Arquivo de Categorias: Democracia

Importância da crítica e pobreza do proselitismo

Em mais de quatro décadas como professor universitário, insisti sempre num princípio de pedagogia que julgo fundamental. Referia-o logo no primeiro dia em todas as aulas e seminários: muito mais do que armazenar conhecimento, importa o desenvolvimento da capacidade crítica. Juntando logo que, ao contrário do proclamado pelo senso comum, criticar não significa «dizer mal», ou ser-se acintoso com alguém de quem discordamos, mas exprimir convictamente uma dúvida ou hipótese alternativa destinada a abrir perspetivas dinâmicas e a impedir que alguma teoria ou interpretação possa ser tomada como indiscutível e definitiva.

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    Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

    O país de Novembro

    Afirma o arquiteto e designer francês Philippe Starck, em entrevista saída no diário Público: «Portugal é o último país do mundo onde encontro os valores que acredito que todos devemos conhecer. E que nós, franceses, tivemos há um, quase dois séculos, penso, e que são de uma humanidade profunda, de respeito, de profunda afeição, uma grande capacidade amorosa e diversa, um grande cuidado com o outro. É o último país com valores humanos.» É claro que esta é uma afirmação subjetiva e parcial, por certo aplicável deste modo a vários outros lugares do mundo. Todavia, é verdade que, ao longo das últimas décadas, entre nós se desenvolveu uma cultura maioritariamente de afabilidade e de tolerância que foi herdada, sem dúvida, não dos supostos «brandos costumes» inventados pelo salazarismo, mas dos valores de solidariedade e de humanidade emanados de Abril, e que, mesmo muitos daqueles que formalmente se lhes opunham, acabavam por partilhar. Suspeito que, por via da chegada e instalação da cultura global do ódio, estejamos no fim desse ciclo. O país de Abril a dar lugar a um país de Novembro que não se distingue dos outros.
    [originalmente no Facebook]

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      A cidadania entre a responsabilidade e a cobardia 

      O historiador britânico Tony Judt publicou em 1998 um estudo, O Peso da Responsabilidade, entretanto traduzido pelas Edições 70 (com introdução minha), que deveria ser de leitura obrigatória em cursos de história contemporânea, ciência política, sociologia ou jornalismo. O título condensa de forma perfeita a proposta do autor: partir da vida e da obra de três pensadores franceses com grande impacto público no seu tempo para mostrar de que forma, embora fossem pessoas com percursos, convicções e atitudes bem diferentes, coincidiram no entendimento do seu papel de intelectuais de perfil público como instrumento vital da cidadania. 

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        Erros e desculpas

        Leio esta manhã um artigo do Público – «Quando os políticos pedem desculpa pode ser por “sobrevivência” ou por “estratégia”», assinado por Mariana Tiago – que me parece conter uma perspetiva negativa e perniciosa para a observação pública da democracia. Pelos dois motivos que brevemente exponho. Em primeiro lugar por qualificar os «políticos» como uma espécie à parte, na qual a dimensão humana tem sobre si uma camada da conveniência e de calculismo que, a meu ver obviamente, se aplica apenas a alguns. Olhar os «políticos» como gente à parte – «eles», diz-se por vezes – é próprio do discurso populista, e se o artigo não se integra neste universo, na realidade alimenta-o. Em segundo, por não incluir uma única referência à dimensão ética que deve desejavelmente conter a atividade política e cidadã. Para a autora do artigo, e aparentemente, também para as pessoas que ouviu para o escrever, os «políticos» são necessariamente pessoas ambiciosas e opacas, não podem ser- e alguns são-no – apenas honestos, tanto quanto possível transparentes, e capazes de genuinamente reconhecer os seus próprios erros. Podendo esta prática reforçar até a grandeza de quem a assume.
        [originalmente no Facebook]

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          Duas posições contra a paz

          O apelo, feitos por muitas pessoas que se têm manifestado a seu favor, à existência de um Estado palestiniano «do rio até ao mar», isto é, do Jordão ao Mediterrâneo, significa apoiar o fim do Estado de Israel e a inversão da condição de pária do povo palestiniano para o judeu. Ela nega, no fundo, a única solução possível, embora difícil, para a martirizada região e para os povos que a habitam: a existência de dois Estados independentes, política e economicamente viáveis, pacíficos e que, um dia, poderão até colaborar.

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            O inaceitável cerco ao PS

            Que fique muito claro: tendo muitíssimas pessoas amigas, ou que admiro, seja pelo que fazem ou apenas como seres humanos, na condição de militantes, de simpatizantes ou de votantes do Partido Socialista, sempre mantive em relação a este uma razoável distância crítica. Apenas por uma vez votei PS nas legislativas, jamais o fiz nas autárquicas e, nas presidenciais, só coincidimos no apoio dado a Mário Soares e depois a Jorge Sampaio. Afora estas ocasiões, somente em algumas importantes campanhas cívicas nos aproximámos.

