitos destes, porém, algo que jamais conheceram – no qual o mundo como eles o observam, este mundo, se formou, rompendo abertamente, assumidamente, com um tempo-outro que o precedeu e que para muitos é hoje inimaginável. No centro da mudança uma nova política do corpo, que terá sido talvez o eixo em volta do qual as transformações políticas, culturais e vivenciais que marcaram aqueles anos – e que todos herdámos, mesmo aqueles de nós que hoje as procuramos desvalorizar – se organizaram. Por vezes sob a forma de combates duros e prolongados, que requeriam coragem e tenacidade.

    Nascido nos fifties, num país fechado e manietado, vivendo até aos dezassete ou dezoito anos num ambiente pequeno, isolado e bastante preconceituoso – embora nas cidades as coisas não fossem então, é preciso reconhecê-lo, substancialmente diferentes -, travei um combate complicado por coisas que hoje certamente parecem ridículas, e das quais agora até prescindo, como usar o cabelo comprido e despenteado, vestir umas calças de bombazina grená se me apetecesse vestir umas calças de bombazina grená, ou passear à noite com uma amiga sem ter de casar com ela. Coisas que nunca me impediram, que eu saiba, de tratar mais ou menos bem as pessoas com quem fui convivendo, de cuidar da higiene pessoal, e de ir cumprindo o melhor que sei e sou capaz o meu trabalho, mas que me permitiram, com toda a certeza, estar no mundo, e projectar-me nele, de uma feição mais livre, individualizada, de alguma forma cosmopolita, que os meus pais, e os pais deles, jamais sonharam viver. Foi essa área da luta pela liberdade que me fez então – pude na altura dar-me a esse luxo, admito, e o facto de ser homem ajudou um pouco – recusar uma profissão que me constrangeria a um «código de apresentação». Muitos daqueles que o não puderam fazer iriam bater-se – na escola, no trabalho, na rua, por vezes dentro das suas próprias casas – por uma liberdade que passava também pelo reconhecimento da sua forma própria, não necessariamente padronizada, de estar no mundo. Uma luta hoje silenciada, mas não silenciosa, bastando para a reconhecer um apelo à memória de quem a viveu e uma consulta da imprensa da época (incluindo nesta, um aspecto muito importante, a regional).

    Estou certo de que me acompanham nesta evocação muitas pessoas que viveram ou que conheceram, ainda que apenas dos livros, experiências idênticas. As mesmas pessoas que viram com um pequeno arrepio este episódio – patético, é verdade, mas sintomático e talibanesco – em redor do dress code aplicado às funcionárias da tal Loja farense do Cidadão. Episódio que indicia um retorno a uma ordem política das aparências agressora da liberdade pessoal. Ou então um salto rumo a uma sua versão mais aperfeiçoada. Não fala de cor Zygmunt Bauman quando afirma, em Modernidade Líquida, que «a demarcação entre o corpo e o mundo exterior está entre as fronteiras contemporâneas mais vigilantemente policiadas».

    P.S. – Claro que não vivemos num regime totalitário, onde estas coisas acontecem de forma sistemática e sem apelo. Vivemos sob a ditadura informal do realismo político, na qual tudo é normal e aceitável se em prol da boa gestão. Inclusive a agressão a direitos e a liberdades conquistados a pulso pelos cidadãos.

      Atualidade, Democracia, História, Memória

      Resgate e redenção

      Israel

      Por onde quer que distribuam a sua acção e a sua influência, é própria de todas as religiões – mesmo das seculares – a vontade de determinar um ethos, identificado com o bem comum e a moral individual, capaz de justificar a prescrição de certas atitudes e a proscrição de outras. As religiões do livro em particular, todas elas, têm séculos de experiência neste campo. E é nesta tradição que se pode encaixar a actividade da organização não-governamental israelita JONAH – Jews Offering New Alternatives to Homosexuality – que procura prevenir e actuar sobre pessoas que sintam «atracção por outras do mesmo sexo». Como sempre, a intenção declara-se benévola: aliviar o tormento de quem sofre a sua «anormalidade», bem como o dos entes queridos destas pessoas, que com elas têm de partilhar esse lado «triste» e doloroso da vida. Afinal, declara na página oficial da JONAH o rabi Shmuel Kamenetsky, «nada existe que a Torah proíba e o ser humano não seja capaz de controlar.» Mudando de hábito de acordo com o lado onde nasce o sol, esta gente vive num mundo cerrado que roda a uma velocidade lenta, mas nem por isso deixa de procurar impor onde pode um perigoso higienismo.

        Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

        E-people

        Teach them

        A informação chega-me através de um artigo de Miguel Gaspar: o governo britânico está a estudar uma reforma do ensino básico que pretende destacar a aprendizagem das novas tecnologias, em especial a das redes sociais da Internet, em detrimento dos saberes considerados convencionais. Não tenho nada contra a divulgação alargada e sistemática destes processos – que uso diariamente, intensamente, produtivamente muitas vezes, e que recomendo –, mas tenho tudo contra a desqualificação do conhecimento estruturante em favor de uma deriva comunicacional apresentada como valendo por si mesma. O problema, julgo, advém em larga medida do facto dos centros de decisão política – leia-se: os partidos institucionais – estarem cada vez mais nas mãos de gente «especialista» em conhecimento funcional, que cresceu politicamente na gestão do imediato, e que descarta, como anticorpos, aqueles que pensam para além do momento. Daí também a desvalorização sistemática das humanidades e da reflexão crítica que estas oferecem. Temas aos quais regressar aqui com mais tempo e um outro cuidado.

          Apontamentos, Cibercultura, Democracia

          Vento cigano

          Cigano

          Nascido gadjo, sedentário e de classe média, educado num universo provinciano e preconceituoso, é natural que tenha sido mais um daqueles rapazes cuja imaginação aceitou e manteve durante bastante tempo a representação romantizada e misteriosa, profundamente idealizada e fictícia, do cigano. Só recentemente e por acaso – a partir de uma referência de Kenneth White – li The Scholar Gipsy¸ de Matthew Arnold, onde o poeta inglês oitocentista que foi também inspector das escolas evoca o estudante oxfordiano que «partiu a aprender a sabedoria dos ciganos, / errando pelo mundo com esse povo indomado», mas colhi cedo um pouco do impacto da cultura livresca europeia, de Dumas pai a (muito mais tarde) Lorca, de Pushkin (apenas em fragmentos) ao Merimée da Carmen que depois Bizet celebrou. E procurei algo mais em Os Ciganos de Portugal, o livro que Adolfo Coelho publicou em 1892, hoje ultrapassado e esquecido. E na música de Liszt ou depois na de Camarón de la Isla. Sempre, sem a percepção certa de o fazer, a resistência ao modelo cultural que estranhava a experiência nómada, a perspectiva juvenil de noites ao redor da fogueira, a imagem fugitiva, entrevista numa velha tapeçaria, da cigana que não podia senão ser «bela e formosa» na exibição das gadelhas escuras e das arrecadas em oiro. Esse núcleo romântico foi-me esvaziado num instante pela intervenção radiante do materialismo dialéctico no seu molde mais inflexível, desprezando a especificidade cigana por ela escapar ao sentido incontornável da luta de classes e não participar na consagração do Trabalho como força edificadora da História. O desinteresse por quem se não fixava, por quem sobrevivia de expedientes mercantis, rejeitava toda a ideologia e se aproximava do lumpenproletariat, tornava-se um dos rostos de uma realidade que, do outro lado do combate social, dos ciganos reprovava a insubmissão, a ausência de polidez, a higiene pouco clara, a suposta promiscuidade.

          De uma e de outra destas recusas resultaram as actuais perspectivas que apontam para o cigano como desejavelmente «integrado», na verdade aculturado, ou então merecidamente segregado e punido como ser socialmente irrecuperável. Uma e outra das atitudes excluindo a abordagem de temas centrais – o papel simultaneamente fulcral e subalterno da mulher, a relação com a propriedade e a exaustão de bens perecíveis, a «estranha» liberdade pedagógica praticada com as suas crianças – que a maior parte dos ciganos nos coloca diante dos olhos e com a qual não sabemos lidar. A política segregacionista – que Vasco Pulido Valente apontou em crónica recente do Público a propósito de uma escola situada perto de Barcelos, uma entre outras, que põe os meninos ciganos, isolados dos outros, a terem aulas dentro de um contentor – não é mais do que um sinal particularmente sórdido do nosso medo em revertemos às nossas próprias origens e em reconhecermos a nostalgia dos devaneios perdidos. De voltarmos ao tempo no qual também nós fomos nómadas, ou aos sonhos de infância nos quais acreditávamos ser possível viver do vento, sem trabalhar, numa carroça pela estrada fora.

            Democracia, Memória, Olhares

            Che Guevara – um rosto sem retoques

            Regresso a um texto que em 2002 publiquei na revista História a propósito de uma então recém-editada biografia do argentino. Uma das poucas disponíveis no mercado que não é apenas «pró» ou «contra».