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              O próximo cenário

              A decisão do PR no sentido de dissolver a Assembleia da República e convocar eleições não foi a melhor solução. Todavia, foi tomada em termos menos gravosos do que se chegou a supor, dado permitir a aprovação do Orçamento de Estado para 2024 e apontar para uma data eleitoral, 10 de março, suficientemente distante para deixar que o Partido Socialista se recomponha politicamente com nova liderança e uma linha política necessariamente revista. Se o não tivesse feito, deixaria por certo mais satisfeitos os partidos da direita e da extrema-direita que, com o apoio de uma comunicação social maioritariamente sensacionalista e manipuladora, por certo cavalgariam o ruído causado pelo estranho caso que forçou António Costa a pedir a demissão, condicionando desse modo a reflexão serena e a clara enunciação de propostas que as eleições legislativas sempre requerem.

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                A crise e o escrutínio

                1. É imprudente, e apenas resultado da ambição de poder ou de cegueira política, exigir eleições antecipadas neste momento. João Miguel Tavares, de quem habitualmente divirjo (e muito), explica porquê: o PS detém uma maioria absoluta no Parlamento; existe uma altíssima probabilidade de as próximas eleições virem a produzir uma solução governativa muito mais instável do que a actual; o PRR, com um Governo em gestão e meses de campanha eleitoral, poderá nunca vir a ser executado na totalidade; a TAP e o aeroporto ficarão congelados; a entrada em vigor do Orçamento do Estado será posta em causa; o PS não terá tempo para assimilar o que lhe aconteceu; e o PSD e a comunicação social não terão tempo para escrutinar Luís Montenegro e a sua equipa.

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                  Essa palavra «vingança»

                  Não existe palavra mais rude que «vingança». Ela traduz a resposta a uma afronta com outra afronta, mesmo quando não está na nossa índole fazê-lo. Pelo início do século XVII, o filósofo Francis Bacon descreveu-a como «justiça selvagem», capaz de «ofender a lei e atirá-la para a rua». Pode ter uma dimensão pessoal, mas a sua modalidade mais imoderada é a de grupo, pois aqui não é pontual, funcionando por meio de de ciclos longos de desafio e retaliação, realizados por famílias e clãs, ou por tribos e etnias, muitas vezes sob a forma de «vendeta de sangue». Pode também ser lançada por setores animados por doutrinas intransigentes de teor religioso, filosófico ou político, em larga medida dinamizadas pela ira e pelo ódio a quem as procure contrariar. 

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                    O imperativo da paz e as «identidades assassinas»

                    Uma frase de Camus, deixada em 1945 no jornal clandestino da Resistência Combat, proclamava que «a paz é a única batalha que merece a pena ser travada». Exprimia um sentido de justiça e um imperativo ético cuja formulação permanece atual. Neste artigo ajuda a sublinhar a necessidade de um combate pela paz entre a Palestina e Israel, possível num quadro de equilíbrio apenas alcançável através da solução de dois Estados independentes, livres e cooperantes, recomendada desde 1974 pela ONU com base na divisão territorial anterior a 1967. Após oito décadas de conflito sangrento e traumático, da intensa presença de ódios instalados, de interferências externas potencialmente trágicas e do sofrimento dos povos, sobretudo do palestiniano, ela será sempre dificílima de obter; no entanto, as alternativas são piores.

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                      Palestina, Israel e a necessária moderação

                      Sobre os terríveis acontecimentos e o cenário de guerra e destruição agora ampliados em Gaza e Israel, cito dois historiadores progressistas israelitas que se lhes acabam de referir. Enquanto para Alon Pauker, «os extremistas, tanto em Israel como em Gaza, alimentam-se uns dos outros e não se preocupam com as vidas das pessoas», para Eli Barnavi «o ataque do Hamas resulta da combinação entre uma organização fanática islamita e a política idiota de Israel.». Estamos, obviamente, perante pessoas moderadas, de uma espécie, se não em vias de extinção, pelo menos com grandes dificuldades de afirmação em Israel. O mesmo acontece, aliás, do lado árabe, onde as palavras sensatas de quem apela à solução política e partilhada do conflito como a única que pode evitar a continuação da opressão e do sofrimento do povo palestiniano são igualmente raras e carecem de grande coragem por parte de quem as profere, considerando a força e os métodos da intolerância, do islamismo radical e do jihadismo.

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                        Ativismo, sectarismo e compromisso

                        Todos os dias presente nos noticiários – mais recentemente a propósito dos combates pelo clima ou de vertentes da luta feminista – o ativismo é uma prática positiva e crucial da cidadania. No sentido filosófico, o termo aplica-se a uma doutrina ou argumentação que privilegia a transformação da realidade em detrimento de uma abordagem que seja sobretudo especulativa. Já no plano mais objetivamente político, usa-se como sinónimo de protesto continuado ou de militância dedicada em prol de causas ou de combates de interesse e impacto públicos. Por vezes em condições de ultrapassar ou de complementar a mais formal e programática atividade partidária. 