            Retomada em imagens que povoam jornais e documentários, nos muros das cidades, na decoração de espaços privados, em t-shirts e tatuagens, a expressão decidida do Che Guevara, captada há mais de trinta anos pelo fotógrafo Alberto Korda, continua a povoar a nossa imaginação. Como sinal da memória, insígnia de utopias ou insólito produto pronto-a-usar. Omissões várias e umas tantas mentiras, somadas a um certo oportunismo político e comercial – em alguns países vende-se até uma bebida gaseificada, a Revolution Soda, com o rosto do Che estampado como logótipo – têm adensado a carga simbólica que envolve um dos heróis e dos ícones do século que passou. Vale a pena desvendar o mito na sua origem.

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              Cinema, Democracia, História, Memória

              Omid

              Morreu na quarta-feira passada Omid Mir Sayafi, um blogger iraniano de 25 anos condenado a 30 meses de prisão por insultos ao ayatollah Ali Khamenei. O advogado de Omid – que pouco antes de ser detido definia o seu blogue como de natureza essencialmente cultural – disse à AFP que «ainda não existem documentos oficiais, mas os responsáveis da prisão afirmam que Mir Sayafi se terá suicidado». O governo de Teerão lançou entretanto uma campanha contra bloggers e internautas, acusados de escreverem textos hostis às autoridades e aos valores islâmicos. E os Guardas da Revolução anunciaram em comunicado uma intervenção enérgica para «desmantelar os mais diversos sites anti-religiosos, obscenos e contra-revolucionários», que publicam «artigos contra o regime islâmico», «os valores religiosos» e «histórias sexuais». Claro que os EUA são apontados como os primeiros responsáveis pela iniciativa dos internautas «degenerados», combatidos sem piedade pelos heróicos funcionários do Centro de Delitos de Internet dos Guardas da Revolução. Nem outra coisa seria de esperar.

                Atualidade, Cibercultura, Democracia

                Contra a censura na Internet

                Censorship

                Hoje, 12 de Março, é o Dia Mundial contra a Cibercensura. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, os 12 Inimigos da Internet – Arábia Saudita, Birmânia, China, Coreia do Norte, Cuba, Egipto, Irão, Síria, Tunísia, Turquestão, Uzbequistão e Vietname (a Bielorrússia, o Zimbabwe, e outros que tal, estão à porta para entrarem neste triste clube) – «transformaram a sua Internet numa Intranet, procurando impedir as suas populações de acederem a informação online considerada ‘indesejável’». Pode descarregar aqui (em formato pdf) o relatório detalhado Internet Enemies de 2009.

                  Atualidade, Cibercultura, Democracia

                  Sopa

                  Felizmente Leila Deen, uma simpática activista do grupo de acção directa Plane Stupid, não vive em Pequim, Havana ou Minsk e pode começar por atirar uma espécie de sopa verde à cara de um ministro falando de seguida, na maior das calmas, para as estações de televisão.

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                    Atualidade, Democracia

                    Insolente à maneira de Xerxes

                    Xerxes e Leónidas

                    Segundo notícia do Guardian, as autoridades iranianas, em comunicado lido por um conselheiro do presidente Ahmadinejad, investiram agora contra a indústria ocidental de cinema, que acusam de ter atacado injustamente o povo iraniano e a sua revolução. Ao mesmo tempo exigem que Hollywood peça «desculpas aos iranianos pelos insultos e acusações feitos nos últimos 30 anos». Uma vez mais, aquela que poderia ser uma crítica justa a perspectivas etnocêntricas, em forma de propaganda, que podem produzir maus resultados, transformou-se numa acusação agressiva e arrogante contra a liberdade de criação e de expressão nefastamente «ocidental» que o governo iraniano considera desprezível. Um dos exemplos apontados, acusado de ter descrito os persas como bárbaros e de ser «uma completa mentira», é o filme 300, de Zack Snyder – construído a partir da banda desenhada de Frank Miller e Lynn Varley, e, claro, do relato de Heródoto – cujo argumento se serviu do combate desigual, travado em 480 a.C. no desfiladeiro das Termópilas pelo rei Leónidas, acompanhado de três centenas de combatentes espartanos, contra as tropas de Xerxes, numericamente muito superiores, que haviam invadido a Grécia central.

                    Deve dizer-se que o filme, estreado nos inícios de 2007 e rapidamente proibido no Irão, ensaia principalmente um devaneio, com uma fortíssima carga plástica, sobre o lugar de Esparta num combate «pela liberdade» – embora na realidade Esparta fosse dirigida por uma oligarquia militarista – contra os ímpetos despóticos do rei dos persas. Um filme que incorpora personagens mágicos, violentos ou grotescos que mais parecem caricaturas do bestiário de Tolkien, e representa os medo-persas como chacais um tanto estúpidos, ora medonhos, ora efeminados, e sempre amorais. Para além disso, trata-se de uma obra graficamente concebida como uma espécie de jogo de computador – até a coreografia dos duelos e das batalhas acompanha muito de perto a sua mecânica feita de impulsos – que parece apenas mais uma daquelas experiências de cinema romanesco de aventuras, a tender, como milhares de outras do mesmo género, para o extremar da separação política entre bons e maus, heróis e vilões. Com os do lado de lá do Mar Egeu a desempenharem, naturalmente, o papel desagradável.

                    Percebe-se no entanto, pelo menos em parte, o «argumento» iraniano contra este filme, pois os espartanos eram gregos, e os exércitos gregos defrontaram durante séculos aqueles que se organizavam para lá da Anatólia para os combater. Num e noutro sentido: Ciro, Dario e Xerxes avançado para cá, Temístocles e Alexandre o Grande marchando para lá, num espadeirar longínquo que alimentou ressentimentos para muitos séculos. Tudo isso deixou um rastro profundo na memória colectiva. Porém, o que aqui Ahmadinejad verdadeiramente pretende agredir é o modelo de cultura ocidental que tem no mundo grego – ainda que neste os espartanos fossem uns párias, embora uns párias temidos – o seu torrão fundador.

                    A história é bem conhecida, mas pode ser relembrada. Tudo começou nos séculos VI e V a.C, quando, em poucas gerações, os gregos inventaram a tragédia, o debate democrático, a cultura científica, o relato histórico, a reflexão filosófica. Tendo a perfeita consciência de estarem a criar valores e liberdades que não existiam em mais lado algum. Aos restantes povos chamavam eles de «bárbaros» que não eram senão «todos os outros», aqueles que não falavam a língua grega e que não viviam como cidadãos, sem leis comuns e submetidos a déspotas. Foi esta noção de possuírem aquilo a que hoje chamaríamos uma identidade própria, mais humana do seu ponto de vista, o que de mais profundo os gregos legaram aos romanos e que, através destes, se espalhou depois pelas regiões «a Ocidente», isto é, do lado no qual o sol se põe para quem circula por terra e por mar em redor da península balcânica. Pelo lado de lá, a Oriente do Ocidente, principalmente nas áreas por onde os iranianos procuram hoje impor a sua hegemonia, distribuíam-se – a expressão foi usada por Marx antes de Weber a retomar – formas múltiplas de um execrado «despotismo oriental» que reduzia a grande massa dos seus naturais ao estado servil e, por vezes, dela se servia como máquina de guerra. Dois universos, ambos imperfeitos mas absolutamente opostos, com destinos históricos também eles contrários, padrões de desenvolvimento muito diversos e, ao contrário daquilo que um dia Montesquieu desejou, experiências de vida comum que se foram sempre confrontando. É este cenário, definido durante séculos com um vencedor um tanto arrogante e um vencido por vezes humilhado, que Ahmadinejad, insolente à maneira de Xerxes, pretende agora fazer reverter.

                      Atualidade, Cinema, Democracia, História

                      Alto preço

                      Debaixo do véu

                      «Ao mesmo tempo que se luta em defesa do véu islâmico no Ocidente, luta-se contra ele nos países de origem.» Na constatação deste paradoxo se resume o ponto de partida para O Preço do Véu. A guerra do Islão contra as mulheres, o livro militante de Giuliana Sgrena, a jornalista do Il Manifesto que em 2005 foi sequestrada por uma organização islamita iraquiana. A autora identifica rapidamente o objectivo do livro: «trazer à luz uma realidade pouco conhecida e pouco contada: a presença nos países muçulmanos de mulheres (mas também de homens) que se batem pelos seus direitos». Explorando, através do trabalho de reportagem e de diversas entrevistas, a situação das mulheres de países como a Tunísia, a Sérvia, o Iraque, o Irão, a Arábia Saudita, a Bósnia-Herzgovina, a Palestina, o Afeganistão, a Somália ou a Argélia, Sgrena procura mostrar de que forma o uso do véu representa, como símbolo mas sobretudo através do processo de negação objectiva do corpo que a sua imposição envolve, a opressão da mulher no mundo islâmico e o recente reforço de uma ordem acentuadamente masculina, implacável e reaccionária. O silêncio dos activistas ocidentais empenhados em não melindrar uma incerta e complexa «identidade muçulmana» também não sai incólume destas páginas. [Trad. de Alexandre Vaz Pereira, Pedra da Lua, 116 págs. Originalmente na LER de Fevereiro.]