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                          Parasitas da democracia

                          Quando se faz análise política num espetro largo, ainda que esta se apoie em dados objetivos é sempre possível conviver com uma margem de erro. Sabe-se que todo o humano é complexo, e que no meio dos sinais e das regras que criamos ou encontramos, podemos deparar com a exceção. Além disso, tudo o que neste âmbito se comenta, ainda que fundamentado, é sempre uma aproximação. Por isso, traçar um esboço da psicossociologia da nossa extrema-direita e da repercussão que tem na vida coletiva que nos cabe, jamais significará traçar-lhe um retrato definitivo, pois este está em permanente construção. Todavia, não andará longe da abordagem aqui proposta. 

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                            O tudólogo como inimigo público

                            O corretor ortográfico do programa onde escrevo ainda identifica a palavra «tudólogo» como erro, mas o dicionário Priberam define-a já como aplicável a quem «comenta ou dá opiniões sobre qualquer assunto como se fosse um perito ou especialista de cada um desses assuntos». O termo é hoje usado para identificar negativamente quem tem voz pública nas televisões, jornais ou redes sociais, falando sobre qualquer tema, seja este a política nacional ou a internacional, a situação económica, a obra de um escritor, um acontecimento histórico ou a crise climática, como se sobre todos os assuntos fosse especialista. Incorrendo inevitavelmente em constantes vacuidades e equívocos.

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                              O beijo como agressão e um combate necessário

                              Num dos mais perfeitos filmes de François Truffaut, Baisers Volés (Beijos Roubados), de 1968, estreado entre nós três ou quatro anos depois, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), o protagonista, vive obcecado com a sua incapacidade para perceber se aquilo que sente por Christine (Claude Jade) é amor ou apenas desejo. Muitas das pessoas que na época viram o filme andaram semanas a debater apaixonadamente a compatibilidade parcial ou a incompatibilidade total entre estes dois conceitos. O papel figurado do beijo – o título saiu de um verso da canção «Que reste-t-il de nos amours», de Charles Trenet – é ali fundamental, dado este deter uma qualidade quando é clandestino. de certa forma «roubado», e outra quando é público e consentido. 

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                                JMJ: crítica e discriminação

                                Uma boa parte da opinião pública portuguesa, seja aquela que tem voz na imprensa e televisão ou a que se exprime principalmente através das redes sociais, tem vindo a fazer críticas à forma como se organizou e está a funcionar a Jornada Mundial da Juventude de 2023. Boa parte delas prende-se com o despesismo excessivo e absurdo, parcialmente levado a cabo com recurso ao erário público de um Estado que se autodefine como laico. Outra parte liga-se ao modo como o evento está a perturbar a vida corrente de uma boa parte de cidadãos que com ele rigorosamente nada têm a ver. Outra ainda, esta de uma natureza mais objetiva, respeita ao empenho da Igreja católica portuguesa no evento por comparação com a sua simultânea recusa em tomar posição sobre graves e provados comportamentos que têm sido imputados a muitos dos seus membros e colaboradores.

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                                  Contradições e incoerência

                                  As opções políticas, se feitas de uma forma honesta e de acordo com escolhas que, não podendo ser iAs escolhas políticas, se feitas de uma forma honesta e de acordo com escolhas que, não podendo ser imutáveis, devem necessariamente ser coerentes, não podem passar por tomar uma posição se o alvo tem um rosto, e outra, inteiramente oposta, se a sua cara é diferente. Não pode, por exemplo, defender-se a democracia em Portugal, no Brasil ou na Ucrânia, e, ao mesmo tempo, aceitar-se a autocracia na Rússia ou a ditadura na China e em Cuba. Como não pode, em processos de justiça seletiva, denunciar-se em alguns casos a guerra, o genocídio, a prisão e a tortura, omitindo-as em outras situações. Como não pode também julgar-se uma determinada reflexão pública – no campo do ensaio ou da crónica política, por exemplo – em função apenas do seu autor: boa, justa e para divulgar se vier de uma figura grada para determinado quadrante político, mas péssima e de rebater ou silenciar se vier de alguém de quem não se gosta, às vezes até por motivos pessoais. Isto para não falar, na linha da crónica de José Pacheco Pereira saída no Público deste sábado, de quem se diz defensor da nossa Constituição saída de Abril, mas ao mesmo tempo fecha os olhos, apenas porque pontualmente lhe convém, às intromissões do Presidente da República em matérias que não são da sua competência constitucional. Ainda que sobre alguns dos temas possa ter razão na parte ou no todo.

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                                    Eleições em Espanha: quatro sinais positivos

                                    Os resultados das eleições legislativas em Espanha abriram uma crise política sem uma solução para já à vista. Todavia, por certo que ela surgirá, seja sob a forma de uma grande coligação de partidos orientados basicamente à esquerda – com concessões a algumas pretensões autonomistas -, ou então apontando, o que seria basicamente negativo por introduzir um inevitável extremar de posições, para novas eleições. Seja como for, dos seus resultados, em boa parte inesperados, saíram diversos sinais essencialmente positivos. Para já, anoto quatro.

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