                        Atualidade, Democracia

                        O ovo da serpente

                        Douch

                        Com o princípio do julgamento de Kaing Guek Eav, o camarada Douch, responsável pela prisão de Suoel Sleng, em Phnom Penh, por onde passaram cerca de 16 mil pessoas, das quais apenas 20 dali saíram com vida, tornam a ser evocados alguns episódios do genocídio metodicamente organizado pelo regime khmer vermelho que governou o Cambodja entre 1975 e 1979. Procurando produzir, a partir do retorno ao grau zero do desenvolvimento económico, uma paraíso sem cidades, sem dinheiro, sem hospitais, sem universidades, sem livros e sem história, o «ultramaoísmo» dos khmers vermelhos recuperou e levou ao limite a lógica feroz da Revolução Cultural chinesa, conferindo-lhe uma base agora exclusivamente rural e depurando algumas das hesitações que terão feito com que esta não tivesse sido capaz de completar a sua missão. O resultado, calculam estimativas benevolentes, foi a morte de entre dois a três milhões de cambodjanos – a variabilidade dos números dá também uma medida da dimensão de uma política que em menos de quatro anos apagou do registo dos vivos cerca de um terço da população do país – e a destruição total tanto dos serviços públicos como dos sectores da produção não dependentes da economia de subsistência mais básica. De vez em quando aponta-se o dedo aos criminosos, nomeados um a um sempre que morrem de velhice ou são presentes a tribunal, mas deixa-se em paz o cimento ideológico, de recorte apocalíptico e supostamente redentor, edificador de humanidades «novas» sem alma, que deu coerência a uma doutrina transformada em arma de agressão e de terror. Esse continua a chocar o ovo da serpente.

                          Democracia, História

                          Espionagem sem mestre

                          She spy

                          Ainda outra invenção da gente do Google. Acaba de ser lançada uma ferramenta que introduz automaticamente na assinatura das mensagens enviadas pelos utilizadores do Gmail a identificação da localidade a partir da qual estes as escrevem. Bem sabemos que através da referência do IP era já possível uma localização aproximada, mas esta era acessível apenas a uns quantos. Agora qualquer um/uma pode distrair-se e demonstrar através do correio electrónico que não está onde declara estar. Não mais será possível dizer por e-mail sem contar com problemas aquilo que dizia há dias, ao telemóvel, um pacato cavalheiro com o qual me cruzei numa rua de Évora: «Ó Filomena, eu agora não posso ir tratar-te disso porque estou em Huelva!»

                            Cibercultura, Democracia, Etc.

                            Política de medo

                            Abusador

                            A forma como vejo a proibição de entrada no Reino Unido de Geert Wilders, o deputado holandês de extrema-direita que tem difundido, no seu país e fora dele, posições abertamente xenófobas, não entra no coro dos aplausos nem no dos apupos. Também me parece que pessoas que pensam e agem como Wilders devem ser contidas nos seus direitos políticos (que usam contra a democracia que os alimenta) e no uso do espaço público que lhes é concedido (do qual se servem para sustentarem formas de ódio e de violência social). A sua intervenção deve ser criminalizada de forma clara e as autoridades policiais e judiciais dos países democráticos devem depois agir em conformidade com a qualidade do crime. Esse seria o princípio que me levaria a aplaudir a medida de proibição imposta pelo governo britânico.

                            Aceitando-a, não posso, todavia, deixar de ver nela – num registo um pouco diferente, João Tunes fez já a mesma coisa – não a expressão de um meritório princípio democrático, mas o seu contrário. Sendo claro: trata-se de uma cedência cobarde, e não declarada sequer, às práticas intolerantes associadas aos partidários, europeus ou não, de um certo Islão que se crê acima da própria democracia e da cultura laica (e laicista) que a Europa conserva ainda como matriz. As notícias que chegam sobre Fitna, o filme de Wilders que iria ser projectado na Câmara dos Lordes e que o seu autor iria apresentar, coincidem em considerá-lo uma manipulação barata do Corão destinada a criminalizar os muçulmanos apenas pelo facto de o serem, e para isso – o apelo ao ódio religioso – existem, julgo, leis próprias que deveriam ser aplicadas dentro do país no qual o delito fosse cometido. Mas em vez desse gesto arrojado e justo, as autoridades britânicas optaram uma vez mais, como noutras paragens da Europa tem sido feito também, por ceder às pressões dos islamitas e por conservarem o criminoso à distância apenas pelas suas «opiniões radicais contra o Islão», não por ser um potencial e «algemável» criminoso. Outro passo atrás na política de medo e de autodepreciação.

                              Atualidade, Democracia, Opinião

                              Cobardia diplomática

                              Algumas linhas mais ainda a propósito do caso das manifestações xenófobas, ocorridas no norte de Inglaterra, que visaram alguns trabalhadores portugueses e foram apoiadas por sindicatos locais (ver um pouco abaixo). António Santana Carlos, o embaixador de Portugal no Reino Unido, confirmou à imprensa que não se deslocou à região onde ocorreu o conflito mas conseguiu «falar com um trabalhador», embora não tenha especificado se o fez telefonicamente, se por e-mail, SMS ou Twitter. Quanto às duas dezenas de compatriotas seus, intimidados, isolados e deixados sem apoio pelas autoridades portuguesas e pelos mesmos sindicatos, afirmou o embaixador que estes regressaram a Portugal «de livre vontade». Pois então, sendo assim, tudo bem e paz na terra aos homens de boa vontade.

                                Atualidade, Democracia

                                Corporativismo

                                Operários

                                São inquietantes, e muito, as manifestações de milhares de pessoas, junto às refinarias de Lindsey e de Grangemouth, à siderurgia de Teesside e à central eléctrica de Aberthaw, no Reino Unido, contra a presença de operários estrangeiros, sobretudo de portugueses e italianos. O apoio de alguns sindicatos britânicos a medidas xenófobas destinadas a protegerem o emprego dos trabalhadores locais – que em regra até há pouco rejeitavam as tarefas mais difíceis cumpridas pelos imigrantes – vem reforçar pesadamente a dimensão sinistra do episódio, mas indiciam também uma tendência que vem cruzando fronteiras.

                                Os nossos sindicatos, demasiadas vezes envelhecidos nos métodos, nas estratégias e até nos rostos, ainda não chegaram tão longe, mas mostram muitas vezes sintomas umbiguistas e corporativistas igualmente inquietantes. Refugiados numa dimensão ultrapassada e muitas vezes partidarizada da luta sindical, esquecem quase sempre os imigrantes (legais e ilegais, que raramente votam ou se sindicalizam), os jovens (que não constam dos seus planos e lhes pagam na mesma moeda), os desempregados e os reformados (que não são trabalhadores, não tendo por isso peso nos conflitos laborais), as mulheres (cujas especificidades reduzem quase sempre à condição supostamente paritária de trabalhadoras), acantonando-se também na defesa de algumas formas de proteccionismo que são, no mínimo, socialmente perigosas. Ainda não chegámos a Inglaterra, mas indícios de que nos podemos aproximar rapidamente do mau exemplo começam a surgir. E não só no horizonte.

                                PS – Houve entretanto quem «enfiasse a carapuça» a propósito deste brevíssimo comentário (que, obviamente, não é «análise» alguma). Nele não se atacam «os sindicatos», como qualquer leitor que não leia isto no «registo do acossado» facilmente percebe. Referem-se apenas algumas características presentes na prática de um certo modelo de sindicalismo. Velho, dependente, autofágico, e, é esse o problema aflorado, tendencialmente corporativista.

                                  Atualidade, Democracia, Opinião

                                  O taser de Taborda

                                  1500 Volts

                                  Um certo Sr. Taborda, dirigente da Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública, acaba de chamar a atenção para a falta de segurança de quem ganha o seu pão a trabalhar com menores delinquentes. Acha mesmo que chegou a hora de discutir a hipótese de os trabalhadores dos centros educativos terem acesso a tasers – sim, aquelas armas de electrochoque de alta voltagem que paralisam o alvo humano ao actuarem sobre o sistema nervoso central. «Se calhar», disse aos jornalistas, «nas unidades residenciais fechadas há necessidade de as equipas terem meios de contenção para as situações mais graves». Se calhar, podemos conjecturar, Taborda ainda estará a tempo de fazer um estágio em Guantánamo ou Abu Ghraib. Servindo de alvo, naturalmente.

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